Crepita a madeira na lareira
crepita a velha ameixieira
seus veios são as minhas próprias veias
vejo arder as ameixas e o verão
crepita aquela que deu sombra e agora dá calor
crepita o melro o verdilhão o rouxinol
e em cada tronco palpita
o próprio sol.
Crepita o sumo que escorria
pelo seu rosto onde o tempo também ardeu
crepita a velha ameixieira
e quem com ela crepita
sou eu.
Águeda, Natal, 2001
Manuel
Alegre, Doze Naus. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2007
Leitura
"Requiem
pela velha ameixieira" é uma elegia que celebra a vida e a morte da velha
ameixieira, a árvore que em vida proporcionou sombra e frutos e que agora
aquece a casa com o seu fogo, e, no seu crepitar, o sujeito poético encontra
reflexões sobre a sua própria existência e a passagem do tempo.
O poema inicia com a imagem da
madeira a crepitar na lareira, estabelecendo um ritmo constante e evocativo. A
repetição da palavra “crepita” nos versos 1, 2, 5, 6, 9 e 11 cria uma musicalidade que imita o som
do fogo, reforçando a sensação de inevitabilidade e continuidade.Além
disso, a rima no final dos versos como "lareira"
com "ameixieira" e
"rouxinol"
com "sol",
assim como a rima interna no verso "Crepita a madeira na lareira",
contribui para a harmonia e fluidez do poema, tornando a leitura uma experiência quase auditiva.
A ligação
entre a árvore e o sujeito poético é explicitada no verso "seus veios são
as minhas próprias veias". Esta metáfora indica uma interdependência entre
a vida da árvore e a do sujeito poético, sugerindo que a morte da ameixieira
representa a morte de parte do próprio poeta. De igual modo, a referência ao sumo que escorria pelo
rosto da árvore sugere uma ligação íntima, quase como se a árvore fosse uma
extensão do próprio poeta. A árvore é um símbolo da sua juventude, dos
verões passados, das experiências e momentos que jamais se repetirão.
Observe-se ainda a simbologia
do verão da vida, que também arde, e da entrada numa fase de declínio - o outono.
Esta
estação, tradicionalmente associada ao auge da vitalidade e do crescimento,
transforma-se em combustível para o fogo que aquece o presente, simbolizando a
entrada do poeta numa fase de declínio, o outono de sua vida.
O poema é
uma oração pelo passado, uma aceitação do presente e uma contemplação do
inevitável futuro, convidando o leitor a refletir sobre a passagem do tempo e a
inevitabilidade da mudança.
Gabriel Medina, fotografado por Jerome Brouillet, 29-7-2024
O POEMA O poema vai e vem. E se demora não quer dizer que seja demorado mas que tem como tudo a sua hora e como tudo é sempre inesperado.
Por muito que se espere não se espera. Por mais que se construa é acaso e sorte. Às vezes quando vem já foi ou era. Porque assim é a vida. E assim a morte.
Por isso mesmo quando distraído ninguém como o poeta é tão atento. Ele sabe que de súbito há um sentido. Vem como o vento. E passa como o vento.
07-07-2005
Manuel
Alegre, Doze Naus. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2007
De acordo com a leitura
do poema de Manuel Alegre, classifica cada afirmação que se segue como verdadeira
ou falsa. Procede à correção das afirmações falsas.
1.O poema afirma que a
criação poética é algo previsível e controlado.
2.Segundo o poema, o poeta
é alguém que se distrai facilmente e, por isso, não percebe quando um poema
surge.
3.O verso "Por mais
que se construa é acaso e sorte" sugere que, apesar do esforço e do planeamento
na criação do poema, o resultado final pode depender de elementos imprevisíveis
e fortuitos.
4.No poema, a morte é
apresentada como um evento previsível, ao contrário da vida
5.O poeta, segundo o
poema, sabe identificar os momentos em que um poema pode surgir, mesmo que
esses momentos sejam súbitos e inesperados.
6.A expressão "O
poema vai e vem" sugere a natureza efémera e transitória da criação
poética.
7.De acordo com o poema, a
espera ativa pelo surgimento do poema é sempre recompensada.
8.O papel do poeta na
construção/criação do poema é estar atento para captar os sentidos que, sem
aviso, podem passar como o vento e aproveitar essas oportunidades.
9.O poeta deve estar
atento e sensível para perceber os momentos de inspiração e dar forma ao poema.
10.Manuel
Alegre escreveu sobre si próprio: "Se soubesse pintar (mas não sei) faria
o meu autorretrato a olhar para ontem, ou para dentro, ou para outro lado.
Distraído-concentrado, presente-ausente, um não sei que." (in http.www.manuelalegre.com). Podemos afirmar que Manuel
Alegre ao descrever-se
como “distraído-concentrado, presente-ausente,” reflete a sensibilidade do
poeta em relação aos sentidos e oportunidades que surgem inesperadamente.
11.A antítese é utilizada
no poema para contrastar a criação poética com a distração do poeta.
CORREÇÃO
1. Falso. O poema diz que o ato da criação poética "é sempre
inesperado."
2. Falso. O poema diz que "ninguém como o poeta é tão
atento" mesmo quando está distraído.
3. Verdadeiro.
4. Falso. A morte é apresentada como sendo tão inesperada quanto
a vida ("Porque assim é a vida. E assim a morte.").
5. Verdadeiro.
6. Verdadeiro.
7. Falso. O poema sugere que "Por muito que se espere não
se espera."
8. Verdadeiro.
9. Verdadeiro.
10. Verdadeiro.
11. Verdadeiro (A antítese é usada para mostrar que "quando
distraído / ninguém como o poeta é tão atento.")
De pé na frágil tábua onda a onda ele escrevia poesia sobre a água.
Era uma escrita tão una de tão perfeita harmonia que o que ficava na espuma
não se podia apagar: era a própria grafia do poema do mar.
Foz do Arelho, agosto
de 2001
Manuel
Alegre, Doze Naus. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2007
Niterói, Luiz Bhering
Análise
comparativa entre “Surf” e "O poema", de Manuel Alegre
O poema “Surf” de Manuel
Alegre apresenta a figura do surfista como um criador que, de pé na sua frágil
tábua, escreve poesia sobre a água. Este ato de criar, mesmo que efémero,
resulta em algo harmonioso e perfeito, uma "grafia do poema do mar"
que, apesar de ser escrita na espuma, não se pode apagar.
O poema “Surf” pode ser visto
como o resultado de uma dessas visões inspiradoras que o sujeito poético em “O
poema” descreve: "Por isso mesmo quando distraído / ninguém como o poeta é
tão atento. / Ele sabe que de súbito há um sentido. / Vem como o vento. E passa
como o vento."
Em “O poema”, o sujeito
poético afirma que o poeta está atento ao que o rodeia porque sabe que “de
súbito há um sentido”. Esta atenção ao momento presente e a abertura para a
inspiração repentina é o que permite ao poeta captar e transformar uma visão ou
experiência passageira em arte.
No caso de “Surf”, a visão do
surfista escrevendo poesia sobre a água pode ter sido uma dessas inspirações
súbitas. A imagem do surfista, em perfeita harmonia com o mar, criando algo
belo e efémero, reflete a sensibilidade do poeta em captar e eternizar momentos
fugazes. Assim como o poeta em “O poema” percebe que “de súbito há um sentido”
e que a inspiração vem e passa como o vento, em “Surf” o ato de surfar torna-se
uma metáfora para a criação poética, em que cada movimento na onda é uma linha
de poesia escrita na espuma, uma manifestação momentânea de beleza e
significado que o poeta eterniza em palavras.
Portanto, “Surf” pode ser
entendido como uma concretização da ideia apresentada em “O poema”, onde o poeta,
atento e inspirado por uma visão súbita, captura a essência do momento e a
transforma em poesia.
A relação entre os dois poemas
pode também estar na ideia de atenção e sensibilidade necessárias para captar e
criar algo sublime e transitório. No poema “Surf”, o surfista representa essa
figura atenta que, mesmo num meio instável e passageiro como a água e a espuma,
consegue criar algo que transcende o tempo e o espaço, assim como o poeta em “O
poema”, que está sempre atento, mesmo quando distraído, captando e dando
sentido ao que é passageiro e efémero, como o vento. Neste sentido, ambos os
poemas enfatizam a ideia de que a criação artística, seja na forma de poesia ou
surf, é um ato de sensibilidade e atenção ao momento presente, capturando o
efémero e transformando-o em algo duradouro e significativo. A transitoriedade
do vento no poema “O poema” e a espuma no poema “Surf” simbolizam a natureza
fugaz da inspiração e da criação, que o poeta ou o surfista consegue eternizar
através da sua arte.
Por detrás das árvores não se
escondem faunos, não.
Por detrás das árvores escondem-se os soldados
com granadas de mão.
As árvores são belas com os troncos dourados.
São boas e largas para esconder soldados.
Não é o vento que rumoreja nas folhas,
não é o vento, não.
São os corpos dos soldados rastejando no chão.
O brilho súbito não é do limbo das folhas verdes reluzentes.
É das lâminas das facas que os soldados apertam entre os dentes.
As rubras flores vermelhas não são papoilas, não.
É o sangue dos soldados que está vertido no chão.
Não são vespas, nem besoiros, nem pássaros a assobiar.
São os silvos das balas cortando a espessura do ar.
Depois os lavradores
rasgarão a terra com a lâmina aguda dos arados,
e a terra dará vinho e pão e flores
adubada com os corpos dos soldados.
António Gedeão, Linhas de força.
Coimbra, Tip. da Atlântida Ed., 1967
Linhas de leitura sobre o "Poema da terra adubada":
O poema
"Poema da terra adubada" de António Gedeão apresenta uma reflexão sobre
a guerra e as suas consequências, utilizando a natureza como um meio para
expressar a violência e a morte que acompanham os conflitos armados. Composto
por sete estrofes, o poema contrasta imagens da natureza com a presença e as
ações dos soldados, sublinhando a desumanização e a brutalidade da guerra.
O poema
começa com uma negação: “Por detrás das árvores não se escondem faunos, não.”
Essa negação cria um contraste entre a expectativa (faunos) e a realidade
(soldados). As árvores, inicialmente descritas como belas e douradas, tornam-se
o esconderijo dos soldados com granadas de mão. Essa dicotomia introduz
imediatamente o tema da guerra, substituindo a inocência e a paz da natureza
pela violência e agressão humana.
Na
segunda estrofe, as árvores, elementos naturais e esteticamente agradáveis, são
descritas como utilitárias para a guerra. A beleza natural é pervertida pelo
uso militar, reforçando a ideia de que a guerra corrompe até mesmo a natureza.
Na terceira
estrofe, o sujeito poético substitui o som natural do vento pelo movimento
furtivo dos soldados. Esse verso sublinha a presença constante e perturbadora
da guerra, mesmo em ambientes que deveriam ser tranquilos.
Na quarta
estrofe, o sujeito poético utiliza uma imagem de luz, tradicionalmente
associada à vida e à natureza, para descrever o brilho das lâminas das facas -
o brilho súbito nas folhas verdes não é natural; é das lâminas das facas que os
soldados seguram entre os dentes. Esse contraste destaca a presença sinistra e
letal da guerra.
A cor
vermelha, associada a flores como as papoilas, é transformada em uma metáfora
para o sangue derramado dos soldados. Assim, na quinta estrofe, visualizamos a
morte de uma maneira brutal.
O som da
natureza, que normalmente incluiria insetos e pássaros, é substituído, na sexta
estrofe, pelo som das balas, reforçando a presença invasiva e destrutiva da
guerra no ambiente natural.
Na
estrofe final, o sujeito poético une a imagem da guerra com a agricultura,
sugerindo que os corpos dos soldados tornar-se-ão fertilizante para a terra.
Isso cria a imagem da guerra como um ciclo destrutivo que, paradoxalmente,
alimenta a vida futura.
POEMA
DA MORTE NA ESTRADA Na berma da estrada, nuns quinhentos metros,
estão quinhentos mortos com os olhos abertos.
A morte, num sopro, colheu-os aos molhos.
Nem tiveram tempo para fechar os olhos.
Eles bem sabiam dos bancos da escola
como os homens dignos sucumbem na guerra.
Lá saber, sabiam.
A mão firme empunhando a espada ou a pistola,
morrendo sem ceder nem um palmo de terra.
Pois é.
Mas veio de lá a bomba, fulgurante como mil sóis,
não lhes deu tempo para serem heróis.
Eles bem sabiam que o último pensamento
devia estar reservado para a pátria amada.
Lá saber, sabiam.
Mas veio de lá a bomba e destruiu tudo num só momento.
Não lhes deu tempo para pensar em nada.
Agora,
na berma da estrada, nuns quinhentos metros,
são quinhentos mortos com os olhos abertos.
António Gedeão, Linhas de força.
Coimbra, Tip. da Atlântida Ed., 1967
Linhas de leitura sobre o "Poema da morte da estrada":
O título "Poema da morte na
estrada" antecipa o tema central do poema: a morte súbita e
indiscriminada provocada por um ataque aéreo, sublinhando a tragédia e a
desumanização dos soldados. A narrativa poética desenvolve-se em torno da
imagem de quinhentos mortos, distribuídos ao longo de uma estrada, uma
representação da devastação causada pela guerra.
A estrutura do poema é marcada pela
repetição quase literal da primeira estrofe na última. Essa repetição reforça a
ideia de que a morte dos soldados foi repentina e irreversível. A mudança do
verbo "estão" para "são" na última estrofe sublinha a
permanência desta condição. A imagem dos olhos abertos sugere uma morte abrupta,
sem tempo para reação ou preparação, acentuando a brutalidade do evento.
Na segunda e terceira estrofes, o sujeito
poético descreve a morte rápida e inesperada dos soldados, em contraste com o
que aprenderam sobre heroísmo nos "bancos da escola". A morte é
personificada, atuando como uma entidade que "colheu-os aos molhos",
ilustrando a natureza massiva e instantânea da tragédia. A ilusão de heroísmo é
desfeita pela realidade brutal de uma guerra moderna onde não há tempo para
gestos heroicos ou para o pensamento consciente antes da morte.
As quarta e quinta estrofes destacam
a discrepância entre o conhecimento teórico dos soldados sobre a guerra e a
realidade que enfrentaram. A bomba é descrita com uma hipérbole,
"fulgurante como mil sóis", enfatizando o seu poder destrutivo e a
intensidade do ataque. A repetição da frase "não lhes deu tempo"
sublinha a rapidez e a brutalidade da morte, que nega qualquer possibilidade de
heroísmo ou de reflexão final.
Análise
dos recursos expressivos e do ritmo do poema
Personificação: “A morte, num sopro,
colheu-os aos molhos.” No verso 3, a morte é descrita como uma entidade ativa e
quase tangível, que ceifa vidas de forma impiedosa e inevitável.
Comparação e Hipérbole: “Mas veio de
lá a bomba, fulgurante como mil sóis” – No verso 11, a comparação da bomba com
"mil sóis" exagera seu brilho e poder destrutivo, acentuando a
devastação e o terror que causou.
O ritmo do poema é predominantemente
lento, refletindo a solenidade e a gravidade do tema tratado. No entanto, a
introdução de versos mais curtos nas estrofes finais cria uma quebra no ritmo,
destacando a ineficácia da aprendizagem dos soldados diante da realidade brutal
da guerra moderna.
Conclusão
O poema aborda de maneira incisiva a
fragilidade da vida, a brutalidade da guerra e a inevitabilidade da morte. A
bomba fulgurante simboliza a violência e a destruição que podem extinguir vidas
num instante, sem oportunidade para heroísmo ou reflexão. O tom sombrio e
contemplativo do poema convida o leitor a refletir sobre a condição humana e a
brevidade da existência, destacando a tragédia e a desumanização inerentes à
guerra.
Ivo Machado, "à proa do meu navio", Facebook, 12-12-2023
ESCREVO O QUE LEMBRO
à Madalena,
minha neta recém-nascida
Hoje nasceu uma estrela depois tudo foi o que se sabe de luz coberta de amor cercada estranhamente antes de alegria outra forma de melancolia oh, meu bem — De mim o que te pertence? tenhas todo o Tempo (por mim passou depressa) oh, minha estrela — escrevo o que lembro ah, contigo nasci de novo.
Linhas de
leitura sobre o poema “Escrevo o que lembro”, de Ivo Machado:
O poema inicia comparando o
nascimento de Madalena ao surgimento de uma estrela. Essa estrela traz consigo
luz e amor, simbolizando não apenas o nascimento físico, mas também um
renascimento emocional para o sujeito poético.
Madalena é descrita como cercada
de luz e amor. No entanto, há uma melancolia presente antes da alegria plena.
Essa dualidade reflete a complexidade das emoções humanas diante de momentos
significativos.
O sujeito poético expressa o
desejo de que Madalena tenha “todo o Tempo”. Esta frase reconhece que o tempo
passou depressa para ele e, ao mesmo tempo, reflete sobre a efemeridade da
vida.
As expressões “luz coberta” e
“amor cercada” simbolizam o desejo do poeta de proteger e cuidar da sua neta.
Essa imagem sugere um ambiente seguro e acolhedor.
A pergunta “De mim o que te
pertence?” explora o que do seu ser ele passará para ela, sugerindo uma herança
emocional e espiritual.
A declaração "escrevo o que
lembro" sublinha o papel do poeta como cronista das emoções, usando a
escrita para preservar memórias e sentimentos.
Os termos afetuosos como “meu
bem” e “minha estrela” revelam o profundo amor do sujeito poético por Madalena,
destacando a importância dos laços familiares.
Apesar da melancolia e da
passagem do tempo, o nascimento da neta Madalena traz uma renovação. É uma nova
oportunidade de viver e sentir, marcando um momento significativo na vida do
poeta.
Quer o destino que eu não creia no destino
E o meu fado é nem ter fado nenhum
Cantá-lo bem
sem sequer o ter sentido
Senti-lo como ninguém,
mas não ter sentido algum
Ai que tristeza, esta minha alegria
Ai que alegria, esta tão grande tristeza
Esperar que um dia
eu não espere mais um dia
Por aquele que nunca vem
e que aqui esteve presente
Ai que saudade que eu tenho de ter saudade
saudades de ter alguém que aqui está e não existe
Sentir-me triste só por me sentir tão bem
E alegre sentir-me bem só por eu andar tão triste
Ai se eu pudesse não cantar «ai se eu pudesse»
e lamentasse não ter mais nenhum lamento
Talvez ouvisse
no silêncio que fizesse
uma voz que fosse minha
cantar alguém cá dentro
Ai que desgraça esta sorte que me assiste
Ai mas que sorte eu viver tão desgraçada
Na incerteza
que nada mais certo existe
além da grande incerteza
de não estar certa de nada
Ai que saudade que eu tenho de ter saudade
saudades de ter alguém que aqui está e não existe
Sentir-me triste só por me sentir tão bem
E alegre sentir-me bem só por eu andar tão triste
Ana Moura, in Desfado.
Letra e música de Pedro da Silva Martins
"Desfado",
escrito por Pedro da Silva Martins e interpretado por Ana Moura, é um poema que
subverte a tradição do fado português, oferecendo uma reflexão metalinguística
sobre o próprio conceito de destino e saudade. Este texto não apenas celebra a
ambivalência emocional característica do fado, mas também questiona e
desconstrói as noções de destino, tristeza e alegria.
Desde o
início, o poema estabelece uma relação paradoxal com o destino: "Quer o
destino que eu não creia no destino / E o meu fado é nem ter fado nenhum".
A palavra "fado" aqui carrega uma dupla conotação, referindo-se tanto
ao destino inevitável quanto ao género musical tradicional. A negação do
destino — ou a ideia de ter um fado "sem sentido algum" — desafia a
fatalidade típica do fado, abrindo espaço para uma abordagem mais pessoal e
subjetiva da existência.
O poema
prossegue com uma exploração profunda da dualidade emocional: "Ai que
tristeza, esta minha alegria / Ai que alegria, esta tão grande tristeza".
Esta ambiguidade emocional é central ao fado, mas aqui é elevada a um novo
nível de introspeção. A justaposição de alegria e tristeza cria uma tensão que
revela a complexidade das emoções, refletindo a incerteza e a instabilidade da
vida.
A
saudade, um tema recorrente no fado, é abordada de maneira inovadora: "Ai
que saudade que eu tenho de ter saudade / saudades de ter alguém que aqui está
e não existe". A saudade de uma ausência presente sugere uma nostalgia
paradoxal, onde o sujeito lírico anseia por uma ligação com alguém que nunca
esteve verdadeiramente presente. Este sentimento de ausência dentro da presença
destaca a fragilidade das relações e a constante busca por significado.
Uma das
características mais marcantes do poema é a sua reflexão sobre o próprio ato de
cantar o fado: "Ai se eu pudesse não cantar 'ai se eu pudesse' / e
lamentasse não ter mais nenhum lamento". Esta autocrítica sugere um desejo
de transcender as limitações do gênero e encontrar uma voz autêntica dentro do
silêncio. A voz que "fosse minha" representa a busca por uma identidade
própria, distinta das tradições impostas.
O poema
conclui com uma meditação sobre a incerteza: "Na incerteza / que nada mais
certo existe / além da grande incerteza / de não estar certa de nada".
Este reconhecimento da incerteza como a única certeza da vida reflete um
profundo existencialismo. A aceitação da incerteza não é apenas uma resignação,
mas uma afirmação da liberdade individual e da complexidade da experiência
humana.
Vamos analisar como a imagem do
"fundo do mar" é trabalhada como metáfora em cinco poemas de Sophia
de Mello Breyner Andresen ("Fundo do Mar", "Gráfico",
"Assassinato de Simonetta Vespucci", "Caminho da Índia" e
"Da Transparência"), revelando-se como um símbolo de beleza e perigo,
renascimento, desolação, memória histórica ou introspeção.
FUNDO DO MAR
No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.
Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloiça o cavalo-marinho.
Um polvo avança
No desalinho
Dos seus mil braços,
Uma flor dança,
Sem ruído vibram os espaços.
Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.
Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso.
Sophia de Mello Breyner Andresen,
POESIA, 1.ª ed., 1944, Coimbra, Edição da Autora; 2.ª ed., 1959, Lisboa,
Edições Ática; 3.ª ed., Poesia I, 1975,
Lisboa, Edições Ática; 4.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho; 5.ª
ed., revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho; 6.ª ed., 2007, Lisboa, Editorial
Caminho. 1.ª edição na Assírio & Alvim (7.ª ed.), Lisboa, 2013, prefácio de
Pedro Eiras.
No poema "Fundo do Mar",
Sophia de Mello Breyner Andresen pinta o fundo do mar como um local de
maravilha e de terror simultâneos. O sujeito poético descreve um mundo onde
"as plantas são animais / E os animais são flores", subvertendo as
expectativas do leitor sobre a ordem natural das coisas. Este mundo subaquático
é silencioso, afastado da agitação da superfície, e habitado por criaturas como
o cavalo-marinho e o polvo, cujos movimentos são retratados com uma graça quase
etérea. Contudo, a beleza deste lugar esconde um perigo latente, simbolizado
pelo "monstro em si suspenso". A imagem do "tempo poisa / Leve
como um lenço" sobre a areia sugere uma passagem tranquila do tempo, mas
não elimina a presença constante do perigo. Este poema utiliza o fundo do mar
como uma metáfora para a dualidade da existência, onde a beleza e a ameaça
coexistem.
Cianómetro
GRÁFICO
I
Curva dos espaços, curva das baías,
Vida que não é vida com os gestos inúteis,
Quem me consolará do meu corpo sepultado?
II
Mostrai-me as anémonas, as medusas e os corais
Do fundo do mar.
Eu nasci há um instante.
III
A mulher branca que a noite traz no ventre
Veio à tona das águas e morreu.
IV
Chego à praia e vejo que sou eu
O dia branco.
Sophia de Mello Breyner Andresen,
CORAL, 1.ª ed., 1950, Porto, Livraria Simões Lopes; 2.ª ed., s/d [c.
1979], Lisboa, Portugália Editora; 3.ª ed., s/d [c. 1980], Lisboa, Portugália
Editora, ilustrações de José Escada; 4.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial
Caminho; 5.ª ed., revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio
& Alvim (6.ª ed.), Lisboa, 2013, prefácio de Manuel Gusmão.
No poema "Gráfico",
o fundo do mar aparece na segunda estrofe como um local de nascimento e
descoberta: "Mostrai-me as anémonas, as medusas e os corais / Do fundo do
mar. / Eu nasci há um instante." Aqui, o fundo do mar é associado com o
início da vida e a novidade, contrapondo-se à sensação de sepultamento do corpo
mencionada na primeira estrofe. A referência a este espaço subaquático sugere
uma busca por renovação e um desejo de ligação à essência primordial da vida. O
fundo do mar torna-se, assim, um símbolo de regeneração e exploração,
contrastando com a estática e a inutilidade dos "gestos inúteis" da
superfície.
ASSASSINATO DE SIMONETTA VESPUCCI
[I]
Homens
No perfil agudo dos quartos
Nos ângulos mortais da sombra com a luz.
Vê como as espadas nascem evidentes
Sem que ninguém as erguesse — de repente.
Vê como os gestos se esculpem
Em geometrias exatas do destino.
Vê como os homens se tornam animais
E como os animais se tornam anjos
E um só irrompe e faz um lírio de si mesmo.
Vê como pairam longamente os olhos
Cheios de liquidez, cheios de mágoa
De uma mulher nos seus cabelos estrangulada.
E todo o quarto jaz abandonado
Cheio de horror e cheio de desordem.
E as portas ficam abertas,
Abertas para os caminhos
Por onde os homens fogem,
No silêncio agudo dos espaços,
Nos ângulos mortais da sombra com a luz.
[II] Caminhava fito.
Sobre o seu ombro esquerdo
Um pássaro noturno e verde não cantava.
Obscuras correntes,
Desconhecidas direções do vento,
Secreto curso de estrelas invisíveis.
[III] Tu e eu vamos
No fundo do mar
Absortos e correntes e desfeitos.
Agora és transparente
À tona do teu rosto vêm peixes
E vens comigo
Morto, morto, morto,
Morto em cada imagem.
Sophia de Mello Breyner Andresen,
CORAL, 1.ª ed., 1950, Porto, Livraria Simões Lopes; 2.ª ed., s/d [c.
1979], Lisboa, Portugália Editora; 3.ª ed., s/d [c. 1980], Lisboa, Portugália
Editora, ilustrações de José Escada; 4.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial
Caminho; 5.ª ed., revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio
& Alvim (6.ª ed.), Lisboa, 2013, prefácio de Manuel Gusmão.
No terceiro segmento do poema "Assassinato
de Simonetta Vespucci", o fundo do mar é utilizado para evocar um sentido
de desolação e morte: "Tu e eu vamos / No fundo do mar / Absortos e
correntes e desfeitos." A imagem é carregada de melancolia e resignação,
sugerindo uma união na morte ou no esquecimento. Os versos seguintes reforçam
esta visão de desintegração: "Agora és transparente / À tona do teu rosto
vêm peixes / E vens comigo / Morto, morto, morto". A repetição da palavra
"morto" intensifica o sentimento de aniquilação. Neste contexto, o
fundo do mar serve como um cenário de perda e de dissolução da identidade, em
contraste com a vida vibrante e a descoberta presentes em outros poemas.
Retrato póstumo de Simonetta Vespúcio por Sandro Botticelli
Trata-se de um poema ambíguo, pois Simonetta
Vespucci (1453-1476), embora tenha sido uma figura histórica real, não morreu
assassinada, mas sim de tuberculose. Conhecida como uma das mulheres mais belas
de Florença, Simonetta foi musa de artistas como Sandro Botticelli (1445-1510),
que supostamente a retratou como figura central em suas obras "A
Primavera" e "O Nascimento de Vénus" (ambas na Galleria degli
Uffizi, Florença, Itália). A hipótese de que Sophia de Mello Breyner Andresen
"assassina" Simonetta metaforicamente no poema pode ser explorada
como uma maneira de abordar a destruição de uma idealização ou a confrontação
de uma beleza eterna e imaculada com a realidade da morte e da desintegração.
Esta "morte" poética de Simonetta pode representar a tentativa da
autora de desconstruir a imagem idealizada e intocável que Botticelli e outros
artistas perpetuaram, trazendo à tona a mortalidade e a vulnerabilidade
inerentes a qualquer ser humano, por mais idealizado que seja.
CAMINHO DA ÍNDIA
I
Ante o seu rosto pára a história
E detém-se o exército dos ventos
Tinha o futuro por memória.
Coração atento em frente à linha lisa
Do horizonte
Vontade inteira e precisa
Exato pressentimento.
II
Que no largo mar azul se perca o vento
E nossa seja a nossa própria imagem.
Desejo de conhecimento
As tempestades deram-nos passagem.
E os lemes quebrados dos capitães mortos
E os náufragos azuis do fim do mundo
Na rota de todos os portos
No fundo do mar profundo
Com os seus braços ossos
E seus verdes destroços
Marcaram o caminho.
Sophia de Mello Breyner Andresen,
NO TEMPO DIVIDIDO, 1.ª ed., 1954, Lisboa, Guimarães Editores; 2.ª ed.,
1985, in No Tempo Dividido e Mar Novo, Lisboa, Edições Salamandra, ilustração
de Arpad Szenes; 3.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho; 4.ª ed.,
revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio & Alvim
(5.ª ed.), Lisboa, 2013, prefácio de Federico Bertolazzi.
No poema "Caminho da Índia",
o fundo do mar aparece como um local histórico e mítico: "E os lemes
quebrados dos capitães mortos / E os náufragos azuis do fim do mundo / Na rota
de todos os portos / No fundo do mar profundo". Aqui, o fundo do mar é um
repositório de memórias e de restos de jornadas passadas. É um lugar onde se
depositam os vestígios das grandes explorações e das tragédias marítimas. A
imagem dos "lemes quebrados" e dos "náufragos azuis" evoca
a história e a tragédia dos exploradores que se aventuraram nas águas
desconhecidas. O fundo do mar, neste poema, é uma metáfora para o legado da
exploração e para a inevitável mortalidade daqueles que ousam desafiar o desconhecido.
DA TRANSPARÊNCIA
Senhor libertai-nos do jogo perigoso da transparência
No fundo do mar da nossa alma não há corais nem búzios
Mas sufocado sonho
E não sabemos bem que coisa são os sonhos
Condutores silenciosos canto surdo
Que um dia subitamente emergem
No grande pátio liso dos desastres
Sophia de Mello Breyner Andresen,
GEOGRAFIA, 1.ª ed., 1967, Lisboa, Edições Ática; 2.ª ed., 1972, Lisboa,
Edições Ática; 3.ª ed., 1990, Lisboa, Edições Salamandra, ilustração de Xavier
Sousa Tavares; 4.ª ed., revista, 2004, Lisboa, Editorial Caminho. 1.ª edição na
Assírio & Alvim (5.ª ed.), Lisboa, 2014, prefácio de Frederico Lourenço.
Por fim, em "Da
Transparência", o fundo do mar é utilizado como uma metáfora para a
alma humana: "No fundo do mar da nossa alma não há corais nem búzios / Mas
sufocado sonho". A ausência de corais e búzios — elementos típicos e belos
do fundo do mar — sugere uma profundidade interna que é dominada pelo sonho e
pela introspeção. Estes sonhos são descritos como "condutores silenciosos
canto surdo / Que um dia subitamente emergem / No grande pátio liso dos
desastres". A imagem do fundo do mar serve aqui para ilustrar a
profundidade e a complexidade dos sonhos e desejos humanos, que são ocultos e
só emergem em momentos de crise ou de revelação.