Ana Luísa Amaral diz o seu "Soneto científico a fingir".
SONETO
CIENTÍFICO A FINGIR
Dar
o mote ao amor. Glosar o tema
tantas
vezes que assuste o pensamento.
Se
for antigo, seja. Mas é belo
e
como a arte: nem útil nem moral.
Que
me interessa que seja por soneto
em
vez de verso ou linha devastada?
O
soneto é antigo? Pois que seja:
também
o mundo é e ainda existe.
Só
não vejo vantagens pela rima.
Dir-me-ão
que é limite: deixa ser.
Se
me dobro demais por ser mulher
(esta
rimou, mas foi só por acaso)
Se
me dobro demais, dizia eu,
não
consigo falar-me como devo,
ou
seja, na mentira que é o verso,
ou
seja, na mentira do que mostro.
E
se é soneto coxo, não faz mal.
E
se não tem tercetos, paciência:
dar
o mote ao amor, glosar o tema,
e
depois desviar. Isso é ciência!
Ana Luísa Amaral, E
muitos os caminhos, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto,
1995, p. 35.
Num
poema chamado "Soneto Científico a Fingir" (E Muitos os Caminhos, p.
35), a poeta finge um soneto, que não é, e ostenta a poesia como mentira em
relação ao eu que se inscreve no texto: "não consigo falar-me como devo,/
ou seja, na mentira que é o verso/ ou seja, na mentira do que mostro".
Trata-se, nesse "Soneto Científico a Fingir", de glosar o eterno e
velho tema do amor, e a ciência que o poeta propõe é a da mentira, do desvio em
relação ao centro: «dar o mote ao amor, glosar o tema/ e depois desviar. Isso é
ciência!» Descentrar, mais uma vez, mentindo e com a mentira inventar - «O melhor rouxinol:/ o inventado», diz-se noutro poema a fingir-se ode, intitulado
"Ao Rouxinol: a Ode que não é" (E Muitos os Caminhos, p. 49).
Isabel Pires de Lima, «Concertos/desconsertos: arte
poética e busca do sujeito na poesia de Ana Luísa Amaral», in Maria de
Fátima Outeirinho & Rosa Maria Martelo (orgs.), Cadernos de
Literatura Comparada – Identidades no Feminino, n.º 2,
Porto, Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa/Granito, 2001.
[Também publicado
na revista Veredas,
nº 3 – Revista da Associação Internacional de Lusitanistas – Faculdade de
Letras – Universidade de Coimbra].
Neste poema – um “soneto
coxo”, ou seria um soneto estrambótico “na largueza de cinco quadras que
multiplicam os decassílabos em ausência de tercetos”? (MARTELO) – Ana Luísa
Amaral expõe algumas características que estarão presentes em toda a sua obra:
o tão antigo e cantado tema do amor continua e continuará presente em sua
poesia e, mais ainda, se for um soneto de amor – tradição da poesia
petrarquiana – retomado pela poeta em A Gênese do Amor (seu décimo livro
de poemas). No entanto, este soneto não é um soneto de amor, trata-se de um
soneto “científico” – que tem ciência. Ciência de si mesmo? Consciência?
Conhecimento para a execução de uma arte? Ou ciência que tantas vezes se opõe
ao amor e que o explica como reação química?
Obviamente
que, em se tratando de poesia portuguesa, num “Soneto científico a fingir” (grifo nosso) não pode
passar despercebida a “poética do fingimento” de Fernando Pessoa, a poética que
tem “ciência” de que está “a fingir”. Portanto, ainda no título do poema, nos
deparamos com a herança clássica: o soneto (de Petrarca, Dante e Camões) e a
herança do maior poeta modernista português: Pessoa. E essa é mais uma
característica marcante da poesia de Ana Luísa Amaral: a poeta explora a
possibilidade de dialogar com a poesia clássica, com a poesia modernista e
mesmo com a poesia contemporânea portuguesa.
Portanto, Ana Luísa
sente-se à vontade para, ao contrário dos poetas modernistas, explorar os temas
e as formas clássicas – abandonados pelos poetas modernos com seus versos e
linhas “devastados” –; mas retornar a estas formas clássicas não deixa de ser,
de certo modo, uma forma de subversão: Ana Luísa Amaral ao retornar ao uso das
formas e dos temas clássicos confronta um paradigma instaurado pela poesia
modernista, a regra de não ter regra: “Que me interessa que seja por soneto /
em vez de verso ou linha devastada? / O soneto é antigo? Pois que seja: /
também o mundo é e ainda existe” (AMARAL, 2010, p. 215). Mas Ana Luísa Amaral
nos apresentará uma espécie de alternância no uso das formas clássicas e
modernas: observemos que, apesar de a princípio estar nos apresentando uma
forma clássica, há uma continuidade, na não utilização de rimas, com o
modernismo: “Só não vejo vantagens pela rima” (AMARAL, 2010, p. 215). Ou
melhor, na não utilização das rimas como forma fixa, pois também este não seria
um critério rígido: “Dir-me-ão que é limite: deixa ser. / Se me dobro demais
por ser mulher / [esta rimou, mas foi só por acaso]” (AMARAL, 2010, p. 215). E
é exatamente neste ponto de seu “Soneto científico a fingir”, que a poeta trará
a referência ao fato de ser uma poeta, uma mulher que escreve dialogando com as
poéticas clássica e moderna.
Na tradição da poesia
modernista portuguesa, pessoana portanto, Ana Luísa Amaral “sabe” que deve
apropriar-se da poética do fingidor, do poeta que “finge tão completamente /
Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente”, ou seja, deve
“falar-se” e “mostrar-se” na “mentira que é o verso”: “Se me dobro demais,
dizia eu, / não consigo falar-me como devo, / ou seja, na mentira que é o
verso, / ou seja, na mentira do que mostro” (AMARAL, 2010, p. 215). Assim, é
possível perceber que Ana Luísa Amaral transita entre as tradições antigas e as
(já tradições) modernas, estabelecendo, assim, uma nova poética, que não é
rígida nem na forma de seguir a tradição, nem na forma de romper com ela.
Melhor dizendo: a poeta dialogará com as tradições, subvertendo as regras na
sua maneira de não as seguir estritamente. Escreve um soneto, mas é um soneto
“coxo” e com linguagem coloquial.
Não se trata de um soneto
de catorze versos, com dois quartetos e dois tercetos, mas de um poema de vinte
versos, com cinco quartetos. Do mesmo modo, não se utiliza de linguagem
elevada, mais apropriada a um soneto tradicional, e sim de uma linguagem
irónica, à maneira de Bocage ou Gregório de Matos. Vejamos a última estrofe do
poema: “E se é soneto coxo, não faz mal. / E se não tem tercetos, paciência: /
dar o mote ao amor, glosar o tema, / e depois desviar. Isso é ciência!”
Ana Luísa Amaral
estabelece, dessa forma, que é necessário dialogar com a tradição: escrever
sonetos, explorar ainda a temática amorosa, “dar mote ao amor” e depois ter a
sabedoria (“ciência”) de desviar do tema, ou seja, como numa espécie de imitatio,
a autora demonstra que conhece a técnica, tem ciência, e a partir da tradição
se desvia da mesma tradição, criando sua própria arte, ainda que para isso seja
preciso escrever versos de “pé quebrado” e que a emenda seja pior do que o
soneto.
Voltemos outra vez ao
verso central do primeiro poema de Ana Cristina Cesar apresentado aqui: sua
poética é “quebrada pelo meio”, talvez seja imperfeita como o “poema de pé
quebrado”, ou o “soneto coxo” de Ana Luísa Amaral –, ou seja, há nessa
imperfeição uma ruptura com a poética que a precede, ruptura ocasionada pelo
fato de, por ser mulher, ao deparar-se com a sua própria sexualidade e
feminilidade, não é possível manter-se estritamente na tradição.
Rhea Sílvia Willmer, Ana Luísa Amaral e Ana Cristina Cesar: modos de pensar o
feminino na poesia contemporânea em português, Universidade Federal do
Rio de Janeiro, 2014
Poderá também gostar de:
- "O soneto é uma casa poética”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2009-05-04 <https://folhadepoesia.blogspot.com/2009/05/o-soneto-e-uma-casa-poetica.html>
- Ana Luísa Amaral in Folha de Poesia.
CARREIRO, José. “Soneto
científico a fingir (Ana Luísa Amaral, 1956-2022)”. Portugal, Folha de
Poesia, 10-08-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/08/soneto-cientifico-fingir-ana-luisa.html
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