segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Humilhações, Cesário Verde

 

HUMILHAÇÕES

De todo o coração - a Silva Pinto1


I









Esta aborrece quem é pobre. Eu, quase Job2,
Aceito os seus desdéns, seus ódios idolatro-os;
E espero-a nos salões dos principais teatros,
       Todas as noites, ignorado e só.

II




5




Lá cansa-me o ranger da seda, a orquestra, o gás3;
As damas, ao chegar, gemem nos espartilhos4,
E enquanto vão passando as cortesãs5 e os brilhos,
       Eu analiso as peças no cartaz.

III





10



Na representação dum drama de Feuillet6,
Eu aguardava, junto à porta, na penumbra,
Quando a mulher nervosa e vã que me deslumbra
       Saltou soberba o estribo do coupé7.

IV






15


Como ela marcha! Lembra um magnetizador.
Roçavam no veludo as guarnições das rendas;
E, muito embora tu, burguês, me não entendas,
       Fiquei batendo os dentes de terror.

V







20

Sim! Porque não podia abandoná-la em paz!
Ó minha pobre bolsa, amortalhou-se a ideia
De vê-la aproximar, sentado na plateia,
       De tê-la num binóculo mordaz!

VI









Eu ocultava o fraque usado nos botões;
Cada contratador dizia em voz rouquenha:
- Quem compra algum bilhete ou vende alguma senha?
       E ouviam-se cá fora as ovações.

VII




25




Que desvanecimento! A pérola do Tom!
As outras ao pé dela imitam de bonecas;
Têm menos melodia as harpas e as rabecas,
       Nos grandes espetáculos do Som.

VIII





30



Ao mesmo tempo, eu não deixava de a abranger;
Via-a subir direita, a larga escadaria
E entrar no camarote. Antes estimaria
       Que o chão se abrisse para me abater.

IX






35


Saí; mas ao sair senti-me atropelar.
Era um municipal sobre um cavalo. A guarda
Espanca o povo. Irei-me; e eu, que detesto a farda,
       Cresci com raiva contra o militar.

X






40

De súbito, fanhosa, infecta, rota, má,
Pôs-se na minha frente uma velhinha suja,
E disse-me, piscando os olhos de coruja:
      
- Meu bom senhor! Dá-me um cigarro? Dá?...

 O Livro de Cesário Verde, Lisboa, 1887

Edição utilizada: Obra completa de Cesário Verde, 4.ª edição organizada, prefaciada e anotada por Joel Serrão. Lisboa, Livros Horizonte, 1983

 

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Notas:

1 Silva Pinto - Crítico literário, ensaísta, dramaturgo e romancista português, da segunda metade do século XIX, nascido a 14 de abril de 1848, em Lisboa, e falecido a 4 de novembro de 1911, na mesma cidade. Foi um dos principais doutrinadores do Realismo-Naturalismo, privilegiando a estética de Balzac, de cuja obra foi tradutor e grande admirador, e a crítica de Gustavo Planche. Depois de uma passagem pelo colégio de jesuítas de Campolide, começa a trabalhar como ajudante de despachante de alfândega. A partir de 1872, dedica-se ao jornalismo, estreando-se como colaborador no jornal O Trabalho e fundando, juntamente com Magalhães Lima, Gomes Leal, Guilherme de Azevedo e Luciano Cordeiro, a revista literária O Espetro de Juvenal. Ao longo da sua vida, deixará uma imensa colaboração dispersa por periódicos como O Ocidente, Jornal da Tarde, A Atualidade, A Voz do Povo, Revista do Norte e Revista Literária, parte da qual foi posteriormente recolhida nos três volumes dos Combates e Críticas. Em Espanha, combate ao lado dos republicanos contra os carlistas. Depois de uma estada de dois anos no Brasil, regressa a Portugal. Em 1887, recolhe os poemas de Cesário Verde, organizando a edição do seu livro póstumo, que prefaciou e anotou. A partir de 1889, dedica cada vez mais a sua atenção à obra de Camilo, publicando a correspondência mantida com o escritor. (Porto Editora – Silva Pinto na Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora. [consult. 2022-11-12]. Disponível em https://www.infopedia.pt/$silva-pinto)

2 Job - Figura bíblica que encarna o homem justo atingido pela infelicidade extrema; (fig.) homem dotado de grande paciência e resignação, muito pobre.

3 Em 1848, tinham aparecido os primeiros candeeiros a gás a iluminar as ruas de Lisboa.

4 Espartilho - espécie de cinta que vai das ancas até abaixo dos seios, com ilhós por onde passam fios de seda longos que são puxados de forma a apertar ao máximo a cintura da mulher.

5 Cortesã - amante de soberano; prostituta com clientela de estrato social elevado. Na poesia baudelairiana, as cortesãs e prostitutas têm lugar de destaque. Inclusivamente, Baudelaire chega a comparar o escritor a uma cortesã que deve agradar ao público para vender a sua mercadoria, que nada mais é que seu próprio corpo: “Se de um lado a atriz se aproxima da cortesã, por outro assemelha-se ao poeta” (in O pintor da vida moderna). "As cortesãs não eram bem recebidas na sociedade respeitável parisiense no século XIX. Mas, havia apenas um século, estas mulheres eram aceites aos mais altos níveis – e a mais famosa foi Jeanne-Antoinette Poisson, que, durante perto de 20 anos, foi a amante oficial do rei Luís XV de França." Educada na arte e literatura, casou aos 19 anos, mas em 1745 conheceu Luís XV e tornou-se amante dele. Como consequência, terminou o casamento, mudou-se para o Palácio de Versailles e passou a influenciar a moda e a política. (cf. Os grandes mistérios do passado, Lisboa: Seleções do Reader’s Digest, p. 308).

6 Feuillet - novelista e dramaturgo preferido da alta sociedade da época. De acordo com Hélder Macedo, a informação do poeta sobre o drama do escritor francês Octave Feuillet (1821-1890), que era encenado naquela noite, representa também uma crítica ao autor de peças. A peça Roman d’un jeune homme pauvre, de Feuillet, tem como temática um relacionamento impossível entre um jovem de classe social baixa apaixonado por uma mulher de classe elevada, tal qual ocorre no poema de Cesário Verde: «(...) Feuillet era o manipulador de personagens-tipo que, no dizer ferino de Flaubert, devia o seu sucesso a duas razões: a primeira, as classes baixas acreditarem que as classes altas eram como ele as representava; e, a segunda, as classes altas verem-se representadas como gostariam de ser.» (Cesário Verde, o romântico e o feroz. Lisboa: Engrenagem, 1988. Apud: Entre Paris e Lisboa: a modernidade de Cesário Verde, Luciana Nascimento. Campinas-SP, UNICAMP, 2003).

7 Coupé - carruagem fechada de tração animal, com dois lugares no interior e um no exterior para o cocheiro.

 



Análise de texto

O poema o poema “Humilhações”, de Cesário Verde, pode ser dividido em duas partes. A primeira compreende as oito primeiras estrofes e a segunda parte é constituída pelas duas últimas estrofes.

Esquematicamente, o poema pode visualizar-se do seguinte modo:

CABRAL, A. S. [1997] Cesário Verde – Propostas de Análise, Edições Sebenta – Português

 

No início do poema, logo na primeira estrofe, o poeta faz uma comparação ao personagem bíblico Job, homem de caráter e de uma ética inquestionável. Na narrativa da vida de Job o mesmo é marcado pelas humilhações, sofrimentos, perdas, abandonos, injustiças, dores e desprezos que o mesmo sofre na vida, uma vez que este é fiel e temente a Deus e que aceita todas as desgraças por idolatração ao seu Deus, seu Salvador. A comparação feita pelo poeta com a história de Job se dá pelo facto de o eu lírico também ser humilhado e desprezado pela sua amada que se encontra em uma condição de vida melhor do que a dele, mas que, mesmo assim, diante de todas as humilhações ele a idolatra. A segunda estrofe é marcada pelo incómodo do ranger da seda, ou seja, o eu lírico se incomoda pelo facto de não fazer parte daquele mundo, mundo artificial, desumano que advém da civilização urbana, uma das fortes características do poeta em estudo, para ele a vida na cidade é marcada pela artificialidade e pela desumanidade, uma vez que, é nesse espaço que as desigualdades sociais são encontradas de forma gritante.

Na terceira estrofe, o poeta descreve a presença do eu lírico aguardando junto à porta do teatro para ver a sua amada, mulher inatingível, inalcançável, por pertencer a outra realidade social bem diferente da sua, como revela o verso “Eu aguardava, junto à porta, na penumbra.

O eu lírico relata a humilhação que sofre por desejar aquela mulher que lhe humilha e se desfaz dele. Ainda nessa estrofe percebemos a figura feminina definida pela mulher burguesa, rica e que mostra uma distância enorme entre ela e o eu lírico, pelo facto, de o mesmo não estar na mesma classe social que ela, motivo que a leva a desprezá-lo e torná-lo cada vez mais distante de sua amada: E entrar no camarote. Antes estimaria / Que o chão se abrisse para me abater.

Nas demais estrofes da primeira parte do poema, o poeta descreve a diferença social que há entre o eu lírico e a sua amada ao descrever suas vestimentas, o local onde o mesmo se encontra, no caso do lado de fora do teatro, onde a amada assiste ao espetáculo sentada no camarote e ele assiste apenas o percurso que a mesma faz para entrar no teatro, falta-lhe dinheiro, vestimentas adequadas em comparação aos que ali estão presentes. O eu-lírico é pobre, porém com certo grau de conhecimento elevado, facto observado quando ele diz que espera a chegada de sua amada e que até ela chegar fica a analisar as peças no cartaz.

Mais uma vez é lançada uma crítica a sociedade desigual, injusta que não está nem um pouco interessada ao que acontece ao seu redor, que os menos favorecidos são tratados de forma humilhante, indiferente, desprezível, pontos que marcam a obra de Cesário Verde por ele ser um poeta que se incomoda com as diferenças de classes sociais.

Cesário é tido como o poeta do quotidiano, de uma linguagem clara, sem muitos rodeios para expressar o que deseja e o que quer passar para o leitor, isso fica claro e evidente na segunda parte do poema, quando o mesmo denuncia a guarda municipal espancando o povo, o mesmo confessa se revoltar contra os militares diante de tais atitudes.

Saí; mas ao sair senti-me atropelar.
Era um municipal sobre um cavalo. A guarda
Espanca o povo. Irei-me; e eu, que detesto a farda,
----- Cresci com raiva contra o militar.

Nesta estrofe, o autor faz uma crítica social, na qual mostra com clareza a opressão do povo comum diante dos poderosos, das autoridades, como também a indignação com relação ao tratamento do povo humilde. E na última estrofe, com sua linguagem clara e objetiva, Cesário Verde nos apresenta mais uma crítica no que se refere à sociedade, desta vez ele mostra-nos uma verdadeira imagem do contexto social como responsável por um dos maiores conflitos do sujeito – a convivência dentro da perspetiva de desigualdade social.

De súbito, fanhosa, infecta, rota, má,
Pôs-se na minha frente uma velhinha suja,
E disse-me, piscando os olhos de coruja:
-----
- Meu bom senhor! Dá-me um cigarro? Dá?...

É nessas duas últimas estrofes, ou seja, na segunda parte do poema que Cesário Verde mostra a identificação do eu lírico com a sua realidade social, ou seja, no poema é mostrado duas realidades: na primeira, o eu lírico contempla a amada, mulher burguesa que o despreza por estar inserida numa condição social diferente da dele; nesse caso, podemos afirmar que, nessa realidade representada no poema, o sujeito lírico encontra-se fora da sua realidade social; já na segunda parte, ao  encontrar-se com a velhinha, o eu lírico  encontra-se de facto com a sua realidade social, a de um povo oprimido, injustiçado e desprezado pelo sistema, carente e, acima de tudo, humilhado pelos poderosos.

É na figura dessa velhinha que o autor deixa claro a representação, na sua obra, da imagem dos conflitos sociais. Em suma, o poema Humilhações, desde o seu título, mostra-nos o que de facto o autor pretende nos passar, ou seja, a humilhação na qual o povo oprimido se encontra, seja no que se refere à vida social, seja na vida particular do indivíduo.

 

Maria Verônica de Oliveira, Entre “humilhações” e “contrariedades”: representações de conflitos sociais na poesia de Cesário Verde. Campina Grande, UEPB, 2016

 


 

Síntese do poema

"A dialética semântica Opressão / Humilhação exclui qualquer veleidade aproximativa e, por conseguinte, qualquer possibilidade de consecução em termos de relação homem/mulher. Só a revolta do poeta permitirá introduzir um terceiro termo superador da antítese Senhor/Escravo: a Vingança". (...) Este paradigma temático ocorre em "Humilhações", onde a vingança é conseguida através do reverso da mulher atriz na velhinha "suja", "fanhosa, infecta, rota, má", que o poeta antepõe como sucedâneo irreversível da mulher altiva e opressora".

José Bernardes, "A Mulher na Poesia de Cesário Verde" in Cadernos de Literatura, n.º 24, outubro de 1986)





 

Modernidade do poema Humilhações, de Cesário Verde

O poema “Humilhações”, publicado postumamente em 1887, em O Livro de Cesário Verde, tem vários pontos de contato com o restante da obra de Cesário Verde, no que ela tem de característico e inovador no quadro da poesia portuguesa da segunda metade do século XIX.

  Por isso cabe uma análise detida, a começar pela forma, desse poema que não é dos mais conhecidos e apreciados do autor, mas que já contém muito de seu estilo.

 A começar pelo metro, nele há uma alternância entre decassílabos (último verso de cada quarteto) e alexandrinos (três primeiros versos), sendo esse último verso, como observa David Mourão[2],  pouco comum na poesia portuguesa até a época de Cesário, quando passa a ser utilizado mais largamente por autores como Guerra Junqueiro, Guilherme de Azevedo e Gomes Leal, e ausente da produção inicial de Cesário, que o empregará, no entanto, com frequência na sua produção madura, e até o utilizará como metonímia para sua poesia, em “Contrariedades: “E apuro-me em lançar originais e exatos, /Os meus alexandrinos”.

   A originalidade dos alexandrinos pode se referir tanto a infrequência do verso na poesia portuguesa quanto ao uso específico que dele faz autor. Sendo o verso clássico da poesia francesa, seu uso assinala também a influência dessa poesia e da cultura francesa em geral nos autores do século XIX, igualmente visível no uso de palavras francesas, “Feuillet” e “coupé” (que inclusive rimam entre si).

    As expressões francesas e uma estrutura métrica muito similar (um decassílabo seguido de três alexandrinos) também estão presentes em Sentimento de um Ocidental”, outro retrato, mais extenso, da paisagem urbana lisboeta, parecendo a inversão da posição dos alexandrinos e do decassílabo assinalar a expansão de uma impressão inicial do eu-lírico “flaneur”, enquanto em “Humilhações” o que há é uma “contração” em função dos diversos anticlimax que marcam o poema (o verso final menos extenso – nesse caso um hexassílabo – com essa função de anticlimax também é usado em Contrariedades). Nos dois poemas o verso longo de doze sílabas adequa-se ao caráter narrativo-descritivo dos poemas, próximos da prosa, o que indicam também os enjambements (“[…]Eu, quase Job, /Aceito seus desdéns[…]”, “[…]A guarda/ Espanca o povo[…]”, em Humilhações, “Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia/Despertam-me um desejo absurdo de sofrer”, em Sentimento de um Ocidental).

   Outros procedimentos formais comuns ao restante da produção de Cesário é a sequência de adjetivos ou substantivos (em geral três ou quatro), unidos assindeticamente, muitas vezes de sentido similar e complementar, que captam, num ritmo veloz, como um “instantâneo”, um ambientes, sensações/estados de espírito e indivíduos[3].

   Essas expressões sucintas e incisivas também iniciam os poemas, como indicações de cena ou sínteses do enredo: “Esta aborrece quem é pobre. […]”(“Humilhações”) “Dez horas da manhã;[…]” (“Num Bairro Moderno”), “Faz frio.[…]”(Cristalizações”, “No campo;[…]” (“De Verão”) “Ei-la, como vai bela![…]” (“Esplêndida”), “Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;[…]”(“Contrariedades”).

  Esse processo se estende até o uso dos adjetivos, que em geral não é mais, como no romantismo, retórico ou ornamental, mas expressivo e essencial à construção do verso, o que vincula Cesário à vanguarda de seu tempo e às mudanças de sensibilidade operadas pelo realismo, porque, segundo Saraiva, ele “introduziu no verso o processo queiroziano de suprir pelo adjectivo ou pelo advérbio uma relação lógica extensa, de imediatizar, pela surpresa de uma relação verbal, uma sugestão que morreria se fraseologicamente se desdobrasse”[4]. Em “Humilhações” há, além da hipálage característica de Eça, “binóculo mordaz”, em que a característica do usuário é transferida ao objeto, um uso quase adverbial do adjetivo em “Saltou soberba o estribo do coupé” – “saltou soberbamente” -, para o qual contribui a ambiguidade semântica do adjetivo, que pode significar tanto “magnífica” quando “arrogante”(nesse segundo caso, o sentido seria “saltou de forma arrogante”), o que sintetiza as características de certo modo opostas, em termos de avaliação (magnifica como exaltação e arrogante, como censura), mas indissociáveis, da mulher observada.

   Outros poemas exemplificam esse uso sugestivo do adjetivo: em “Disseminadas, gritam as peixeiras” (“Cristalizações”) e “longínqua flauta”(“O Sentimento de um Ocidental”), os adjetivos dão coordenadas espaciais, confundindo ação e estado (seria possível dizer “as peixeiras se espalham e gritam”, “a flauta soa ao longe”), o que contribui para o efeito de “instantâneo fotográfico”, que procura fixar um movimento. Em “E muito descansado, atira um cobre lívido, oxidado” e “gritou-me prazenteira” (“Num Bairro Moderno”), o sentido é claramente adverbial, mas os outros adjetivos que descrevem a vendedora já oscilam entre características circunstanciais e permanentes, em “E rota, pequenina, azafamada”, a característica constitutiva “pequenina” se mistura a “rota”, já mais extrínseca mas ainda relacionada à condição social da personagem, e “azafamada”, inteiramente circunstancial (ou seja, adverbial), enquanto em “Se ela se curva, esguedelhada, feia” é um adjetivo que descreve uma característica constitutiva, “feia”, que ganha uma nuance adverbial, porque ligada a um verbo, como se o olhar do poeta, apreendendo-as simultaneamente, igualasse as características permanentes e as circunstanciais. O uso do adjetivo também é extremamente intencional em “E gritos de socorro ouvir estrangulados”, em que a metáfora “estrangulado” para “abafado”, “baixo ou indistinto” (nesse caso, por causa da distância) volta a ser viva por se tratar de uma cena suposta de violência.

  Esses recursos estão bem ajustados ao conteúdo do poema que, sob a aparência do lugar-comum da frustração amorosa, tratam de uma nova experiência urbana. A situação descrita é de um eu-lírico pobre que diariamente vai observar sua amada (embora os sentimentos causados por ela no eu-lírico nunca sejam descritos pela expressão “amor” ou similares, mas sempre por expressões que acentuam a diferença hierárquica, “seus desdéns, adoro-os”, “me deslumbra”, “desvanecimentos”, “fiquei batendo os dentes de terror”), que é rica – aborrece quem é pobre, vai aos principais teatros, ocupa camarotes, sobressai entre as outras mulheres, entre as quais há “cortesãs”.

    O eu-lírico não parece ter nenhuma pretensão de entrar em contato com ela – não tem nem mesmo coragem de passar do saguão do teatro – e a “relação” se resume à observação – observação aguda do eu-lírico, que chega a “analisar” as peças em cartaz, sendo o seu grande temor uma inversão de papéis, em que a mulher o observasse com o “binóculo mordaz”, o que nos faz pensar se a visão do eu-lírico, apesar do aparente “deslumbramento”, também não seria mordaz, já que ele analisa, a “abrange”, constata que ela é “nervosa e vã” e que as outras mulheres, sob a bela aparência dos espartilhos, gemem, um traço bastante realista da descrição. O cenário ganha mais vulto que a mulher em si, e sua única característica pessoal é a arrogância, “aborrece quem é pobre”, “seus desdéns, seus ódios”, “saltou soberba”, “via-a subir, direita”, sendo mais abundante a descrição do ambiente deslumbrante que a cerca: “cortesãs”, “brilhos”, “guarnições das sedas” roçando no “veludo” , “o ranger das sedas, a orquestra, o gás”, as “largas escadarias”, o “coupé”. O trecho mais elogioso é vago: ela é a pérola do “Tom” (algo relativo e ligado à moda), e a metáfora para descrever seu encanto, “melodia”, é extraída do próprio ambiente em que ela está (a ópera é um “grande espetáculo do Som”).

  Além disso, como observa Mario Higa[5], “harpa e rabeca” é uma combinação insólita de instrumentos, que sugere ironia. Em “Esplêndida” há a mesma ênfase no luxo material de que a mulher se reveste e em que sua personalidade parece se diluir: “sedas multicolores”, “azul celeste do seu landau forrado de cetim”, “negros corcéis que a espuma veste”, “peles de tigre”, “clara como os pós a marechala”, “ducalmente esplêndida” (as comparações, aqui, como no caso de “espetáculo do Som”, são metonímicas: a mulher provavelmente usa algum tipo de maquiagem e é fidalga), “peles de tigre”, etc. A comparação insólita e jocosa com os “magníficos almoços do Mata”, no verso final desse poema, já sugere a equivalência entre os esplendores da amada e os outros atrativos oferecidos pela vida urbana.

   Nos dois poemas, portanto, a mulher altiva e indiferente, uma constante nos poemas de Cesário dedicados a mulheres (“Deslumbramentos”, “Frígida”, “Esplêndida”, “Arrojos”, “A Forca”), é uma metáfora para o fascínio exercido pelo luxo da metrópole sobre o eu-lírico flaneur, cuja contrapartida, no entanto, é a opressão que, para se manter, ele exerce sobre as classes inferiores, com as quais o eu-lírico se identifica – em “Humilhações” muito mais explicitamente do que em “Esplêndida”, já pelo título – o que converte o elogio em crítica. Dessa perspectiva o surgimento intempestivo da guarda municipal, instrumento de repressão das classes inferiores, na segunda parte do poema, é indissociável da parte inicial, e essa associação é reforçada na quinta estrofe pela escolha dos termos associados à esfera militar: “marcha”, para indicar o andar da mulher, e “guarnições” (das sedas), significando “adornos” mas também remetendo a “conjuntos de tropas estabelecidos em determinado local”, sendo o “terror” incompreensível para o burguês não apenas aquele causado pela mulher soberba na sensibilidade do poeta, mas pelos militares nos pobres.

   Do ponto de vista literário, a posição de observador, o registro de fragmentos do quotidiano urbano, a sensorialidade e a sinestesia (“ranger das sedas, a orquestra, o gás”, em que se misturam impressões sonoras e olfativas, com sugestão tátil no “ranger das sedas”), o prosaísmo, o cinismo e o masoquismo vinculam-se à poesia de Baudelaire. Do ponto de vista sociológico, os temas de “Humilhações” vinculam-se à experiência urbana, decorrente da industrialização, que está na raiz da poesia baudelairiana e que se introduzia, ainda que muito mais lentamente do que em Paris e com uma feição própria, em Lisboa.

    Joel Serrão, ao descrever essa experiência, tratando da representação do campo e da cidade na poesia de Cesário, refere-se ao crescimento demográfico – em 1890 apenas Lisboa e o Porto “evidenciam certas características das cidades europeias contemporâneas”, possuindo, respectivamente, 391.206 e 167.955 habitantes, em oposição aos apenas 23.000 habitantes da terceira cidade mais populosa, Braga, sendo que entre 1878 e 1890 a população lisboeta mais que duplica[6]– a modernização arquitetónica – “Lisboa estende-se e moderniza-se, a construção de imóveis se torna visível”[7][…]. – do calçamento – “A larga rua macadamizada, diz o poeta. Rua nova, europeia. Por ela, e pelas restantes, circulavam os carros particulares e de aluguer tirados a cavalos, eis referências frequentes na poesia de Cesário.[8])” – e da iluminação – […] Só em 1848 se acendem os primeiros 26 candeeiros a gás. Mas em 1871 já havia no concelho de Lisboa 3080 candeeiros a gás. […] A insistência com que Cesário se refere à luz a ao cheiro do gás, que por vezes o perturba (“ o gás extravasado enjoa-nos, perturba”), além de outros possíveis significados, mostra como esse sinal de civilização entrara na vida corrente, se tornara numa presença quotidiana.”[9]Essas duas últimas modificações se fazem patentes no poema.

  A referência à guarda municipal reprimindo os contratadores de senhas às portas dos teatros também parece ser uma imagem frequente na representação do ambiente urbano na literatura parisiense da época, como nos indicam um conto de Paul de Kock sobre esse tema, “Les marchands de contremarques[10]”, e a referência a essa atividade no verbete “L’armee”, de  Les français peints par eux-mêmes : encyclopédie morale du dix-neuvième siècle, e no Physiologie du Flaneur.

   Outro traço “moderno” do poema é o uso de um termo do vocabulário médico da época, “magnetizador”. No século XIX houve um renovado interesse pelo chamado “magnetismo animal”, termo cunhado pelo médico alemão Franz Anton Mersmer para designar uma força invisível emanada dos seres animados e capaz de influenciar seres humanos e que ele cria explicar os fenômenos hipnóticos utilizadas no tratamento de seus pacientes (Charcot, médico com quem um amigo de Cesário, Bettencourt Rodrigues, estudou em Paris[11], também utilizou a hipnose para fins terapêuticos).

   Esse interesse reflete-se na obra de um autor realista como Guy de Maupassant, que tem um conto intitulado “Magnetismo”. Essa expressão aparece em outras poesias de Cesário associado a mulher fatais, “Que grande cobra, a lúbrica pessoas/ Que espartilhada escolhe uns xales com debuxo!/ Sua excelência atrai, magnética, entre luxo[…]” (“O Sentimento de um ocidental”), “Tem a altivez magnética e o bom tom/Das cortes depravadas”(“Esplêndida”). Outros termos do vocabulário médico utilizado são “aneurisma”, “histerismo”(“Sentimento de um Ocidental”), “apoplexia” (“Num Bairro Moderno”) “nevrose” (“Nevroses” era o título inicial de “Contrariedades”), todos referentes à vida nas cidades, que no poema “Nós” o autor associa à debilitação física, em contraposição à “riqueza química do sangue” dos campesinos, ou, em “Num Bairro Moderno”, a “As forças, a alegria, a plenitude/ Que brotam dum excesso de virtude/Ou de uma digestão desconhecida”.

   Vê-se assim que “Humilhações”, por inserir elementos concretos e prosaicos em uma poesia de temática amorosa, pela imagem, em parte metafórica, da mulher indiferente e altiva, pela visão negativa implícita da experiência na cidade, mas com o uso de recursos formais ligados às novas possibilidades de sensibilidade emergidas dessa experiência, contém elementos característicos da técnica e da mundividência de Cesário Verde.

Publicado por aqualtunegramatica em https://gramaticaexercicios.wordpress.com/2019/01/24/modernidade-do-poema-humilhacoes-de-cesario-verde/

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[1]  VERDE, Cesário. Poemas reunidos. Introdução e notas de Mario Higa. Cotia (SP): Ateliê Editorial, 2010, p.112.

[2] MOURÃO-FERREIRA, David. Sobre o decassílabo e o alexandrino na poesia de Cesário Verde In: Colóquio Letras, N. 93, Set.1986. p.74

[3] “o ranger da seda, a orquestra, o gás” , “fanhosa, infecta, rota, má” (“Humilhações”), “Com choques rijos, ásperos, cantantes”, “E os rapagões, morosos, duros, baços”, “E tangem-me, excitados, sacudidos, o tato, a vista, o ouvido, o gosto, o olfato!”, “Possantes, grossas, temperadas d’aço”, “Com ela sofres, bebes, agonizas”, “eles, bovinos, másculos, ossudos”, “Mastros, exárcias, vergas!”, “Madeiras, águas, multidões, telhados”, “Cheira-me a fogo, sílex, a ferragem”, “Sabe-me a campo, a lenha, a agricultura” (“Cristalizações”), “cruel, frenético, exigente” , “amo insensatamente os ácidos, os gumes, e os ângulos agudos” (“Contrariedades”), “eu que sou feio, sólido, leal”, “tu que és bela, frágil, assustada”, “uma turba ruidosa, negra, espessa”, “que me tornas prestante, bom, saudável”, “A ti, que és ténue, dócil, recolhida”, “Eu, que sou hábil, prático, viril” (“A Débil”), “E rota, pequenina, azafamada” (“Num Bairro Moderno”), “De uma ovelhinha branca, ingénua, delicada”(“Merina”), “Respiro indústria, paz, salubridade” (“De Verão”), “E evoco, então, as crónicas navais: Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!”, “E nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso”, “Muram-me as construções retas, iguais, crescidas;” “Com santos fiéis, andores, ramos, velas” (“Sentimento de um Ocidental”), “Várzeas, povoações, pegos, silêncios vastos”, “Vícios, sezões, epidemias, furtos” (“Em Petiz”).

[4] SARAIVA, António José & LOPES, Óscar. História da literatura portuguesa. Rio de Janeiro: Cia. Brasileira de Publicações, 1969, p.986.

[5] VERDE, Cesário. Poemas reunidos. Introdução e notas de Mario Higa. Cotia (SP): Ateliê Editorial, 2010. p.111

[6] SERRÃO, Joel. Cesário Verde: Interpretação, poesias dispersas e cartas. 2a edição. Lisboa: Delfos, 1961,p.34

[7] Ibidem, p.40.

[8] Ibidem, p.41.

[9] Ibidem, p.42.

[10] Compra e venda de senhas “Les marchands de contremarques”. In: CASTILHO, José Roberto

Fernandes. A Grande Cidade: Um retrato de Paris no começo do século XIX – Contos e Crônicas de Paul de Kock. Organização, notas, e revisão de tradução de J.A Xavier de Magalhães. São Paulo: Editora Pilares, 2015

[11] FIGUEIREDO, João Pinto. A Vida de Cesário Verde. 2a edição. Lisboa: Editorial Presença, 1986.p.30

 


Poderá também gostar de:



Humilhações, Cesário Verde”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-28. Disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/humilhacoes-cesario-verde.html


domingo, 27 de novembro de 2022

Manhãs brumosas, Cesário Verde

Vladimir Volegov, Beginning of purple summer, 2014


Manhãs brumosas

(versos de um inglês)

 





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Aquela, cujo amor me causa tanta pena[1],
Põe o chapéu ao lado, abre o cabelo à banda,
E com a forte voz cantada com que ordena,
Lembra-me, de manhã, quando nas praias anda,
Por entre o campo e o mar, bucólica[2], morena,
Uma pastora audaz da religiosa Irlanda.

Que línguas fala? A ouvir-lhe as inflexões[3] inglesas,
– Na névoa azul, a caça, as pescas, os rebanhos! –
Sigo-lhe os altos pés por estas asperezas[4];
E o meu desejo nada em época de banhos,
E, ave de arribação[5], ele enche de surpresas
Seus olhos de perdiz, redondos e castanhos.

As irlandesas têm soberbos desmazelos!
Ela descobre assim, com lentidões ufanas[6],
Alta, escorrida, abstrata, os grossos tornozelos;
E como aquelas são marítimas, serranas[7],
Sugere-me o naufrágio, as músicas, os gelos
E as redes, a manteiga, os queijos, as choupanas.

Parece um "rural boy"[8]! Sem brincos nas orelhas,
Traz um vestido claro a comprimir-lhe os flancos,
Botões a tiracolo e aplicações vermelhas;
E à roda, num país de prados e barrancos[9],
Se as minhas mágoas vão, mansíssimas ovelhas,
Correm os seus desdéns, como vitelos brancos.

E aquela, cujo amor me causa tanta pena,
Põe o chapéu ao lado, abre o cabelo à banda,
E com a forte voz cantada com que ordena,
Lembra-me, de manhã, quando nas praias anda,
Por entre o campo e o mar, católica, morena,
Uma pastora audaz da religiosa Irlanda.

Cesário Verde

Foz do Tejo, 1877

Porto, Renascença, 1879, p. 155

_________

[1] Na edição de O Livro de Cesário Verde (1887), elaborada por Silva Pinto, o verso é: E aquela, cujo amor me causa alguma pena.

[2] Campestre; simples.

[3] Mudanças no tom de voz.

[4] Rudezas.

[5] ave que vem por pouco tempo a uma região; indivíduo que demora pouco tempo no lugar onde foi colocado.

[6] Altivas.

[7] da serra ou a ela relativo; montesino.

[8] Rapaz do campo.

[9] Ravinas; precipícios.



 


Faça uma leitura atenta do poema “Manhãs brumosas”, de Cesário Verde, e responda, com precisão e clareza, aos questionários que se seguem.

 

QUESTIONÁRIO I

1. O poeta procura fixar a “impressão” que a realidade lhe deixa na sensibilidade.

1.1. Refira o elemento real que lhe provoca essa “impressão”.

1.2. Interprete a transfiguração do real operada pelo sujeito poético.

1.3. Registe as formas verbais que marcam essa transfiguração.

2. Atente nos dois últimos versos da 4.ª estrofe. Neles são utilizadas duas figuras de estilo caracterizadoras de determinados sentimentos.

2.1. Identifique essas figuras de estilo.

2.2. Comente a sua utilização tendo em conta os sentimentos expressos e o espaço evocado.

3. "Pinto quadros, por letras. por sinais" é uma afirmação de Cesário, facilmente identificada nos seus poemas.

Não ultrapassando as oito linhas, explicite os elementos que tornam evidente essa opção na obra poética de Cesário.

 

Sugestões para a correção:

1.1. O elemento real que lhe provoca a impressão é "Aquela" que "Põe o chapéu ao lado, abre o cabelo à banda", "Ela".

1.2. O sujeito poético deixa de "ver" o que observava para se evadir no espaço e no tempo. Esse real transfigura-se e surge então: "Uma pastora audaz da religiosa Irlanda".

1.3. As formas verbais que marcam o momento da transfiguração são: "Lembra-me"; "Sugere-me"; "Parece".

2.1. 5.° verso - metáfora

6.° verso - comparação.

2.2. As duas figuras de estilo remetem para a interpretação do elemento humano (sentimento amoroso - "mágoas" e "desdéns") com a natureza.

3. - O real exterior apreendido pelo mundo interior que o interpreta e recria (através de letras e sinais - a escrita);

     - A pintura de imagens típicas de modo a dar uma dimensão realista do mundo concreto que o rodeia;

     - A subversão da realidade através da arte poética:

• A cidade torna-se campo;

• Os frutos tomam-se seres.

     O referente estático pré-existente dá lugar à vida através da escrita o que marca a subjetividade lírica na escrita de Cesário.

NOTA: Os alunos poderão lambem referir-se a alguns dos poemas analisados para exemplificar que pretendem demonstrar, sem que esse facto altere, no entanto, a cotação a atribuir, visto tal não ser exigido na questão apresentada.

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 139. 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto). Cursos Gerais e Cursos Tecnológicos. Prova Escrita de Português B. Portugal, GAVE, Prova modelo de 1996

 

Vladimir Volegov, 2019-06

QUESTIONÁRIO II

1. Caracterize o espaço representado no texto.

2. Trace o retrato, físico e psicológico, da figura feminina.

3. Explicite a importância das referências temporais presentes no poema.

4. Refira o sentido produzido pela quase repetição da primeira sextilha na última estrofe.

5. Analise os sentimentos que «ela» desperta no sujeito poético.

 

Explicitação de cenários de resposta:

1. O espaço representado é:

- simultaneamente marítimo e rural;

- constituído por praias, uma zona de falésia («estas asperezas»), uma paisagem acidentada predominantemente campestre («país de prados e barrancos»);

- evocativo das paisagens da Irlanda.

 

2. A figura feminina surge retratada, no plano físico, do seguinte modo:

- é «morena», com olhos pequenos e vivos («olhos de perdiz»), «redondos e castanhos», alta e magra («altos pés», «Alta, escorrida»), mas robusta («grossos tornozelos»); tem um tom de voz firme («forte»), simultaneamente melódico («cantada») e impositivo («com que ordena»), marcado por «inflexões inglesas» e fazendo lembrar uma irlandesa (cf. v. 6);

- tem um aspeto prático, quase masculino e rural, usando «o chapéu ao lado», «o cabelo à banda», «Sem brincos nas orelhas» - «Parece um 'rural boy'!». A sua feminilidade transparece, apenas, nas referências ao seu «vestido claro» e justo;

- …

 

Emergem ainda, do texto, certas características psicológicas. Assim, trata-se de uma mulher:

- determinada e audaciosa;

- simples, prática e descontraída;

- distante e desdenhosa perante o sentimento amoroso do sujeito poético;

- …

 

3. As formas verbais no presente do indicativo definem o presente como o tempo representado no poema. O título «Manhãs Brumosas», os elementos do texto «de manhã» (w. 4 e 28), «névoa azul» (v. 8) e «época de banhos» (v. 10), situam esse presente em repetidas manhãs enevoadas de Verão. A referência à época estival e a imagem «Manhãs Brumosas» concorrem para acentuar, no poema, o erotismo do desejo do «eu» e sua irrealização.

 

4. A primeira e a última estrofes do poema são praticamente idênticas, registando-se, apenas, pequenas modificações do sentido inicial, resultantes da inclusão da conjunção coordenativa «E» e da substituição da palavra «bucólica» (lª estrofe) por «católica» (5ª estrofe). Confere-se, assim, ao poema uma estrutura circular que, pela quase repetição do princípio no final, reitera e enfatiza certos aspetos temáticos. Nomeadamente:

- o sentimento de frustração amorosa;

- a atração pelo tipo feminino da mulher irlandesa e o fascínio pelo país que evoca - a Irlanda;

- …

 

5. Os sentimentos que «ela» desperta no «eu» - um «inglês» -, definidos globalmente no primeiro verso como um amor que é causa de intensa mágoa, evoluem do seguinte modo ao longo do poema:

- atração e fascínio;

- desejo intenso;

- encantamento pelo imaginário da cultura irlandesa por «ela» convocado;

- mágoa resignada face ao desdém que «ela» manifesta - mágoa que o reiterar da expressão «tanta pena», na última estrofe, sublinha e intensifica.

 

(Fonte: Português B: questões de exame do 12.º ano: 1998-2003. Volume 1. Lisboa, GAVE, 2004)

 

Vladimir Volegov, Detail of “Light breeze at dunes”, 2016

 

TEXTO DE APOIO

Os Pontos e as Brumas de um Cesário-Seurat

Este artigo tem por objetivo estabelecer relações entre a poesia e a pintura impressionistas a partir de Manhãs Brumosas de Joaquim José Cesário Verde (1855-1886) (3), mostrando uma construção verbal que traz semelhanças com procedimentos pictóricos.

O poema acima transcrito é composto de cinco sextetos e foi escrito na Foz do Tejo, em 1877, e publicado no Porto, em Renascença, em 1879 (Serrão 1992: 138). Trata-se de um retrato impressionista de mulher, cuja descrição que se constrói através de imagens pictóricas: é "identificada com o campo e com o mar - espaços simbólicos da mesma liberdade" e "recorda ao poeta 'uma pastora audaz da religiosa Irlanda' (Macedo 1986:127)".

Juntamente com o subtítulo - (versos dum inglês) - , o poema se parece com uma pintura: o gesto da mulher (Põe o chapéu ao lado, abre o cabelo à banda) provoca no eu poético uma impressão: lembra-me uma pastora audaz da religiosa Irlanda. Esse mesmo subtítulo também "lança uma luz inesperada sobre essa associação: para um inglês, a Irlanda rural tinha um valor semântico equivalente ao do campo para o lisboeta do 'Setentrional' (idem: ibidem)".

A voz da mulher provoca sensações meio disparatadas e sinestésicas: na névoa azul, a caça, as pescas, os rebanhos! - como que procurando um caminho semelhante aos altos pés que representam asperezas na busca da expressão e na confusão de impressões que a presença feminina traz.

Cinco sextetos com versos altamente musicais, de certa forma equilibrados por um ritmo e uma métrica impecáveis. Um título bem elaborado. Um poema-pintura, mas também um poema-música. Além da análise de Helder Macedo (1986: 126-128), somente uma referência sobre essa poesia (Figueiredo 1986: 141). Quase um poema que passa esquecido, pois está inserto entre Em Petiz e O Sentimento dum Ocidental no livro organizado por Joel Serrão.

É uma poesia-pintura realista impressionista. As cores percorrem o poema como se ele fosse uma pintura, enquanto a descritividade nos traz elementos da realidade, o retrato da mulher que lembra uma pastora audaz da religiosa Irlanda.

Poderia ser uma canção, de tom romântico, se não fosse a descrição entrecortada, o fragmento que altera a visão ideal da paisagem e da mulher.

A musicalidade do poema, em versos de doze sílabas, nos remete a um ouvir o que lemos ou falamos (e às vezes nos deixa sem entender o sentido dos versos):

Aquela, cujo amor me causa tanta pena,

Não é só a expressão brumosas que dá o tom impressionista a este poema, nem tão-somente o fato de ser um retrato de mulher, tema também da pintura. Há toda uma construção verbal por meio de fragmentos metonímicos que se metaforizam. Ao ler o poema, vem-nos à mente uma tela de Georges Seurat ou de Paul Signac, em que tudo se constrói com pontos-cores ou pontos-palavras. Independentemente da temática, as telas A ponte em Courbevoie, de Seurat, o Rio Sena em Asnières, de Paul Signac, trazem os procedimentos composicionais de Manhãs Brumosas.

As frases entrecortadas produzem uma construção por pontos-palavras: aquela (v1e1) põe o chapéu ao lado, abre o cabelo à banda (v2e1) e com a forte voz cantada que ordena (v3e1); ou então: por entre o campo e o mar, bucólica, morena, (v5e1) e lembra uma pastora audaz da religiosa Irlanda (v6e1).

A presença de brumas na manhã acompanha o poema e a mulher que é descrita pelo olhar, pelas sensações que ela provoca e pelas nuances do seu retrato físico e psicológico. É aquela mulher cujo amor causa pena, mas que tem voz cantada forte que ordena e lembra uma pastora audaz da religiosa Irlanda. Uma espécie de mulher, deusa, mãe, protetora - essas são as impressões que as palavras-pinceladas apresentam.

Há toda uma linguagem poética que se constrói através do processo pictórico, por meios de pinceladas rápidas, ou de manchas, ou de pontos coloridos: a mulher põe o chapéu ao lado, abre o cabelo à banda, traz um vestido claro, botões a tiracolo e aplicações vermelhas.

Na estrofe 1, manhã define a claridade do chapéu ao lado e do cabelo à banda e até determina o som (claro, feliz) da forte voz cantada com que ordena e faz o eu-poético lembrar (imaginar, associar, mostrar impressões) a pastora da Irlanda.

A descritividade é construída por umas poucas palavras reais, se usarmos a denominação de Manuel Rodrigues Lapa: aquela - amor - chapéu - cabelo - voz - pastora - Irlanda. Inúmeros versos do poeta são formados apenas de substantivos, o que demonstra uma preocupação com a síntese, como é o caso do segundo verso da estrofe três: E as redes, a manteiga, os queijos, as choupanas.

Na estrofe 2, versos 1 a 3, a construção pontilhista se faz evidente e deixa entrever uma construção poético-pictórica:

Que línguas fala? Ao ouvir as inflexões inglesas,

- Na névoa azul, a caça, as pescas, os rebanhos! –

Sigo-lhe os altos pés por estas asperezas.

O verso dois intercala imagens e cores: azul (névoa), marrom (caça e rebanho).

Se a irlandesa agrada o eu-poético, há uma atitude que vê, independentemente da idealização. Isso é uma constante na poesia de Cesário sobre ou para as mulheres: elas têm qualidades e defeitos.

Interessante notar a construção de um diálogo metafórico a partir de Que línguas fala?, que se faz por um processo impressionista: há inflexões inglesas cujo sentido se constrói por imagens apresentadas por substantivos - névoa azul, caça, pescas, rebanhos, altos pés, aves de arribação, olhos de perdiz - que condicionam a um olhar feito por analogias com a vida rural.

A terceira estrofe se constrói de forma semelhante: a mulher que ele vê se assemelha a uma irlandesa e tem também desmazelos, como o fato de descobrir os grossos tornozelos. Ver os tornozelos dessa mulher alta, escorrida, abstrata, sugere-lhe outras sensações que se condensam em substantivos: naufrágio, músicas, gelos, redes, manteiga, queijos, choupanas. Toda a construção verbal se efetiva através de imagens do cotidiano rural, como se o poeta pintasse muitas cenas que vão passando pela sua mente e formam movimento, através de uma sequência de imagens-palavras, como fotogramas de um filme.

Na quarta estrofe, há uma tentativa de síntese: a irlandesa se assemelha a um rural boy, "maria-rapaz, tão confortavelmente ao gosto do inglês" (idem: ibidem). A descrição também "pinta" a mulher: sem brincos, vestido claro, botões a tiracolo, aplicações vermelhas. Da visão particular da mulher, há um plano geral ou segundo plano que descreve: país de prados e barrancos. A essa imagem o eu-poético justapõe e contrapõe mágoas = mansíssimas ovelhas X desdéns = vitelos brancos, para indicar cores e seres do mundo rural.

A quinta estrofe é quase a repetição da primeira, exceto quanto a substituição de bucólica por católica (quinto verso). Funciona como refrão, o que nos faz supor uma cantiga, até pela grande musicalidade do poema.

A cinco estrofes formam um retrato de mulher com base numa descrição composta por frases nominais e parataxes, na maioria dos versos. Traz alguma semelhança com alguns perfis femininos de Camões (Um mover de olhos, brando e piedoso) e de Filinto Elísio (Uns lindos olhos, vivos, bem rasgados), guardadas as devidas proporções. Enquanto que há uma descrição física e psicológica, e também idealizada, em Camões, enquanto Filinto Elísio se mantém numa descrição física que enaltece a beleza também idealizada da sua Márcia, Cesário Verde é capaz de descrever o que vê e separar isso do que sente, o que deixa claro com verbos como lembra-me, sugere-me, ou em versos que indicam uma metáfora, uma situação onírica, como: O meu desejo nada em época de banhos, Se as minhas mágoas vão, mansíssimas ovelhas, Correm os seus desdém, como vitelos brancos.

Ler Manhãs Brumosas é semelhante a ver um retrato de mulher cujo pano de fundo é uma paisagem rural. Mulher construída por pontos-palavras ou manchas-palavras numa espécie de brumas em que, verso a verso, Cesário nos revela o que ele vê e o que ele sente. Parece-nos tão cheio de observações e, ao mesmo tempo, tão imbuído do espírito da síntese, que o sentido se constrói pelas palavras "como representação do mundo e do pensamento, como instrumento de comunicação, como forma de ação e interação. É um descobrir uma espécie de pressa em dizer tudo com poucas palavras, o que leva o poeta a uma construção por imagens-palavras.

Não foi à toa que Fernando Pessoa o considerou um dos três mestres da Modernidade, ao lado de Antero de Quental e Camilo Pessanha, com os quais Cesário Verde mostra algumas semelhanças. Nessa construção sintética, e nesse apoio nas artes plásticas, é que parece residir o aspeto inovador e prenunciador da poesia modernista portuguesa, razão por que até hoje Cesário Verde é lembrado, citado, seguido, e lido.

 

BIBLIOGRAFIA

FIGUEIREDO, João Pinto de.

1981 - Cesário Verde: a obra e o homem. Lisboa, Arcádia.

1986 - A vida de Cesário Verde. 2.ed., Lisboa, Editorial Presença.

LAPA, Manuel Rodrigues (1998). Estilística da língua portuguesa. SP, Martins Fontes.

MACEDO, Helder.

1986a - Nós: uma leitura de Cesário Verde. 3ª ed. Lisboa, Dom Quixote.

1986b - "Cesário Verde: o bucolista do realismo", em David Mourão-Ferreira (dir.), Colóquio/Letras, revista, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, nº 93, p. 20-28.

PESSOA, Fernando.

1974 - Fernando Pessoa: obras em prosa. 1.ed. RJ, Aguillar, p.116,129,384,385,419-420.

1980 - Ficções de interlúdio/1: poemas completos de Alberto Caeiro. 6.ed. RJ, Nova Fronteira, p.28,36,140.

1983 - Ficções de interlúdio/4: poesias de Álvaro de Campos. 3.ed. RJ, Nova Fronteira, p.33-37.

1986 - O livro do desassossego por Bernardo Soares. SP, Brasiliense, p.81-82,121.

SARAIVA, António José (1994). Iniciação na Literatura Portuguesa. 1.ed., Lisboa, Gradiva, p.133-138.

SARAIVA, António José & LOPES, Óscar (1989). História da literatura portuguesa. 15.ed., Porto, Porto Ed., p. 654, 728, 831, 963, 966, 985, 989-992, 997-999, 1030-1031, 1072, 1126, 1147.

SERRÃO, Joel (org.) (1992). Obra completa de Cesário Verde. 6.ed. Lisboa, Livros Horizonte.

 

Jorge Luiz Antonio, “Os Pontos e as Brumas de um Cesário-Seurat”, in Ciberkiosk. Lisboa, 2001. Disponível em http://www.ciberkiosk.pt/ensaios/jluizantonio.html (consultado em 2002-12-14)

  

 

Poderá também gostar de:

 



CARREIRO, José. “Manhãs brumosas, Cesário Verde”. Portugal, Folha de Poesia, 27-11-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/manhas-brumosas-cesario-verde.html



sábado, 26 de novembro de 2022

Arrojos, Cesário Verde


 

FANTASIAS DO IMPOSSÍVEL

ARROJOS1

 






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25





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Se a minha amada um longo olhar me desse 
Dos seus olhos que ferem como espadas, 
Eu domaria o mar que se enfurece 
E escalaria as nuvens rendilhadas. 

Se ela deixasse, extático2 e suspenso 
Tomar-lhe as mãos mignonnes3 e aquecê-las, 
Eu com um sopro enorme, um sopro imenso 
Apagaria o lume das estrelas. 

Se aquela que amo mais que a luz do dia, 
Me aniquilasse os males taciturnos4,
O brilho dos meus olhos venceria 
O clarão dos relâmpagos nocturnos. 

Se ela quisesse amar, no azul do espaço, 
Casando as suas penas com as minhas, 
Eu desfaria o Sol como desfaço 
As bolas de sabão das criancinhas.

Se a Laura5 dos meus loucos desvarios 
Fosse menos soberba6 e menos fria, 
Eu pararia o curso aos grandes rios 
E a terra sob os pés abalaria.

Se aquela por quem já não tenho risos 
Me concedesse apenas dois abraços, 
Eu subiria aos róseos7 paraísos 
E a Lua afogaria nos meus braços.

Se ela ouvisse os meus cantos moribundos 
E os lamentos das cítaras8 estranhas, 
Eu ergueria os vales mais profundos 
E abateria as sólidas montanhas.

E se aquela visão da fantasia 
Me estreitasse ao peito alvo como arminho9,
Eu nunca, nunca mais me sentaria 
Às mesas espelhentas do Martinho10.

Cesário Verde

Lisboa, Diário de Notícias, 22 de março de 1874

Obra Completa (org. Joel Serrão), Lisboa, Livros Horizonte, 1988

 

___________

[1] extático: em êxtase; maravilhado.

[2] mignonnes (palavra francesa): delicadas; graciosas; pequenas.

[3] taciturnos: calados; tristes.

[4] Laura: a mulher celebrada pelo poeta italiano Petrarca, apresentada como amada inacessível.

[5] soberba: altiva; arrogante.

[6] róseos: da cor das rosas; rosados.

[7] cítaras: instrumentos musicais de cordas.

[8] arminho: animal das regiões polares, de pêlo macio e, no Inverno, muito branco.

[9] Martinho: café lisboeta.

 



 

Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas ao questionário sobre o poema “Arrojos”, de Cesário Verde.

1. «Arrojos» foi publicado em conjunto com dois outros poemas de Cesário sob o antetítulo comum «Fantasias do Impossível».

Explicite as relações de sentido que este antetítulo estabelece com o texto.

2. Identifique quatro dos traços que caracterizam a figura feminina, documentando-os com elementos do texto.

3. Indique um dos efeitos de sentido da hipérbole presente nos versos: «Eu com um sopro enorme, um sopro imenso /Apagaria o lume das estrelas» (vv. 7-8).

4. Refira a importância dos dois últimos versos para a interpretação do poema.

5. Analise a relação do «eu» com a «amada», tal como é expressa no discurso poético.

 

Explicitação de cenários de resposta:

1. Através dos dois primeiros versos de cada uma das quadras do poema, vai-se tecendo a fantasia de uma paixão feliz (ele fantasia aquilo que faria com a amada se esta o permitisse): as sucessivas orações condicionais assinalam o carácter hipotético, não real, dessa felicidade. Assim se sugere uma série de «Fantasias do Impossível», anunciadas no antetítulo e depois desenvolvidas nos dois últimos versos de cada quadra, em que se projetam as ações sobre-humanas com que o «eu» celebraria a plenitude de tal paixão (se ela fosse real).

2. Afigura feminina apresenta os seguintes traços caracterizadores:

- sedutora, olhar cortante (glacial): «olhos que ferem como espadas» (v. 2);

- delicada, mãos pequenas e graciosas: «mãos mignonnes» (v. 6);

- amada inacessível: «a Laura» (v. 17);

- influência perversa sobre o «eu»: «a Laura dos meus loucos desvarios» (v. 17);

- arrogância e vaidade: «soberba» (v. 18);

- insensibilidade e indiferença: «fria» (v. 18);

- distância e irrealidade: «aquela visão da fantasia» (v. 29);

- pele muito branca (e macia): «peito alvo como arminho» (v. 30);

- …

Nota - Recorda-se que o enunciado da pergunta requer a apresentação de quatro traços caracterizadores.

3. A hipérbole, presente nos versos «Eu com um sopro enorme, um sopro imenso /Apagaria o lume das estrelas», produz, entre outros, os seguintes efeitos de sentido:

- exprime a intensidade da paixão;

- representa a força da paixão feliz, capaz de conferir os poderes sobre-humanos que permitem ao sujeito dominar as forças da Natureza;

- sugere, pelo desmesurado excesso da expressão (que se mantém, ao longo do poema, pelo menos até à penúltima estrofe), a presença de auto-ironia na atitude do «eu»;

- …

Nota - Recorda-se que o enunciado da pergunta requer a apresentação de um dos efeitos de sentido.

4. Os dois versos finais têm um marcado cunho irónico, porque apresentam como a mais ousada das audácias (dos «Arrojes») do «eu», apaixonado e feliz, aquela que não passa do corte com um hábito, próprio do quotidiano citadino: ir a um determinado café. Desta forma, estes versos evidenciam o carácter lúdico e irónico da composição (já enunciado ou sugerido pelo empolamento da linguagem hiperbólica presente ao longo do poema).

5. A relação do «eu» com a «amada» é marcada pelo desequilíbrio: à paixão do «eu» («aquela que amo mais que a luz do dia» - v. 9) correspondem a distância e a inacessibilidade do seu objeto, só transponíveis pela fantasia, pelos «Arrojos» da imaginação.

O poema é a expressão dessa fantasia. Nessa relação sonhada, o «eu», formulando de diferentes modos o desejo de que a «amada» corresponda aos seus votos de amor, representa-se expectante e suspenso, manifestando, por um lado, a consciência da impossibilidade da realização dos seus desejos e sugerindo, por outro lado, a atitude do «eu» enlevado na sua própria fantasia (que, a realizar-se, o transfiguraria em sujeito de ações sobre-humanas).

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 139. 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto). Cursos Gerais e Cursos Tecnológicos. Prova Escrita de Português B. Portugal, GAVE, 2003, 1.ª fase, 2.ª chamada

 

Poderá também gostar de:

 

  • Comentário do poema “Arrojos”, de Cesário Verde, por Maria Figueiredo e Maria Belo, em Comentar um texto literário. Lisboa, Editorial Presença, 1999 (6.ª ed.), pp. 76.85