Vladimir Volegov, Beginning of purple summer, 2014 |
Manhãs brumosas
(versos de um inglês)
|
Aquela,
cujo amor me causa tanta pena[1], |
Cesário Verde
Foz do Tejo, 1877
Porto, Renascença, 1879, p. 155
_________
[1] Na
edição de O Livro de Cesário Verde (1887), elaborada por Silva Pinto, o
verso é: E aquela, cujo amor me causa alguma pena.
[2] Campestre; simples.
[3] Mudanças no tom de voz.
[4] Rudezas.
[5] ave que vem por pouco
tempo a uma região; indivíduo que demora pouco tempo no lugar onde foi
colocado.
[6] Altivas.
[7] da serra ou a ela
relativo; montesino.
[8] Rapaz do campo.
[9] Ravinas; precipícios.
Faça uma leitura atenta do poema
“Manhãs brumosas”, de Cesário Verde, e responda, com precisão e clareza, aos
questionários que se seguem.
QUESTIONÁRIO I
1. O poeta
procura fixar a “impressão” que a realidade lhe deixa na sensibilidade.
1.1. Refira o elemento real que lhe provoca
essa “impressão”.
1.2. Interprete a transfiguração do real
operada pelo sujeito poético.
1.3. Registe as formas verbais que marcam essa
transfiguração.
2. Atente
nos dois últimos versos da 4.ª estrofe. Neles são utilizadas duas figuras de
estilo caracterizadoras de determinados sentimentos.
2.1. Identifique essas figuras de estilo.
2.2. Comente a sua utilização tendo em conta os
sentimentos expressos e o espaço evocado.
3. "Pinto
quadros, por letras. por sinais" é uma afirmação de Cesário, facilmente
identificada nos seus poemas.
Não
ultrapassando as oito linhas, explicite os elementos que tornam evidente essa
opção na obra poética de Cesário.
Sugestões para a correção:
1.1. O elemento
real que lhe provoca a impressão é "Aquela" que "Põe o chapéu ao
lado, abre o cabelo à banda", "Ela".
1.2. O sujeito
poético deixa de "ver" o que observava para se evadir no espaço e no
tempo. Esse real transfigura-se e surge então: "Uma pastora audaz da
religiosa Irlanda".
1.3. As formas
verbais que marcam o momento da transfiguração são: "Lembra-me"; "Sugere-me";
"Parece".
2.1. 5.° verso
- metáfora
6.°
verso - comparação.
2.2. As duas
figuras de estilo remetem para a interpretação do elemento humano (sentimento
amoroso - "mágoas" e "desdéns") com a natureza.
3. - O real
exterior apreendido pelo mundo interior que o interpreta e recria (através de
letras e sinais - a escrita);
- A pintura de imagens típicas de modo a dar
uma dimensão realista do mundo concreto que o rodeia;
- A subversão da realidade através da arte
poética:
• A cidade torna-se campo;
• Os frutos tomam-se seres.
O referente estático pré-existente dá lugar à
vida através da escrita o que marca a subjetividade lírica na escrita de Cesário.
NOTA: Os alunos poderão lambem referir-se a alguns
dos poemas analisados para exemplificar que pretendem demonstrar, sem que esse
facto altere, no entanto, a cotação a atribuir, visto tal não ser exigido na questão
apresentada.
Vladimir Volegov, 2019-06 |
QUESTIONÁRIO II
1.
Caracterize o espaço representado no texto.
2. Trace o
retrato, físico e psicológico, da figura feminina.
3.
Explicite a importância das referências temporais presentes no poema.
4. Refira o
sentido produzido pela quase repetição da primeira sextilha na última estrofe.
5. Analise
os sentimentos que «ela» desperta no sujeito poético.
Explicitação de cenários de resposta:
1. O espaço
representado é:
- simultaneamente marítimo e rural;
- constituído por praias, uma zona de
falésia («estas asperezas»), uma paisagem acidentada predominantemente
campestre («país de prados e barrancos»);
- evocativo das paisagens da Irlanda.
2. A figura
feminina surge retratada, no plano físico, do seguinte modo:
- é «morena», com olhos pequenos e vivos
(«olhos de perdiz»), «redondos e castanhos», alta e magra («altos pés», «Alta,
escorrida»), mas robusta («grossos tornozelos»); tem um tom de voz firme
(«forte»), simultaneamente melódico («cantada») e impositivo («com que ordena»),
marcado por «inflexões inglesas» e fazendo lembrar uma irlandesa (cf. v. 6);
- tem um aspeto prático, quase masculino e
rural, usando «o chapéu ao lado», «o cabelo à banda», «Sem brincos nas orelhas»
- «Parece um 'rural boy'!». A sua feminilidade transparece, apenas, nas
referências ao seu «vestido claro» e justo;
- …
Emergem ainda, do texto, certas
características psicológicas. Assim, trata-se de uma mulher:
- determinada e audaciosa;
- simples, prática e descontraída;
- distante e desdenhosa perante o
sentimento amoroso do sujeito poético;
- …
3. As formas
verbais no presente do indicativo definem o presente como o tempo representado
no poema. O título «Manhãs Brumosas», os elementos do texto «de manhã» (w. 4 e
28), «névoa azul» (v. 8) e «época de banhos» (v. 10), situam esse presente em
repetidas manhãs enevoadas de Verão. A referência à época estival e a imagem
«Manhãs Brumosas» concorrem para acentuar, no poema, o erotismo do desejo do
«eu» e sua irrealização.
4. A primeira e
a última estrofes do poema são praticamente idênticas, registando-se, apenas,
pequenas modificações do sentido inicial, resultantes da inclusão da conjunção
coordenativa «E» e da substituição da palavra «bucólica» (lª estrofe) por
«católica» (5ª estrofe). Confere-se, assim, ao poema uma estrutura circular
que, pela quase repetição do princípio no final, reitera e enfatiza certos aspetos
temáticos. Nomeadamente:
- o sentimento de frustração amorosa;
- a atração pelo tipo feminino da mulher
irlandesa e o fascínio pelo país que evoca - a Irlanda;
- …
5. Os
sentimentos que «ela» desperta no «eu» - um «inglês» -, definidos globalmente
no primeiro verso como um amor que é causa de intensa mágoa, evoluem do
seguinte modo ao longo do poema:
- atração e fascínio;
- desejo intenso;
- encantamento pelo imaginário da cultura
irlandesa por «ela» convocado;
- mágoa resignada face ao desdém que «ela»
manifesta - mágoa que o reiterar da expressão «tanta pena», na última estrofe,
sublinha e intensifica.
(Fonte: Português B: questões de exame do 12.º ano:
1998-2003. Volume 1. Lisboa, GAVE, 2004)
Vladimir Volegov, Detail of “Light breeze at dunes”, 2016 |
TEXTO DE APOIO
Os Pontos e as Brumas de um Cesário-Seurat
Este artigo tem
por objetivo estabelecer relações entre a poesia e a pintura impressionistas a
partir de Manhãs Brumosas de Joaquim José Cesário Verde (1855-1886) (3),
mostrando uma construção verbal que traz semelhanças com procedimentos
pictóricos.
O poema acima
transcrito é composto de cinco sextetos e foi escrito na Foz do Tejo, em 1877,
e publicado no Porto, em Renascença, em 1879 (Serrão 1992: 138).
Trata-se de um retrato impressionista de mulher, cuja descrição que se constrói
através de imagens pictóricas: é "identificada com o campo e com o mar -
espaços simbólicos da mesma liberdade" e "recorda ao poeta 'uma
pastora audaz da religiosa Irlanda' (Macedo 1986:127)".
Juntamente com o
subtítulo - (versos dum inglês) - , o poema se parece com uma pintura: o
gesto da mulher (Põe o chapéu ao lado, abre o cabelo à banda) provoca no
eu poético uma impressão: lembra-me uma pastora audaz da religiosa Irlanda.
Esse mesmo subtítulo também "lança uma luz inesperada sobre essa
associação: para um inglês, a Irlanda rural tinha um valor semântico
equivalente ao do campo para o lisboeta do 'Setentrional' (idem: ibidem)".
A voz da mulher
provoca sensações meio disparatadas e sinestésicas: na névoa azul, a caça,
as pescas, os rebanhos! - como que procurando um caminho semelhante aos
altos pés que representam asperezas na busca da expressão e na confusão
de impressões que a presença feminina traz.
Cinco sextetos
com versos altamente musicais, de certa forma equilibrados por um ritmo e uma
métrica impecáveis. Um título bem elaborado. Um poema-pintura, mas também um
poema-música. Além da análise de Helder Macedo (1986: 126-128), somente uma
referência sobre essa poesia (Figueiredo 1986: 141). Quase um poema que passa
esquecido, pois está inserto entre Em Petiz e O Sentimento dum Ocidental
no livro organizado por Joel Serrão.
É uma
poesia-pintura realista impressionista. As cores percorrem o poema como se ele
fosse uma pintura, enquanto a descritividade nos traz elementos da realidade, o
retrato da mulher que lembra uma pastora audaz da religiosa Irlanda.
Poderia ser uma
canção, de tom romântico, se não fosse a descrição entrecortada, o fragmento
que altera a visão ideal da paisagem e da mulher.
A musicalidade do
poema, em versos de doze sílabas, nos remete a um ouvir o que lemos ou falamos
(e às vezes nos deixa sem entender o sentido dos versos):
Aquela, cujo amor
me causa tanta pena,
Não é só a
expressão brumosas que dá o tom impressionista a este poema, nem tão-somente o
fato de ser um retrato de mulher, tema também da pintura. Há toda uma
construção verbal por meio de fragmentos metonímicos que se metaforizam. Ao ler
o poema, vem-nos à mente uma tela de Georges Seurat ou de Paul Signac, em que
tudo se constrói com pontos-cores ou pontos-palavras. Independentemente da
temática, as telas A ponte em Courbevoie, de Seurat, o Rio Sena em
Asnières, de Paul Signac, trazem os procedimentos composicionais de Manhãs
Brumosas.
As frases
entrecortadas produzem uma construção por pontos-palavras: aquela (v1e1) põe o
chapéu ao lado, abre o cabelo à banda (v2e1) e com a forte voz cantada que
ordena (v3e1); ou então: por entre o campo e o mar, bucólica, morena, (v5e1) e
lembra uma pastora audaz da religiosa Irlanda (v6e1).
A presença de brumas
na manhã acompanha o poema e a mulher que é descrita pelo olhar, pelas
sensações que ela provoca e pelas nuances do seu retrato físico e psicológico.
É aquela mulher cujo amor causa pena, mas que tem voz cantada
forte que ordena e lembra uma pastora audaz da religiosa Irlanda.
Uma espécie de mulher, deusa, mãe, protetora - essas são as impressões que as
palavras-pinceladas apresentam.
Há toda uma
linguagem poética que se constrói através do processo pictórico, por meios de
pinceladas rápidas, ou de manchas, ou de pontos coloridos: a mulher põe o
chapéu ao lado, abre o cabelo à banda, traz um vestido claro, botões a tiracolo
e aplicações vermelhas.
Na estrofe 1, manhã
define a claridade do chapéu ao lado e do cabelo à banda e até determina
o som (claro, feliz) da forte voz cantada com que ordena e faz o
eu-poético lembrar (imaginar, associar, mostrar impressões) a pastora da
Irlanda.
A descritividade
é construída por umas poucas palavras reais, se usarmos a denominação de Manuel
Rodrigues Lapa: aquela - amor - chapéu - cabelo - voz - pastora - Irlanda.
Inúmeros versos do poeta são formados apenas de substantivos, o que demonstra
uma preocupação com a síntese, como é o caso do segundo verso da estrofe três: E
as redes, a manteiga, os queijos, as choupanas.
Na estrofe 2,
versos
Que línguas fala?
Ao ouvir as inflexões inglesas,
- Na névoa azul,
a caça, as pescas, os rebanhos! –
Sigo-lhe os altos
pés por estas asperezas.
O verso dois
intercala imagens e cores: azul (névoa), marrom (caça e rebanho).
Se a irlandesa
agrada o eu-poético, há uma atitude que vê, independentemente da idealização.
Isso é uma constante na poesia de Cesário sobre ou para as mulheres: elas têm
qualidades e defeitos.
Interessante
notar a construção de um diálogo metafórico a partir de Que línguas fala?,
que se faz por um processo impressionista: há inflexões inglesas cujo
sentido se constrói por imagens apresentadas por substantivos - névoa azul,
caça, pescas, rebanhos, altos pés, aves de arribação, olhos de perdiz - que
condicionam a um olhar feito por analogias com a vida rural.
A terceira
estrofe se constrói de forma semelhante: a mulher que ele vê se assemelha a uma
irlandesa e tem também desmazelos, como o fato de descobrir os grossos
tornozelos. Ver os tornozelos dessa mulher alta, escorrida, abstrata,
sugere-lhe outras sensações que se condensam em substantivos: naufrágio, músicas,
gelos, redes, manteiga, queijos, choupanas. Toda a construção verbal se efetiva
através de imagens do cotidiano rural, como se o poeta pintasse muitas cenas
que vão passando pela sua mente e formam movimento, através de uma sequência de
imagens-palavras, como fotogramas de um filme.
Na quarta
estrofe, há uma tentativa de síntese: a irlandesa se assemelha a um rural
boy, "maria-rapaz, tão confortavelmente ao gosto do inglês"
(idem: ibidem). A descrição também "pinta" a mulher: sem brincos,
vestido claro, botões a tiracolo, aplicações vermelhas. Da visão particular da
mulher, há um plano geral ou segundo plano que descreve: país de prados e
barrancos. A essa imagem o eu-poético justapõe e contrapõe mágoas = mansíssimas
ovelhas X desdéns = vitelos brancos, para indicar cores e seres do mundo rural.
A quinta estrofe
é quase a repetição da primeira, exceto quanto a substituição de bucólica
por católica (quinto verso). Funciona como refrão, o que nos faz supor uma
cantiga, até pela grande musicalidade do poema.
A cinco estrofes
formam um retrato de mulher com base numa descrição composta por frases nominais
e parataxes, na maioria dos versos. Traz alguma semelhança com alguns perfis
femininos de Camões (Um mover de olhos, brando e piedoso) e de Filinto
Elísio (Uns lindos olhos, vivos, bem rasgados), guardadas as devidas
proporções. Enquanto que há uma descrição física e psicológica, e também
idealizada, em Camões, enquanto Filinto Elísio se mantém numa descrição física
que enaltece a beleza também idealizada da sua Márcia, Cesário Verde é capaz de
descrever o que vê e separar isso do que sente, o que deixa claro com verbos
como lembra-me, sugere-me, ou em versos que indicam uma metáfora, uma
situação onírica, como: O meu desejo nada em época de banhos, Se as minhas
mágoas vão, mansíssimas ovelhas, Correm os seus desdém, como vitelos brancos.
Ler Manhãs Brumosas
é semelhante a ver um retrato de mulher cujo pano de fundo é uma paisagem
rural. Mulher construída por pontos-palavras ou manchas-palavras numa espécie de
brumas em que, verso a verso, Cesário nos revela o que ele vê e o que ele
sente. Parece-nos tão cheio de observações e, ao mesmo tempo, tão imbuído do
espírito da síntese, que o sentido se constrói pelas palavras "como
representação do mundo e do pensamento, como instrumento de comunicação, como
forma de ação e interação. É um descobrir uma espécie de pressa em dizer tudo
com poucas palavras, o que leva o poeta a uma construção por imagens-palavras.
Não foi à toa que
Fernando Pessoa o considerou um dos três mestres da Modernidade, ao lado de
Antero de Quental e Camilo Pessanha, com os quais Cesário Verde mostra algumas
semelhanças. Nessa construção sintética, e nesse apoio nas artes plásticas, é
que parece residir o aspeto inovador e prenunciador da poesia modernista
portuguesa, razão por que até hoje Cesário Verde é lembrado, citado, seguido, e
lido.
BIBLIOGRAFIA
FIGUEIREDO, João Pinto de.
1981 - Cesário Verde: a obra e o homem.
Lisboa, Arcádia.
1986 - A vida de Cesário Verde. 2.ed., Lisboa,
Editorial Presença.
LAPA, Manuel Rodrigues (1998). Estilística da
língua portuguesa. SP, Martins Fontes.
MACEDO, Helder.
1986a - Nós: uma leitura de Cesário Verde.
3ª ed. Lisboa, Dom Quixote.
1986b - "Cesário Verde: o bucolista do
realismo",
PESSOA, Fernando.
1974 - Fernando Pessoa: obras em prosa. 1.ed. RJ, Aguillar, p.116,129,384,385,419-420.
1980 - Ficções de interlúdio/1: poemas
completos de Alberto Caeiro. 6.ed. RJ, Nova Fronteira, p.28,36,140.
1983 - Ficções de interlúdio/4: poesias de
Álvaro de Campos. 3.ed. RJ, Nova Fronteira, p.33-37.
1986 - O livro do desassossego por Bernardo
Soares. SP, Brasiliense, p.81-82,121.
SARAIVA, António José (1994). Iniciação na
Literatura Portuguesa. 1.ed., Lisboa, Gradiva, p.133-138.
SARAIVA, António José & LOPES, Óscar (1989).
História da literatura portuguesa. 15.ed., Porto, Porto Ed., p. 654, 728, 831,
963, 966, 985, 989-992, 997-999, 1030-1031, 1072, 1126, 1147.
SERRÃO, Joel (org.) (1992). Obra completa de
Cesário Verde. 6.ed. Lisboa, Livros Horizonte.
Jorge Luiz Antonio, “Os Pontos e as Brumas de um
Cesário-Seurat”, in Ciberkiosk. Lisboa, 2001. Disponível em http://www.ciberkiosk.pt/ensaios/jluizantonio.html
(consultado em 2002-12-14)
Poderá também gostar de:
CARREIRO, José. “Manhãs
brumosas, Cesário Verde”. Portugal, Folha de Poesia, 27-11-2022.
Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/manhas-brumosas-cesario-verde.html
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