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domingo, 21 de janeiro de 2018

Companhia das Ilhas

A Companhia das Ilhas iniciou a sua actividade de edição de livros em 5 de Maio de 2012.
É uma editora livreira independente.
Os autores, os “géneros” e as colecções são escolhas de gosto pessoal. Articulam-se com a opção de editar “géneros” negligenciados por grande parte das editoras portuguesas – poesia, teatro, ensaio, conto. Os preços justos são uma opção política editorial, não um estratagema comercial (o que implicaria a subalternização de textos e de autores). Esta política agiliza a edição e passa ao lado das máquinas (demasiado) bem oleadas do mainstream.
A Companhia das Ilhas é bem capaz de ser ilha: ilha movente que deita âncora aqui e ali: livrarias (reais e virtuais), formas várias de distribuição (mas atenta às perversidades do sistema e sempre pronta a zarpar para outras geografias).
A Companhia das Ilhas é bem capaz de ser ilha: ilha movente que deita âncora aqui e ali: livrarias (reais e virtuais), formas várias de distribuição (mas atenta às perversidades do sistema e sempre pronta a zarpar para outras geografias).

https://www.facebook.com/companhiadasilhas.lda.9/

http://companhiadasilhas.pt/





Companhia das Ilhas: a editora quer por o mundo a ler os Açores

A Companhia das Ilhas, uma editora da ilha do Pico, vai ser responsável por um dos lançamentos mais importantes de 2018: as obras completas de Vitorino Nemésio. O primeiro volume sai em abril.


Em maio de 2012, Carlos Alberto Machado decidiu fazer algo improvável: fundar uma editora na ilha do Pico, nos Açores, especializada em poesia e teatro, géneros geralmente negligenciados por quem edita livros. Talvez houvesse quem achasse que a Companhia das Ilhas estava condenada ao fracasso, mas a verdade é que, passados quase seis anos, a editora está maior do que nunca: em 2018, tenciona fazer chegar ao mercado livreiro cerca de 30 títulos, mais 18 do que os seis inicialmente lançados em 2012. Entre estes, encontra-se um dos grandes projetos da Companhia das Ilhas desde que abriu portas: a publicação em 16 volumes das obras completas de Vitorino Nemésio, considerado um dos grandes escritores portugueses do século XX.
Vitorino Nemésio nasceu a 19 de dezembro de 1901 na Praia da Vitória, na ilha Terceira, e morreu a 20 de fevereiro de 1978, em Lisboa, onde passou uma boa parte da sua vida (foi na capital que se licenciou em Filologia Românica). Romancista, poeta, cronista e académico, deixou uma extensa obra publicada da qual pouca coisa se encontra disponível no mercado. A maioria das obras editadas pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda (INCM) já estão esgotadas, e as que não estão são muito difíceis de encontrar. “Aqui fala-se muito do Vitorino Nemésio mas não há livros”, frisou Carlos Alberto Machado. A única exceção parece ser Mau Tempo no Canal, uma das grandes obras da literatura portuguesa do século passado.
Publicado originalmente em 1944, o romance foi reeditado pela Relógio d’Água em 2004, encontrando-se também disponível numa edição de bolso, mais recente, da BIS (uma chancela do Grupo Leya). Contudo, são poucos aqueles que se podem dar ao luxo de dizer que o leram. “As pessoas ouvem falar, associam logo, mas não leram os livros”, admitiu Carlos Alberto Machado em conversa com o Observador, acrescentando que, “nesse aspeto”, os Açores não são muito diferentes “de todo o lado”: “a massa não lê”. Mas este não é o único problema que existe no arquipélago açoriano, onde as livrarias são poucas e as iniciativas literárias quase nenhumas. Uma questão que o editor da Companhia das Ilhas acredita estar relacionada, entre outros motivos, “com uma dispersão grande de ilhas”, mas também com “o facto de serem ilhas em si”. “Significa que a população é pequena, apesar de tudo”, admitiu. “Há poucas livrarias. Todos estes circuitos numa zona de maior dimensão são mais disfarçados.”
É por esta razão que a pequena editora independente é um caso raro. Apesar de admitir a quase inexistência de um circuito literário nos Açores, Carlos Alberto Machado acredita que é importante fazer alguma coisa e não baixar os braços. Foi por isso que decidiu “avançar com isto”, apesar de lhe dizerem constantemente que havia “um problema de direitos de autor” e que era isso que impedia a reedição das obras do escritor açoriano. “Então pus as pernas a caminho e fui a Lisboa falar com o diretor das publicações da Imprensa Nacional.” A ideia inicial era “editar alguns livros essenciais”, mas Duarte Azinheira gostou tanto da proposta de Carlos Alberto Machado que decidiu contrapropor: e se publicassem antes as obras todas?
O editora da Companhia das Ilhas não tinham como dizer que não e foi assim que que surgiu a parceria com a INCM, que é em parte responsável pela nova edição, que tem direção científica do também açoriano Luiz Fagundes Duarte, da Universidade Nova de Lisboa (que já tinha colaborado na publicação de obras anteriores do escritor da ilha Terceira pela Imprensa Nacional). Ao todo, serão publicados cerca de 40 livros, divididos por 16 volumes, organizados por quatro séries: poesia, teatro e ficção, crónica e diário, ensaio e crítica.Porque, “apesar de tudo, Vitorino Nemésio deixou muita obra ensaística e muita crónica”, salientou o editor da Companhia das Ilhas, acrescentando que cada volume “apanha quase sempre diferentes géneros”. Contudo, dentro de cada série será sempre respeitada a ordem cronológica da primeira edição de cada livro e o texto seguirá sempre o da última em vida do autor, com ortografia atualizada, ou da edição crítica (se disponível).
Todas as obras foram publicadas ainda em vida do autor, à exceção de duas — Quase que os Vi Viver, publicado em 1985, e Caderno de Caligraphia e outros Poemas a Marga, editado pela primeira vez em 2003 pela INCM, vários anos depois de Nemésio morrer. “O completo não é completamente verdade”, admitiu o editor da Companhia das Ilhas. “Há um conjunto de dispersos que não estão reunidos em livro, em relação aos quais a Imprensa Nacional fará algum trabalho paralelamente a isto”, explicou o editor, acrescentando que, apesar disso, os inéditos do escritor açoriano “são pouquíssimos”.
Cada volume terá uma breve introdução a autoria do respetivo editor científico — conhecedor “profundo” da obra de Nemésio — que, além de fazer uma contextualização da obra ou obras, descreve ainda a história da impressão de cada livro. Apesar disso, Carlos Alberto Machado garante que “esta edição não é uma edição crítica”, cujas características costumam afastar “um pouco as pessoas”. “Esta edição não tem nada disso”, garantiu o editor. Até porque o objetivo da Companhia das Ilhas é exatamente o contrário: lançar edições “mais cuidadas do ponto de vista gráfico”, com “um novo rosto” e voltadas “para o grande público”, que incentivem a leitura de Nemésio. “Temos esperança que resulte melhor e que a obra comece a ser um pouco mais lida.”
Os 16 volumes da Obra Completa de Vitorino Nemésio serão editados ao longo de quatro anos, e a ideia é que saiam quatro volumes anualmente, mais ou menos de três em três meses. O primeiro, dedicado à poesia publicada pelo escritor entre 1916 e 1940, está a ser terminado — “está em fase de revisão”, admitiu Carlos Alberto Machado — e deverá sair algures em abril. “É um plano um bocado ambicioso”, mas Carlos Alberto Machado tem esperança que “tudo corra bem”. “A Imprensa Nacional é uma grande máquina.” Em 2018, serão ainda publicados três volumes das restantes séries, que irão incluir, por exemplo, a peça de teatro Amor de Nunca Mais (1920) e o ensaio Elogio Histórico de Júlio Dantas (1965). São os seguintes:
  • Poesia: Canto Matinal (1916), A Fala das Quatro Flores (1920), Nave Etérea (1922), Sonetos para Libertar um Estado de Espírito Inferior(1930), La voyelle promise (1938) e Eu, Comovido a Oeste (19140)
  • Teatro e Ficção: Amor de Nunca Mais (1920) e Paço do Milhafre(1924)
  • Crónica e Diário: Ondas Médias (1945) e O Segredo de Ouro Preto(1954)
  • Ensaio e Crítica: Sob os Signos de Agora (1932), Conhecimento de Poesia (1958) e Elogio Histórico de Júlio Dantas (1965)

Apostar nos escritores que os leitores esqueceram

A publicação das Obras Completas de Vitorino Nemésio é uma espécie de exceção no catálogo da Companhia das Ilhas, que tem apostado sobretudo nos autores contemporâneos, muito deles açorianos. “Somos uma editora que dá mais atenção à poesia e ao teatro”, explicou Carlos Alberto Machado ao Observador, lamentando que “quase ninguém” edita obras de dramaturgia. No ano passado, a editora publicou três obras de teatro — A dança das raias voadoras / Requests ou permissão para respirar, de Ana Lázaro e Firmino Bernardo, Três actos para um blue, de Marcela Costa e Yuck Factor, e Romance da última cruzada, de Ana Vitorino e Carlos Costa — e para este ano estão agendadas pelo menos mais cinco, entre autores portugueses e grandes nomes da literatura, que poderão ser adquiridos em livrarias um pouco por todo o país (apesar de estar sediada nos Açores, a editora não vende os seus livros apenas nas ilhas).
“Sempre fizemos uma tentativa de que os textos que publicamos tivessem uma relação com os espetáculos que estão a acontecer, que fazem parte do repertório de alguns grupos e criadores”, explicou o editor da Companhia das Ilhas. “Este ano vamos continuar nessa onda. Vamos editar alguns textos de Carlos J. Pessoa, do Teatro da Garagem, e um conjunto de textos do Rui Pina Coelho”, que colabora regularmente com o Teatro Experimental do Porto. Além disso, a editora vai dar início à publicação de alguns dramaturgos contemporâneos estrangeiros, numa parceria com o Teatro das Caldas da Rainha. Luigi Pirandello, Samuel Beckett e Jean-Pierre Sarrazac são os autores que vão sair este ano.
A poesia, outra das grandes apostas da editora, vai ter mais destaque em 2018. “No ano passado, demos mais importância à ficção, mas este ano vamos voltar à poesia”, frisou Carlos Alberto Machado, adiantando que “vamos começar já com um livro pequeno do Ramiro S. Osório, um importante poeta português”. Nascido em Lisboa, em 1939, Ramiro S. Osório viveu 22 anos em Paris, onde se exilou quando estava a terminar o curso de Arquitetura. Na capital francesa, teve oportunidade de estudar semiologia com Roland Barthes, no Collège de France, cinema com Jean Rouch, no Musée de l’Homme, e terminar o curso Arquitectura nas Belas-Artes. Trabalhou com o Herberto Hélder nos anos 70 e recebeu dois prémios da Associação Portuguesa de Escritores (APE) e várias distinções dos Ministério da Cultura. O seu espólio literário, onde se incluem 22 inéditos, começou recentemente a dar entrada na Biblioteca Nacional de Portugal.
O livro Ao largo de Delos reúne 40 poemas do poeta — “onde cabem duas Grécias e muito mais” — e chega às livrarias neste mês de janeiro, mais ou menos na mesma altura que Um mosquito num voo baixo, um “pequeno livro de poesia” de Gisela Cañamero, escritora, artes e encenadora, que já tinha publicado uma peça de teatro, Para Além do Muro, com a editora em 2015. Pena de Morte, um livro inédito de “um outro poeta, mais maduro”, Jorge Aguiar Oliveira, que também já editou com a Companhia das Ilhas, vai sair em fevereiro, alguns meses antes de um volume de poesia do açoriano José Martins Garcia, poeta com “uma obra genial que, infelizmente, não entrou na moda”, de acordo com Carlos Alberto Machado.
Ao largo de Delos, do poeta Ramiro S. Osório, é um livro “onde cabem duas Grécias”.
 A publicação está agendada para este mês de janeiro
José Martins Garcia nasceu em 1941, na ilha do Pico, de onde é natural a Companhia das Ilhas. Estudou Filologia Românica na Faculdade de Letras de Lisboa e começou a publicar, no início dos anos 70, na mítica editora Afrodite, de Ribeiro de Mello, que causou escândalo e sensação nos anos finais da ditadura salazarista com a publicação de títulos polémicos, como a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, de Natália Correia. Ganhou nome no início dos anos 80 mas acabou por cair no esquecimento depois da sua morte, aos 60 anos de idade. Considerado um dos grandes poetas açorianos do século XX, Martins Garcia nunca “entrou na moda”, como referiu Carlos Alberto Machado, que começou a reeditar a obra do poeta há dois anos. “Mesmo com a nossa edição, as pessoas leem, gostam, mas [o escritor] não entrou no circuito. Ficou um pouco para trás” e não teve a “repercussão nacional” de outros autores, admitiu o editor que, além de Poesia reunida, irá ainda editar um volume de ficção, Alecrim, Alecrim aos olhos, do mesmo autor.
Outro açoriano que faz parte do plano editoral da Companhia das Ilhas para 2018 é Manuel Tomás que, tal como Martins Garcia, também é um escritor contemporâneo. “São autores vivos e acho que isso é importante”, frisou o editor. “Aqui fala-se muito da literatura açoriana, mas os autores não são publicados ou são publicados de forma incompleta.” Para Carlos Alberto Machado, esse é o “serviço público” prestado pela editora — dar a conhecer escritores contemporâneos, naturais dos Açores, que caíram no esquecimento ou que nunca foram lembrados. Até porque há “algumas coisas bastante boas”, só que “os Açores sempre sofreram um pouco em relação ao continente, às vezes por culpa própria”. “Deixaram-se fechar”, considerou.
Foi também com esse sentido de missão que a Companhia das Ilhas se propôs a publicar a obra completa de José Sebag, um “muito importante e perfeitamente desconhecido” que “teve ligações muito próximas com o Grupo Surrealista de Lisboa”. Nascido em 1936, no Faial, Sebag publicou apenas dois livros durante a sua curta vida — Planeta Precário e Cão até Setembro — mas deixou muitos outros projetos que a Companhia das Ilhas pretende tornar públicos. “Planeta Precário é um opúsculo que ele publicou”, explicou o editor. “Ele achava que o título estava errado” e, durante uma viagem de regresso a Lisboa, “atirou os livros ao mar”. “A poesia é muito boa, sobretudo no contexto açoriano, mas não só. Estamos a trabalhar para fazer a edição desses dois livros e de outro que está inédito”, disse Carlos Alberto Machado, acrescendo que existe ainda um conjunto “muito grande” de poemas e “alguma prosa” que nunca foram publicados. A edição, que conta com o apoio da Direção Regional da Cultura, deve sair em 2019.
“Este livro contém a harmonia dos Quatro Evangelistas buscada por São Jerónimo.” É assim que a editora descreve Smalloch, de Alexandre Sarrazola, já disponível em livrarias um pouco por todo o país
Apesar de o catálogo deste ano da Companhia das Ilhas ser dedicado sobretudo ao teatro e à poesia, estão previstos alguns volumes de ficção. O primeiro, Smalloch, é de Alexandre Sarrazola — “um desconhecido” — e sai já em janeiro. Em março, será publicado Azares da poesia, de Jorge Fazenda Lourenço, especialista em Jorge de Sena. O livro — que mistura prosa e poesia — inclui “pequenos ensaios de literatura” e alguns poemas de Fazenda Lourenço e de outros autores. Um “projeto para continuar”, Carlos Alberto Machado espera publicar um livro de poesia do autor no próximo ano. Há rios que não desaguam a jusante, de Nuno Dempster, é “um romance de folgo” e vai sair mais tarde, em setembro. Ao todo, Carlos Alberto Machado espera publicar até ao final do ano cerca de 30 títulos, um número “um bocadinho complicado” para “uma editora pequena”. Mas o que interessa é não desistir.

domingo, 18 de março de 2018

25 anos sem Natália Correia, a mulher da língua de fogo



Um quarto de século da morte da escritora, editora e deputada que animou tertúlias famosas no mítico Botequim. Lembramo-la com a ajuda de biógrafas, estudiosas da sua obra e quem a conheceu de perto.

“As causas, as pessoas do coração e do sonho, e da fé, tinham-na do seu lado; as causas, as pessoas da manipulação, do utilitarismo, da serventia, conheciam-lhe a cólera, o chiste, a indignação”. Assim lembra Fernando Dacosta Natália Correia, em O Botequim da Liberdade, livro cujo título recupera a afamada tertúlia do bar do Largo da Graça. Continua a sua evocação em termos extremos – porque era extremada a figura que pretendeu retratar: “Sabia indignar-se com grandeza – e indignar os outros à sua altura. Era uma mulher inigualável. Nos caprichos, nos excessos, nas iras, nas premonições, nos exibicionismos, na sedução, na coragem, na esperança. Cantava, dançava, declamava, improvisava, discursava, polemizava como poucos entre nós alguma vez o fizeram”.
Há 25 anos, a 16 de Março de 1993, morreu, com 69 anos, uma figura maior da vida intelectual portuguesa, com obra vasta e diversificada, e uma personalidade excessiva, ora generosa ora colérica, em terra associada ao comedimento e à brandura no espírito, na pose e no gesto. Usar a expressão “saiu de cena” não é descabido – porque Natália era uma performer, alguém que representava o que deveras era. E que assim se apresentava no bilhete de indentidade, referindo-se ao arquipélago onde nascera e que em si permanecera:
“Sou da ilha das línguas de fogo. Com elas aprendi a metrificar o espírito. O indizível”.
Ângela Almeida, escritora e investigadora, doutorada em Literatura Portuguesa com uma tese sobre a simbólica da ilha e do Pentecostalismo em Natália Correia, caracteriza assim a relação que esta mantinha com as ilhas açorianas: “Conforme a própria autora escreveu em documento inédito, tinha uma relação ‘visceral’ com os Açores, muito especialmente com a ilha-mãe”. Lembre-se que a autora de “Mátria” e “A Ilha de Circe” viveu na ilha de São Miguel até aos 11 anos, indo depois viver para Lisboa na companhia da mãe e da irmã. Esses anos muito a terão marcado. Diz Ângela Almeida, que, além de ter feito a pesquisa na Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada dos inéditos, escreveu a introdução e as notas dos recém-reeditados livros Descobri que Era Europeia – Relato de Viagem aos EUA em 1950, e Entre a Raiz e a Utopia (Ponto de Fuga): “Como viveu na ilha natal um templo de pleno amor, paz e liberdade, tendo cedo conhecido o culto do Espírito Santo, visionava nas ilhas aquilo a que chamava ‘o último reduto da portugalidade’”.
Ana Paula Costa, autora da Fotobiografia de Natália Correia (Dom Quixote, 2006), abre as páginas da Poesia Completa e lê um sublinhado que fez quando preparava o trabalho:
“Basta cerrar os olhos e fixá-los na constelação das turmalinas mais rápidas do sangue para saber que a ilha é a mãe que se fecha na sua insânia de morta a percorrer impudicamente as nossas artérias.”
O excerto é retirado de A Mosca Iluminada, de 1972.
O abandono da ilha. A viagem aos Estados Unidos (1950). O casamento com Alfredo Machado (“o amor da sua vida”, para muitos). A amizade com António Sérgio, Almada Negreiros e Vitorino Nemésio. A criação do Botequim e todas as tertúlias que lá se fizeram. A amizade com Sá Carneiro que também incluía a admiração pela circunstância de ter assumido perante a sociedade a sua relação com Snu Abecassis.
Estes são alguns dos momentos da biografia da autora de A Madona destacados por Ana Paula Costa. Ângela Almeida acrescenta outros: todo o tempo vivido num ideal cooperativista, ao lado de figuras como António Sérgio e Urbano Tavares Rodrigues, lutando sem medo contra a ditadura, não obstante os livros apreendidos, e a condenação em tribunal pela publicação da Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica. A  esperança que viveu com a chegada da Revolução do 25 de Abril e o desencanto posterior, quer pelo domínio comunista que se seguiu, quer por nunca ter sentido que os ideais tivessem sido realmente alcançados. “Ainda a sua acção interventiva, desde tenra idade, a favor do integral cumprimento da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e da Paz, enquanto direito universal, que só poderia ser trazido pelo Amor”.
A sua afamada passagem pela Assembleia da República, na qualidade de deputada, e as intervenções que a tornaram conhecidas – como do poema do “Morgado” – não são, no entender de Ana Paula Costa, o que de mais importante se terá passado na sua vida. Lembra o que escreveu sobre o assunto:
“Não tenho qualquer espécie de carreira. Fui deputada porque me pediram para introduzir o discurso cultural no Parlamento, o que fiz nunca abdicando de me dedicar à minha obra literária que se desdobra em vários géneros”.
Mulher de paixões, valorizava muito a amizade. Um dos seus amigos fundamentais foi David Mourão-Ferreira, que dizia que ela era a irmã que nunca havia tido. David Ferreira, filho do autor de “As Lições do Fogo”, recorda essa irmandade. Conheceu-os como irmãos de temperamentos muito diferentes, irmãos pela camaradagem e pela convergência em matérias muito importantes: contra o Estado Novo e contra qualquer condicionamento estético e ideológico (“contra o pior neo-realismo, por isso”), contra o puritanismo e a moral burguesa, novos e abertos ao novo mas sem paciência para o modernaço, poetas, estudiosos e divulgadores da poesia de outros séculos, atraídos pela música e sem preconceitos contra o fado. E europeus convictos.
As reedições da Ponto de Fuga

David Mourão-Ferreira admirava-lhe a coragem e foi sua testemunha quando Natália encontrou problemas com a Justiça. “Depois da Revolução”, conta David Ferreira, “tiveram trajectórias parecidas: próximos do PS a certa altura, afastando-se depois (a Natália aproximando-se do Sá Carneiro, o meu pai do Eanes), reaproximando-se do Mário Soares no fim”. Foi a suspensão pelo Conselho de Redacção d’’A Capital’ de um artigo de Natália Correia que levou David Mourão-Ferreira a demitir-se, em 1975, do cargo de director do jornal.
David Ferreira, que após o trabalho na edição discográfica durante quase 40 anos se dedica hoje à realização de vários programas na Antena 1, lembra, a propósito, um serão histórico que juntou Vinicius de Moraes e Amália Rodrigues, nascido num jantar de Vinicius em casa de David Mourão-Ferreira, ao qual Amália não pôde comparecer por estar constipada, acabando por lhe pedir para se dirigirem à sua casa. “Eram muitos em casa do meu pai nessa noite. Uns tinham vindo ao jantar, outros vieram depois para estar com o Vinicius. E como nessa altura moravam perto acabou tudo em casa da Amália”.
Só faltou o material de gravação adequado para registar o encontro. Mas o seu tio Rui Valentim de Carvalho também apareceu e combinaram logo repetir o serão, agora preparados para gravar um disco. “A Natália, claro, era um dos amigos que desceram da Estrela para a Rua de São Bento”. Na sequência disso, veio a gravar vários discos, entre 1968 e 1974 (uns para a Valentim de Carvalho e outros para a Sassetti) de poesia sua e de poesia medieval (um deles com a própria Amália).
O juiz conselheiro jubilado do Supremo Tribunal de Justiça e ex-ministro da Justiça Álvaro Laborinho Lúcio, autor dos romances O Chamador e O Homem que Escrevia Azulejos (ambos editados pela Quetzal), define com estas palavras a sua relevância: “Da poesia, do teatro, do romance, mas também da política, da intervenção cívica, fez lugares para si, púlpitos para o discurso da transcendência que apontava como desígnio das gentes. Desprezando o banal, renegando o vulgar, a sua luta travava-se no palco das ontologias, ali, onde a verdade não conhece concessões”.
Laborinho Lúcio foi um dos frequentadores do Botequim, aonde afluíam, entre outros, políticos, intelectuais e artistas. Refere que “era má a notícia, dada à entrada pelo barman, de que ‘a senhora dona Natália hoje não vem’”. Sem Natália, o Botequim era apenas um bar. Aí, afirma, “ao contrário do julgamento de muitos, todos eram figurantes. Vedeta, era só ela”. Discutia-se política, políticas e políticos, acontecimentos mundanos, paixões reveladas, segredos espreitados, revelações literárias, temas que haveriam de ser assunto de todos, conspirava-se. “Natália tinha, porém, a palavra final retirada do desassombro com que pensava e dizia o que pensava”. A poesia chegava mais tarde e ficava reservada para os resistentes, para os que ficavam para a ouvir. E, recorda Álvaro, Natália cantava. “Era então que voltavam as Ilhas, e o canto popular açoriano enchia a voz sonora, de um timbre perfeito, envolvendo todos na emoção de uma interpretação culta e sentida”.
O ex-ministro da República para os Açores (2003-2006) salienta um ponto essencial na sua tempera: “Natália escolhia. Tomava partido. Distinguia e agia de acordo com as escolhas que fazia”. Não gostava de Juízes, diz. “Bramava contra o Plenário. Ficara-lhe a revolta desde os tempos da Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, do julgamento, da condenação. E não deixava que a memória se apagasse no registo do processo que lhe haviam movido pela edição de Novas Cartas Portuguesas”.
Até que um dia, depois de aturada resistência, que teve o Botequim como palco, aceitou participar num debate sobre ética e estética, no âmbito da formação de magistrados, a decorrer na respectiva escola, na vizinhança do bar. E tudo mudou. Segundo relatos de amigos, a partir daí passou a dividir os juízes em dois grupos, os “Plenários” e os “Outros”. “E destes, dos ‘Outros’, vários passaram a acorrer também ao Botequim onde, no entanto, nunca se sentiram dispensados de fazer prova de que o eram realmente”.
Depois de uma vida de múltiplas actividades, da escrita (do teatro à poesia, passando pelo romance e pelo ensaio) à edição, do jornalismo à política, e após muito pensar o país, a Europa e o mundo com fervor utópico e uma perspectiva apaixonada, progressista e exigente, ficou com um sentimento dividido em relação a Portugal. Ângela Almeida usa a seguinte formulação para o caracterizar: um sentimento “de encanto pelas raízes da nossa Portugalidade, onde se aloja a nossa interioridade” e aquilo que classifica como “um profundo e crescente desencanto pelo desaire neo-liberal europeu, a que naturalmente Portugal não escapou”. Era, diz, “verdadeiramente pessoana, apesar de tudo, aguardava a Hora”.
Que legado deixa a autora de Sonetos Românticos e de O Dilúvio e a Pomba? Para Ângela Almeida, o seu legado literário funde-se com o seu ideal ético. “Longe dos poetas das torres de marfim, escreveu que a literatura serve a vida e, por isso,  defendia a síntese agregadora de todas as antinomias e de todas as antíteses existenciais, que dariam lugar ao Absoluto heterodoxal, através da fusão dos  contrários, viabilizada pelo Amor incondicional, a que chamou Espírito”. Essa era, acrescenta, a morada da libertação da alma universal: longe de qualquer espécie de ortodoxia, o ser humano teria que divinizar-se pelo fogo (agregador) de Pentecostes. “Foi esse ideal de libertação humana, através dessa fusão dos contrários, que a fez estudar e amar o Trovadorismo (onde a mulher é dignificada), o Romantismo e o Surrealismo. A sua corrente literária era a sua voz pessoal”. A estudiosa realça um aspecto pouco conhecido: “Há uma profunda unidade temática entre a obra édita e a obra inédita de Natália Correia. Como se a inédita provasse o pensamento de Natália ou vice-versa”. A mesma realização do Amor Total, “muito importante para o mundo de hoje, onde as diferenças ainda não são respeitadas, antes alvo de balas de variada ordem. Veja-se o que aconteceu recentemente no Brasil, que é de gelarmos”.
Recententemente, Ana Paula Costa conheceu uma jovem professora de Português e História que não sabe quem é Natália Correia. E teme que não seja a única. É por isso que deseja que a autora que morreu há 25 anos seja descoberta pelas novíssimas gerações e mais conhecida e respeitada pelas entidades responsáveis pelo impulso de uma divulgação que, acha, ainda não começou. Considera A Madona” um romance admirável, muito pouco lido e estudado. E classifica a sua poesia, pautada por um ecletismo de forma e conteúdo, como um tesouro nacional. “O ensaio que escreveu reflecte momentos e circunstâncias do pensamento português no século XX e terá que ser, mais cedo ou mais tarde, objecto de estudo por parte dos académicos ou de jovens autores que tenham a preocupação de conhecer a herança que lhes coube”.
Ao falar do seu legado ético, nomeia a palavra “verdade”, mesmo que ultrapasse os contornos do razoável ou do politicamente correcto. “A verdade poética que, para ela e segundo ela, não é corrompível”. A professora e escritora pensa muitas vezes no que poderia dizer e escrever sobre algumas questões com que nos debatemos hoje.
A citação é recuperada por Álvaro Laborinho Lúcio. Disse Natália Correia, na linha do pensamento de Pascal, que a verdadeira moral se atinge apenas quando ela se ri da própria moral. Eis uma proclamação, remata, que bem pode ouvir-se ainda hoje, recordando-a, de pé, braço direito ao alto, voz no peito, projectada, junto ao balcão, ali, onde ela e o seu Botequim se confundiam, e agora se confundem para sempre, num só ser.
Nuno Costa Santos, "25 anos sem Natália Correia, a mulher da língua de fogo", 17-03-2018
https://observador.pt/especiais/25-anos-sem-natalia-correia-a-mulher-da-lingua-de-fogo/
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A Ponto de Fuga reedita "Descobri que era Europeia", a propósito dos 25 anos da morte da autora açoriana. Do livro fazem parte inéditos como este diário nos EUA em 1983 que o Observador revela.


“Descobri que era Europeia” é o conjunto de textos publicados originalmente em 1951 nos quais Natália Correia refletia sobre a sua primeira viagem aos Estados Unidos, sobre a descoberta de um mundo diferente e com as impressões de uma viagem marcante. É este livro que é reeditado agora, pela Ponto de Fuga, a propósito dos 25 anos da morte da autora, a 16 de Março de 1993. Nesta reedição estão incluídos inéditos, como este diário sobre um regresso à América, mais de 30 anos depois, em representação do então Presidente da República, o general Ramalho Eanes. O Observador faz a pré-publicação de um excerto desta reedição de “Descobri que era Europeia”, que chega às livrarias esta sexta feira, dia 16.

1. Voo Lisboa–Nova Iorque

3/6/1983

“E cá vou até à América do Norte, para representar o Presidente da República nas comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades.
Se ele soubesse quanto isto me custa!
Missa, parada, entrega de condecorações, e toda a banda de solenidades que são um susto para a alma de um poeta. Mas como poderia recusar a incumbência? Esse homem tem-me cumulado de manifestações de carinho e de apreço pela minha obra. Talvez um dia se perceba que a força de alma que tem permitido a Eanes conduzir sem grandes abalos o barco ébrio desta democracia é o seu respeito pela cultura, pela gente que a faz, sobretudo pelos poetas, que são os verdadeiros sacerdotes de uma cultura eminentemente poética.
Mas cá vou neste interminável voo suavizado pelo caviar, pela lagosta, pelo foie gras trouffé e pelo champanhe que a primeira classe proporciona. A par dos sorrisos das hospedeiras que são as gueixas deste vê se te avias que é o transporte aéreo. Sempre que o utilizo, previno-me com leitura sentimental. É o meu antídoto contra o desencanto de um viajar ofegante, apertadinho no bojo do dragão aéreo. Desta vez a receita é um livro sobre os amores de Venceslau de Morais. Imaginem que escolha! No fundo, bem acertada. Neste desamar gerado pela pressa, de que o avião é um produto tecnológico, sabe bem o refrigério de amores românticos, convulsões de alma, pieguices, maravilhas de um ridículo sublime que nos fez mais humanos.
Mas agora reparo que a bata que as hospedeiras puseram para servir a refeição está amarrotada, e os seus sapatos já não têm aquele chique que era a marca da mulher portuguesa, requintadíssima no calçar. Isso deve ter alguma coisa que ver com um Portugal que se amarrota por não ter gosto nenhum para acompanhar o tal progresso que tem como apoteose o foguetório da bomba atómica. Pois é esse Portugal que eu vou representar junto das comunidades portuguesas na América. Que dizer-lhes? Que o país é a bem-aventurança dos piores, o paraíso dos parasitas, o picadeiro dos garanhões das ganâncias partidárias? Impossível transmitir-lhes este desconsolo nacional. Mas que lhes direi? Que os amores do exilado Venceslau de Morais me inspirem, pois vou falar para exilados.
E não seremos nós todos portugueses exilados? Mesmo na Pátria. Sobretudo na Pátria, que por isso mesmo é a Pátria da Saudade.

2. Voo Nova Iorque – Califórnia

11/6/1983

— Thanks for having chosen the friendly skies.
«Obrigada por ter escolhido os céus amigos» — isto diz uma voz repugnantemente açucarada no avião.

Esta sociedade está pior do que nunca. Em relação há 30 anos, quando cá estive e me horrorizei o suficiente para escrever o Descobri que Era Europeia, tem a mais (ou a menos) o computador, que é o prolongamento da sua imbecilidade. Desde que cá cheguei, esse monstro só comete erros comigo. No Intercontinental, em Nova Iorque, tinha uma mensagem à minha espera. Isto me disseram, indicando-me que fosse até à secção do computador que tinha registado a mensagem. Quando lá cheguei, o monstro tinha-se avariado. Adeus, mensagem.
Ontem, no Plaza, em Boston, pedi na portaria para me acordarem às oito da manhã, porque tinha de seguir para a Califórnia. Nada de enganos, portanto. A rececionista informou-me de que essa função de acordar era com o computador. Mas que estivesse descansada. Seria acordada às oito em ponto. Pois bem.
Às cinco e trinta da manhã, uma vozinha sadicamente alegre desperta-me pelo telefone, cantando a saudável alegria do despertar!
E cá vou, de voo para a Califórnia, nesta América onde um criptonazismo põe God bless América onde o boche berrava Deutchland über alles. Esta gente está realmente convencida de que, para além deles, nada mais há no mundo. Chama-se a isto imperialismo por ignorância.

3. Voo Califórnia – Nova Iorque

13/6/1983

E cá vou, liberta, enfim, da missão cumprida. Fui recebida em todas as comunidades, particularmente Newark, Boston e Califórnia, como a «pessoa que melhor representou o Presidente da República até hoje». Eanes não esperava outra coisa quando me escolheu para lhe servir de embaixadora neste universo de portugueses, onde a palavra quente de um poeta faz mais lume do que o discurso sisudo com as linhas do calculismo de um político.
Mas confirmou-se a minha opinião de que (isto no meu instante contacto com os cônsules que aqui me mimosearam com a vénia dirigida ao Presidente da República) a diplomacia é o caminho mais curto para a homossexualidade. Algumas exceções, claro, mas quase todos eles, ainda que casadinhos, papais, machões, em suma, desse terrorismo moral que é a família, não conseguem libertar-se dos gestos amaricados adquiridos na escola das Necessidades. Portanto, uma pose. Nada de prática, presumo.
São Francisco é uma cidade redonda, feminina, por entre a simetria e linearidade esquizofrénica das grandes cidades norte-americanas, excetuando Washington. Cidade com «seios» como a Lisboa das colinas, é natural que seja a capital dos gays.
Aqui no avião, um penoso esforço em primeira classe, para a técnica fazer vénia do banquete em caviar, patés, queijos da mais escolhida table de fromages francesa, etc., mas tudo tão estreitinho. Como é exíguo este mundo da amplitude transnacional conquistada pela navegação aérea. Num pulo, está-se noutro continente, mas o meio para lá chegar é uma claustrofobia, um enlatado humano.
Os portugueses da Califórnia são os mais enraizados nos Estados Unidos da América. Contudo, fazem um esforço de memória para defenderem as origens que os diferenciam neste império da igualização.
América! Num lado, arrumada na jardinagem, no golfe e no jogging, o que é bom para a saúde, para a candidatura a Matusalém. Embora o jogging, horrenda velocidade com a língua de fora e calções acuecados a que esta gente se dedica depois de sair do emprego, os faça cair cardiacamente como tordos. Mas lá vão, convencidos de que correm para a longevidade bíblica. No outro lado, destempera-se a América em taradinhos sexuais e ridículas fantasias que satisfazem a sua impenitente possidoneira.
Agora reparo. No meu lado vai uma bêbeda. Desde que entrou neste avião, ele foi o champanhe, os cocktails, os vinhos, os conhaques, um sei lá o quê. Tipo completo de frustrada do cinema americano. Sou talvez cruel com este país. Deve haver uma razão que não consigo trazer à consciência, mas irrita-me a arrogância do seu infantilismo.

4. Voo Nova Iorque – Lisboa

14/6/1983

Este voo é mesmo voo. Com asas, libertação de incumbências solenes que me ataram a têmpera.
Por exemplo: as condecorações que tive de entregar em nome do Presidente da República, com discurso custosamente apropriado, em São Francisco, na cerimónia que encerrou as comemorações do 10 de Junho.
E cá vou de regresso ao lar, que, para mim, é os meus livros, a minha muita papelada — notas aqui, projetos ali, desabafos, poemas larvares, contos que nunca farei, pétalas filosóficas de uma rosa mística que estou sempre a unir num amanhã adiado.
Mas o meu lar é também o meu velhinho querido, única paixão da minha vida, que me atura há dezenas de anos com um respeito paternal, rabugento, pela minha loucura.
Antes de partir, peguei ao acaso em alguns livros para ler de viagem. Um deles, li-o há muito tempo. E como estou na fase de ler com olhos maduros o que traguei com olho verde de rapariga, eis-me relendo, neste voo de doce retomo, essa entre magistral e maçadora redundância camiliana que é o Andam Faunos pelos Bosques, do Aquilino. (Esta prosa vai mal-arranjada, muitos cortes e emendas, porque as interrupções da hospitalidade aérea da primeira classe são muitas: o cocktail, o appetizer, o cravo, como florido desejo de boa viagem da TWA, etc…) Mas os Faunos repõem-me na atmosfera camiliana de boa fêmea para cama de padre. E foi isso que vim encontrar nas comunidades portuguesas da Nova Inglaterra, onde a bênção do pároco, indispensável em todas as sociedades, por mais laicas que sejam, tem a contrapartida saudavelmente erótica do cura com amásia.
Em mais de um núcleo (não os nomeio para não os comprometer perante a hierarquia) encontrei a imagem do velho abade dado às comidas e à fêmea. Num deles, num sarau cultural ingenuamente inserido nas comemorações do Dia de Portugal, tocava piano sob a batuta do dedo da barregã, aliás vivíssima, lá das Beiras, que era também a autora de deliciosas comédias, tais como o Retratista. Nesta farsa, arrancada ao inconsciente coletivo, no qual o ato de tirar o retrato é figuração mágica de roubar a imagem, a tal amásia do cura já pouco chegava, no desfecho aloucado da ação, ao nonsense do Ionesco e quejandos.
Também noutra comunidade tive de dar a direita a um reverendo que, no beber, no comer e no arregalar do olho (acompanhado por confessa fala de entusiasmo sexual) para a fornada de carnes, era uma maravilha de portuguesa idoneidade clerical. Sou decisivamente a favor deste padre minhoto e transmontano que Camilo tão bem pintou no seu opíparo romancear de coisas efetivamente lusas que não dispensam o recorte erótico-pagão do sacerdote comilão e femeeiro.
Lembro, a propósito, que, quando estava, há anos, em Viana do Castelo, por ocasião da cantata (com libreto meu) D. Garcia, incluída no X Festival de Vilar de Mouros, o padre Dulcino, que dirigia o coro — beleza de homem, cuja castidade (?!) era um mistério e um flagelo para as serrãs que o perseguiam —, pôs-me em contacto com uma série de abades que eram um primor no canjirão de vinho e na anedota picante.
De um deles, numa seroada em que fomos cear depois do ensaio, ouvi eu esta história, ao que ele disse verdadeiríssima e recente, passada ali para os lados de Caminha: tendo o pároco passado a pente fino todas as belezas da terra, solteiras e casadas, a diocese, instada por queixas dos maridos vitimados pela sanha viripotente do abade, deu-lhe guia de marcha para outra paróquia. O malandreco do cura mandou tanger os sinos para reunir o povo no adro e bota esta discursata, endereçada aos zeladores das pudendas partes das esposas:
«Eu cá me bou. Mas muitos cornos vos deixo.»
Isto passou-se nos anos 60, e é bem o espelho camiliano deste sacerdócio de pénis arrebitado que é a única energia que mantém os portugueses de pé. E também a mesa, não esqueçamos. Isto escrevo saboreando umas colheradas de caviar, que é petisco pelo qual quase me disponho a vender a alma ao diabo. Isto disse um dia ao Octávio Pato, que não era propriamente o demo, antes homem simpático, riso pronto de comunista aberto, à coca de eventuais simpatias ou menores antipatias pelo PCP. Estávamos na deprimente cantina self-service da Assembleia da República, onde a bicha para o chá ou o café com leite do intervalo dos trabalhos é bem a penalização merecida por indivíduos que se prestam a essa carneirada. Sempre que eu ali descia (descer é o termo), vinham-me nostalgias dos meus requintes gastronómicos. E para me aliviar da lixeira daquele péssimo chá (que fazer?, não dispenso esta bebida da Gorreana da minha infância micaelense), self-servido em condições tão humilhantes para o aprumo com que se deve beber o que nos sabe bem, desatava a chamar em altos e refinados apetites pelo meu caviar. De uma dessas vezes, o Octávio Pato, com ironia proselitista, atiçou-me:
— Isso é o menos. Venha para o PC, que tem todo o caviar que lhe apetecer.
— Todo?
— Bom… — hesitou ele.
— Então, nada a fazer — reclamei. — É que eu só seria comunista enquanto comesse caviar. Uma vez papado o acepipe, adeus comunismo. Não vale a pena mandar-me o caviar. Como vê, seria um péssimo negócio.
Rimo-nos, e por aí ficou a minha cómica adesão gastronómica ao marxo-leninismo.
Era esta a democracia nos bastidores da Assembleia da República. Uma civilidade que, infelizmente, não transparecia nos debates maniqueus do hemiciclo.
Quanto à democracia na América do Norte, é a do aperto de mão. Que tédio! Os mayors não perdem uma oportunidade, festarola, comemoração, seja o que for, para marcarem presença, com a mão estendida para todas as bandas, na prostituição da conquista do voto.
Todos muito amigos dos portugueses, os muitos mayors que vi e conheci nas diversas comunidades, por ocasião das festividades do 10 de Junho! É o és! O que eles andavam era na caça do voto, de manápula aberta e espetada para o aperto de mão que atrai votantes. Que diferença entre esta democracia do Tome lá o bacalhau e o nosso desprezo europortuguês por essa forma meretrícia de pescar eleitorado. É claro que este nosso ceticismo é o mesmo adversário da democracia que não passa sem esses ingredientes hipócritas de dar a cada um, no aperto de mão, a importância que ele não tem.
Mas que fazer?! As velhas árvores genealógicas são frágeis. Não suportam o peso grosseiro desses frutos dos povos sem história. É esta a nossa fraqueza. Somos um povo de pulhas antiquíssimos. Preferimos o punhal cinzelado pela elegância de atitudes, mesmo desdenhosas desse bem comum que é a democracia, à vulgaridade do aperto de mão que caça o voto.”






"Pré-publicação. Quando Natália Correia representou Ramalho Eanes na América", Observador, 15-03-2018


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Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Natália Correia, por José Carreiro.


sábado, 7 de setembro de 2013

Cancioneiro Joco-Marcelino (Natália Correia)


Em 1989, Lisboa teve uma campanha eleitoral excêntrica:
Marcelo Rebelo de Sousa mergulhou no Tejo, guiou um táxi e varreu o lixo.



O poema de Natália Correia que arrasou Marcelo por visitar bairros de lata

 

Os bairros sociais não são uma novidade para Marcelo. Em criança acompanhava a mãe, já jovem fazia voluntariado, mas como político nem sempre correu tudo bem. Até foi brindado com poemas de escárnio.

 

 

Ainda criança, o pequeno Marcelo acompanhava a mãe no trabalho, como assistente social, aos bairros mais desfavorecidos de Lisboa. Já no liceu, em colaboração com as Conferências de São Vicente de Paulo, visitava bairros de lata para distribuir comida pelos mais pobres. Anos mais tarde, em 1990, chegou a vez de o fazer como político, como candidato do PSD à câmara municipal de Lisboa e, aí, as coisas já não correram tão bem: primeiro porque ninguém quis saber o que propunha para aquelas zonas, depois porque a ideia que circulou — de que pretendia dormir nesses bairros de lata durante a campanha — foi imortalizada por Natália Correia no poema jocoso “Marcelo e as tágides“.

Apoiante de Jorge Sampaio, Natália Correia fez uns poemas — quase cantigas de escárnio e mal-dizer — sobre o candidato da direita. No jornal O Corvo — nome do jornal da campanha eleitoral da Coligação por Lisboa — a poetisa escreveu um “Cancioneiro Joco-Marcelino”, que foi publicado em novembro e dezembro de 1989 e mais tarde em várias antologias poéticas. Numa das quadras, a poetisa fala de um prodígio que Marcelo com superpoderes “congemina”: dormir nos bairros e acabar com os males de quem ali vive.




MARCELO E AS TÁGIDES


Marcelo, em cupidez municipal

de coroar-se com louros alfacinhas,

atira-se valoroso – ó bacanal! –

ao leito húmido das Tágides daninhas.

 

Para conquistar as Musas de Camões

lança a este, Marcelo, um desafio:

Jogou-se ao verso o épico? Ilusões!…

Bate-o Marcelo que se joga ao rio.

 

E em eleitorais estrofes destemidas,

do autárquico sonho, o nadador

diz que curara as ninfas poluídas

com o milagre do seu corpo em flor.

 

Outros prodígios – dizem – congemina:

ir aos bairros da lata e ali, sem medo,

dormir para os limpar da vil vérmina

e triunfal ficar cheio de pulguedo.

 

Por fim, rumo ao céu, novo Gusmão

de asa delta a fazer de passarela,

sobrevoa Lisboa o passarão

e perde a pena que é de galinhola.



 

in INÉDITOS 1979/91 Cancioneiro Joco-Marcelino, POESIA COMPLETA

 

Mais tarde, quando publica este e outros poemas sobre Marcelo em livro, Natália Correia explica que nada tem contra o agora Presidente, mas que não podia abdicar de registar estas irresistíveis “piruetas marcelinas“.  Numa “recomendação introdutória” começa por dizer: “Não se leia neste parodístico registo das traquinices com que Marcelo Rebelo de Sousa extravagantemente singularizou a sua campanha de candidato à presidência da Câmara Municipal de Lisboa uma condenação dessas travessuras.” E acrescenta: “Saiba-se antes ler neste acompanhamento jocoso das piruetas marcelinas uma irresistível simpatia posta em humor por travessuras para mim ainda mais atraentes dado o enfadamento que a solenidade me provoca num magister de reconhecido mérito em Direito.”

Ainda na campanha a Lisboa, Marcelo Rebelo de Sousa apresentava “300 medidas para salvar Lisboa” e — segundo o livro Marcelo Rebelo de Sousa, de Vítor Matos — uma das medidas mais emblemáticas que tinha era um “plano de erradicação de barracas e bairros de lata, que visita durante o mês de outubro à chuva e pelo meio da lama”. Mas — segundo o próprio confessou anos mais tarde ao autor do livro — “a classe média estava-se a borrifar para isso”, recorda o ex-candidato. No dia em que apresentou as propostas, cometeu, aliás, um pecado capital: foi ao circo e, no dia seguinte, ao invés das medidas, os jornais só falavam de como Marcelo colocou a cabeça dentro e fora da jaula de uma leoa chamada Aida.

A poesia de Natália não se ficou por ali. A poetisa acabaria por brindar Marcelo com outros poemas. Um deles comparando-o a Batman, como se vê pela primeira quadra de “Batma(n)rcelíade“:

Sempre sôfrego do último modelo
pela batmania agora cego,
deixa de ser taxista e eis que Marcelo
troca o volante por asas de morcego

 

Já em “O Fado do Coveiro“, mais um poema dedicado a Marcelo, é exposto o desespero de Cavaco Silva por ter um candidato tão excêntrico à maior câmara do país. A última quadra desse poema rezava assim:

Estremece Aníbal com o pardal fadista
que aquilo é treino para o último regalo:
escaqueirar o reinado cavaquista
e sobre a tumba, por fim, cantar de galo”

 

Em “Marcelo até Almeida“, o tom é mais duro

Chorando pérolas amargas no chiqueiro
num andar aos papéis que não tem fim,
a Santo António da Lisbia milagreiro
Marcelo oferece o derreado rim

 

O último episódio polémico da ida a um bairro problemático, aconteceu na última segunda-feira. Marcelo Rebelo de Sousa foi ao Bairro da Jamaica e conversou com uma família que tinha estado em confrontos com a PSP. O sindicato da polícia considerou que o Presidente estava a discriminar os polícias.

Marcelo deixou de lado a poesia e os afetos e respondeu com estrondo, dizendo não querer acreditar que a polícia se está a pôr no “mesmo plano” de uma comunidade desfavorecida.

Rui Pedro Antunes, https://observador.pt/2019/02/05/o-poema-de-natalia-correia-que-arrasou-marcelo-por-visitar-bairros-de-lata/



 
                 
              
O FADO DO COVEIRO

Das artes mágicas campeão audaz
tira Marcelo da manga a outra faceta:
por su dama Lisboa, o Galaaz
faz à viela e ginga à lisboeta.

Calça à boca de sino de sino e cachené
ao marialva senil metendo inveja,
fidalgo edil que canta para a ralé
o faduncho finório gargareja.

Estremece Aníbal com o pardal fadista
que aquilo é treino para o último regalo:
escaqueirar o reinado cavaquista
e sobre a tumba, por fim, cantar de galo.
               
Natália Correia, “Cancioneiro Joco-Marcelino” 
in O Corvo, jornal de campanha eleitoral da Coligação por Lisboa. 
N.º1 a 8, novembro/dezembro de 1989.
              
              

Reprodução mimética dos arquétipos medievais
              
A reprodução mimética consiste na replicação quase perfeita dos modelos poéticos trovadorescos, desde a sua estrutura formal até aos temas e campos sémicos próprios das cantigas medievais.
[…] vamos analisar um poema de Natália Correia, que se aproxima muito do género da cantiga de escárnio e maldizer – “O fado do coveiro”. Em primeiro lugar, importa referir que esta composição faz parte de um conjunto de poemas a que Natália Correia deu o título de «Cancioneiro Joco-Marcelino», o que, por si só, constitui uma remissão explícita para os cancioneiros medievais. Na «Recomendação Introdutória», a autora esclarece a motivação deste “parodístico registo das traquinices” de Marcelo Rebelo de Sousa, numa inesquecível campanha eleitoral para a Câmara Municipal de Lisboa em 1989:
«Não se leia neste parodístico registo das traquinices com que Marcelo Rebelo de Sousa extravagantemente singularizou a sua campanha de candidato à presidência da Câmara Municipal de Lisboa uma condenação dessas travessuras.
Saiba-se antes ler neste acompanhamento jocoso das piruetas marcelinas uma irresistível simpatia posta em humor por travessuras para mim ainda mais atraentes dado o enfadamento que a solenidade me provoca num Magister de reconhecido mérito em Direito.» (Natália Correia, Poesia Completa, 2ªedição, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2000, p. 561)
            
Assim sendo, este cancioneiro é composto por oito poemas, que oscilam entre a cantiga de escárnio e maldizer e o sirventês político, em torno de uma figura central – Marcelo Rebelo de Sousa –, à semelhança dos ciclos temáticos da sátira galego-portuguesa. No poema “O fado do coveiro”, comenta-se a apresentação e campanha de Marcelo.
Esta composição encontra-se articulada em três coblas ou estrofes de quatro versos e apresenta rima cruzada, tratando-se de uma cantiga de mestria. Como era frequente nas cantigas de escárnio e maldizer, esta composição apresenta “interferências da função narrativa” (Giuseppe Tavani, Trovadores e Jograis – Introdução à Poesia Medieval Galego-Portuguesa, s.l.: Editorial Caminho, 2002, p. 238), sobretudo na primeira estrofe que introduz a figura satirizada e o seu comportamento, que serão alvos da diatribe mordaz do poeta. A glosa satírica do comportamento de Marcelo contém alguns dos campos sémicos mais comuns das sátiras medievais1: o «ethos trovadoresco», quando são referidas as mudanças drásticas que faz pela sua dama (“por su dama Lisboa, o Galaaz faz à viela e ginga à lisboeta”); o «ultraje», presente em termos como “ralé”, “gargareja”, “escaqueirar”; o campo sémico da «descriptio», com a descrição das peças de vestuário de Marcelo (“calça à boca de sino”, “cachené”) e, por último, o da «polémica social», com as referências ao “fidalgo edil” que faz ‘estremecer Aníbal’ com o seu “faduncho finório” e que consegue “escaqueirar o reinado cavaquista”, com alusões evidentes ao primeiro-ministro à época, Aníbal Cavaco Silva.
              
Sílvia Marisa dos Santos Almeida Cunha
Universidade de Aveiro- Departamento de Línguas e Culturas, 2008, pp. 9, 14-15
              
             
***
               
A natureza bifronte da estética e da ética trovadorescas, em cuja origem se produz «o fenómeno do difásico Dr Jekyll-Mr. Hyde» (Natália Correia, «Notas para uma introdução às cantigas d’escarnho e de mal dizer galego--portuguesas», p. 158), encontra-se projectada na releitura que, em paralelo, Natália Correia desenvolve do cancioneiro burlesco, testemunhada pelos conjuntos poéticos intitulados Cantigas de risadilha Cancioneiro Joco-marcelino. Pelo cultivo desta poética bivalente dá a autora provas da «osmose lírico-satírica dos dois veios provenientes da génese trobadórica, berrante em Gomes Leal e Sá-Carneiro, porém quebrada pela mitofagia da religião pessoana» (Natália Correia, «Prefácio» a José Carlos Ary dos Santos, As palavras das cantigas, Lisboa, Edições Avante, 1989, p. 7).
É de sublinhar o imprescindível enraizamento circunstancial destes textos, que a autora lucidamente apoda de «desenfados quase todos parlamentares». No entanto, o seu ludismo aparentemente inócuo não deve fazer esquecer que a «atitude intervencionista nos nossos dias postulada pelo realismo social» (Natália Correia, Cantares dos Trovadores Galego-Portugueses, p. 47), cuja vitalidade Natália Correia muito certeiramente assinala a propósito do escárnio trovadoresco, não se encontra de todo ausente destas diatribes poéticas.
Partícipes do sirventês político e da chufa pessoal, trata-se, em qualquer dos casos, de criações iluminadas pelas rubricas explicativas que as antecedem, nas quais se esclarecem as coordenadas situacionais que subjazem à sua génese, um pouco à maneira de razos modernas. No caso das Cantigas de risadilha, a explícita vinculação paratextual a um subgénero que surge, desde a lacunar codificação poetológica que dele figura na anónima Arte de Trovar, associado a uma pragmática do riso e do sem-sentido2, revela precisamente «a transição do escárnio popular para a sátira artística» assinalada pela autora na introdução à Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica. Por seu turno, o Cancioneiro Joco-Marcelino («o parodístico registo das traquinices» de Marcelo Rebelo de Sousa) estriba-se numa sintaxe poética serial, semelhante à dos ciclos satíricos galego-portugueses, organizados em torno de uma personagem histórica. Em qualquer dos casos, deteta-se a permanência de uma personapoética que endossa um discurso entre o sentencioso e o satírico-burlesco, e de artifícios retóricos claramente tributários da textualidade da cantiga satírica galego-portuguesa.
         
________________
(1) Nas cantigas de escárnio e maldizer, podem encontrar-se quatro campos sémicos principais (o «ultraje», o campo «alimentar», a «polémica social» e o «obsceno») e um secundário (o «ethos trovadoresco») e ainda outros campos importados de outros géneros (a «coita d’amor», a «descriptio», a «paisagem»). (Giuseppe Tavani,Trovadores e Jograis – Introdução à Poesia Medieval Galego-Portuguesa, s.l.: Editorial Caminho, 2002, p. 251)

(2) Sobre as cantigas de risabelha diz-se no capítulo V da Arte de Trovar: «Pero er dizem que outras há i “de risabelha”: estas ou serám d’escarnho ou de maldizer; e chama-lhes assi porque riim ende a vezes os homens, mais nom som cousas em que sabedoria nem outro bem haja.». Cf. Giuseppe Tavani (ed.), Arte de Trovar do Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 1999, p. 42.   

  

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Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Natália Correia, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo. Disponível em: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/europa-galiza-e-portugal-continental-e-ilhas/Lit-Acoriana/Natalia_Correia, 2021 (3.ª edição).

 

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/09/07/o.fado.do.coveiro.aspx]
Última atualização: 2022-07-18