sábado, 6 de julho de 2024

Fundo do Mar, Sophia de Mello Breyner Andresen


 

Vamos analisar como a imagem do "fundo do mar" é trabalhada como metáfora em cinco poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen ("Fundo do Mar", "Gráfico", "Assassinato de Simonetta Vespucci", "Caminho da Índia" e "Da Transparência"), revelando-se como um símbolo de beleza e perigo, renascimento, desolação, memória histórica ou introspeção.

 

FUNDO DO MAR

No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.

Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloiça o cavalo-marinho.
Um polvo avança
No desalinho
Dos seus mil braços,
Uma flor dança,
Sem ruído vibram os espaços.

Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.

Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, POESIA, 1.ª ed., 1944, Coimbra, Edição da Autora; 2.ª ed., 1959, Lisboa, Edições Ática; 3.ª ed., Poesia I, 1975, Lisboa, Edições Ática; 4.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho; 5.ª ed., revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho; 6.ª ed., 2007, Lisboa, Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio & Alvim (7.ª ed.), Lisboa, 2013, prefácio de Pedro Eiras.

 

No poema "Fundo do Mar", Sophia de Mello Breyner Andresen pinta o fundo do mar como um local de maravilha e de terror simultâneos. O sujeito poético descreve um mundo onde "as plantas são animais / E os animais são flores", subvertendo as expectativas do leitor sobre a ordem natural das coisas. Este mundo subaquático é silencioso, afastado da agitação da superfície, e habitado por criaturas como o cavalo-marinho e o polvo, cujos movimentos são retratados com uma graça quase etérea. Contudo, a beleza deste lugar esconde um perigo latente, simbolizado pelo "monstro em si suspenso". A imagem do "tempo poisa / Leve como um lenço" sobre a areia sugere uma passagem tranquila do tempo, mas não elimina a presença constante do perigo. Este poema utiliza o fundo do mar como uma metáfora para a dualidade da existência, onde a beleza e a ameaça coexistem.

 

Cianómetro 


GRÁFICO

I

Curva dos espaços, curva das baías,
Vida que não é vida com os gestos inúteis,
Quem me consolará do meu corpo sepultado?

II

Mostrai-me as anémonas, as medusas e os corais
Do fundo do mar.
Eu nasci há um instante.

III

A mulher branca que a noite traz no ventre
Veio à tona das águas e morreu.

IV

Chego à praia e vejo que sou eu
O dia branco.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, CORAL, 1.ª ed., 1950, Porto, Livraria Simões Lopes; 2.ª ed., s/d [c. 1979], Lisboa, Portugália Editora; 3.ª ed., s/d [c. 1980], Lisboa, Portugália Editora, ilustrações de José Escada; 4.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho; 5.ª ed., revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio & Alvim (6.ª ed.), Lisboa, 2013, prefácio de Manuel Gusmão.

 

No poema "Gráfico", o fundo do mar aparece na segunda estrofe como um local de nascimento e descoberta: "Mostrai-me as anémonas, as medusas e os corais / Do fundo do mar. / Eu nasci há um instante." Aqui, o fundo do mar é associado com o início da vida e a novidade, contrapondo-se à sensação de sepultamento do corpo mencionada na primeira estrofe. A referência a este espaço subaquático sugere uma busca por renovação e um desejo de ligação à essência primordial da vida. O fundo do mar torna-se, assim, um símbolo de regeneração e exploração, contrastando com a estática e a inutilidade dos "gestos inúteis" da superfície.

 

ASSASSINATO DE SIMONETTA VESPUCCI

[I]

Homens
No perfil agudo dos quartos
Nos ângulos mortais da sombra com a luz.

Vê como as espadas nascem evidentes
Sem que ninguém as erguesse — de repente.

Vê como os gestos se esculpem
Em geometrias exatas do destino.

Vê como os homens se tornam animais
E como os animais se tornam anjos
E um só irrompe e faz um lírio de si mesmo.

Vê como pairam longamente os olhos
Cheios de liquidez, cheios de mágoa
De uma mulher nos seus cabelos estrangulada.

E todo o quarto jaz abandonado
Cheio de horror e cheio de desordem.
E as portas ficam abertas,
Abertas para os caminhos
Por onde os homens fogem,
No silêncio agudo dos espaços,
Nos ângulos mortais da sombra com a luz.

[II]

Caminhava fito.
Sobre o seu ombro esquerdo
Um pássaro noturno e verde não cantava.
Obscuras correntes,
Desconhecidas direções do vento,
Secreto curso de estrelas invisíveis.

[III]

Tu e eu vamos
No fundo do mar
Absortos e correntes e desfeitos.
Agora és transparente
À tona do teu rosto vêm peixes
E vens comigo
Morto, morto, morto,
Morto em cada imagem.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, CORAL, 1.ª ed., 1950, Porto, Livraria Simões Lopes; 2.ª ed., s/d [c. 1979], Lisboa, Portugália Editora; 3.ª ed., s/d [c. 1980], Lisboa, Portugália Editora, ilustrações de José Escada; 4.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho; 5.ª ed., revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio & Alvim (6.ª ed.), Lisboa, 2013, prefácio de Manuel Gusmão.



 

No terceiro segmento do poema "Assassinato de Simonetta Vespucci", o fundo do mar é utilizado para evocar um sentido de desolação e morte: "Tu e eu vamos / No fundo do mar / Absortos e correntes e desfeitos." A imagem é carregada de melancolia e resignação, sugerindo uma união na morte ou no esquecimento. Os versos seguintes reforçam esta visão de desintegração: "Agora és transparente / À tona do teu rosto vêm peixes / E vens comigo / Morto, morto, morto". A repetição da palavra "morto" intensifica o sentimento de aniquilação. Neste contexto, o fundo do mar serve como um cenário de perda e de dissolução da identidade, em contraste com a vida vibrante e a descoberta presentes em outros poemas.

Retrato póstumo de Simonetta Vespúcio por Sandro Botticelli


Trata-se de um poema ambíguo, pois Simonetta Vespucci (1453-1476), embora tenha sido uma figura histórica real, não morreu assassinada, mas sim de tuberculose. Conhecida como uma das mulheres mais belas de Florença, Simonetta foi musa de artistas como Sandro Botticelli (1445-1510), que supostamente a retratou como figura central em suas obras "A Primavera" e "O Nascimento de Vénus" (ambas na Galleria degli Uffizi, Florença, Itália). A hipótese de que Sophia de Mello Breyner Andresen "assassina" Simonetta metaforicamente no poema pode ser explorada como uma maneira de abordar a destruição de uma idealização ou a confrontação de uma beleza eterna e imaculada com a realidade da morte e da desintegração. Esta "morte" poética de Simonetta pode representar a tentativa da autora de desconstruir a imagem idealizada e intocável que Botticelli e outros artistas perpetuaram, trazendo à tona a mortalidade e a vulnerabilidade inerentes a qualquer ser humano, por mais idealizado que seja. 

 

CAMINHO DA ÍNDIA

I

Ante o seu rosto pára a história
E detém-se o exército dos ventos
Tinha o futuro por memória.

Coração atento em frente à linha lisa
Do horizonte
Vontade inteira e precisa
Exato pressentimento.

II

Que no largo mar azul se perca o vento
E nossa seja a nossa própria imagem.

Desejo de conhecimento
As tempestades deram-nos passagem.

E os lemes quebrados dos capitães mortos
E os náufragos azuis do fim do mundo
Na rota de todos os portos
No fundo do mar profundo
Com os seus braços ossos
E seus verdes destroços
Marcaram o caminho.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, NO TEMPO DIVIDIDO, 1.ª ed., 1954, Lisboa, Guimarães Editores; 2.ª ed., 1985, in No Tempo Dividido e Mar Novo, Lisboa, Edições Salamandra, ilustração de Arpad Szenes; 3.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho; 4.ª ed., revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio & Alvim (5.ª ed.), Lisboa, 2013, prefácio de Federico Bertolazzi.

 

No poema "Caminho da Índia", o fundo do mar aparece como um local histórico e mítico: "E os lemes quebrados dos capitães mortos / E os náufragos azuis do fim do mundo / Na rota de todos os portos / No fundo do mar profundo". Aqui, o fundo do mar é um repositório de memórias e de restos de jornadas passadas. É um lugar onde se depositam os vestígios das grandes explorações e das tragédias marítimas. A imagem dos "lemes quebrados" e dos "náufragos azuis" evoca a história e a tragédia dos exploradores que se aventuraram nas águas desconhecidas. O fundo do mar, neste poema, é uma metáfora para o legado da exploração e para a inevitável mortalidade daqueles que ousam desafiar o desconhecido.

 

 

DA TRANSPARÊNCIA

Senhor libertai-nos do jogo perigoso da transparência
No fundo do mar da nossa alma não há corais nem búzios
Mas sufocado sonho
E não sabemos bem que coisa são os sonhos
Condutores silenciosos canto surdo
Que um dia subitamente emergem
No grande pátio liso dos desastres

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, GEOGRAFIA, 1.ª ed., 1967, Lisboa, Edições Ática; 2.ª ed., 1972, Lisboa, Edições Ática; 3.ª ed., 1990, Lisboa, Edições Salamandra, ilustração de Xavier Sousa Tavares; 4.ª ed., revista, 2004, Lisboa, Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio & Alvim (5.ª ed.), Lisboa, 2014, prefácio de Frederico Lourenço.

 

Por fim, em "Da Transparência", o fundo do mar é utilizado como uma metáfora para a alma humana: "No fundo do mar da nossa alma não há corais nem búzios / Mas sufocado sonho". A ausência de corais e búzios — elementos típicos e belos do fundo do mar — sugere uma profundidade interna que é dominada pelo sonho e pela introspeção. Estes sonhos são descritos como "condutores silenciosos canto surdo / Que um dia subitamente emergem / No grande pátio liso dos desastres". A imagem do fundo do mar serve aqui para ilustrar a profundidade e a complexidade dos sonhos e desejos humanos, que são ocultos e só emergem em momentos de crise ou de revelação.

 


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