domingo, 18 de março de 2018

25 anos sem Natália Correia, a mulher da língua de fogo



Um quarto de século da morte da escritora, editora e deputada que animou tertúlias famosas no mítico Botequim. Lembramo-la com a ajuda de biógrafas, estudiosas da sua obra e quem a conheceu de perto.

“As causas, as pessoas do coração e do sonho, e da fé, tinham-na do seu lado; as causas, as pessoas da manipulação, do utilitarismo, da serventia, conheciam-lhe a cólera, o chiste, a indignação”. Assim lembra Fernando Dacosta Natália Correia, em O Botequim da Liberdade, livro cujo título recupera a afamada tertúlia do bar do Largo da Graça. Continua a sua evocação em termos extremos – porque era extremada a figura que pretendeu retratar: “Sabia indignar-se com grandeza – e indignar os outros à sua altura. Era uma mulher inigualável. Nos caprichos, nos excessos, nas iras, nas premonições, nos exibicionismos, na sedução, na coragem, na esperança. Cantava, dançava, declamava, improvisava, discursava, polemizava como poucos entre nós alguma vez o fizeram”.
Há 25 anos, a 16 de Março de 1993, morreu, com 69 anos, uma figura maior da vida intelectual portuguesa, com obra vasta e diversificada, e uma personalidade excessiva, ora generosa ora colérica, em terra associada ao comedimento e à brandura no espírito, na pose e no gesto. Usar a expressão “saiu de cena” não é descabido – porque Natália era uma performer, alguém que representava o que deveras era. E que assim se apresentava no bilhete de indentidade, referindo-se ao arquipélago onde nascera e que em si permanecera:
“Sou da ilha das línguas de fogo. Com elas aprendi a metrificar o espírito. O indizível”.
Ângela Almeida, escritora e investigadora, doutorada em Literatura Portuguesa com uma tese sobre a simbólica da ilha e do Pentecostalismo em Natália Correia, caracteriza assim a relação que esta mantinha com as ilhas açorianas: “Conforme a própria autora escreveu em documento inédito, tinha uma relação ‘visceral’ com os Açores, muito especialmente com a ilha-mãe”. Lembre-se que a autora de “Mátria” e “A Ilha de Circe” viveu na ilha de São Miguel até aos 11 anos, indo depois viver para Lisboa na companhia da mãe e da irmã. Esses anos muito a terão marcado. Diz Ângela Almeida, que, além de ter feito a pesquisa na Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada dos inéditos, escreveu a introdução e as notas dos recém-reeditados livros Descobri que Era Europeia – Relato de Viagem aos EUA em 1950, e Entre a Raiz e a Utopia (Ponto de Fuga): “Como viveu na ilha natal um templo de pleno amor, paz e liberdade, tendo cedo conhecido o culto do Espírito Santo, visionava nas ilhas aquilo a que chamava ‘o último reduto da portugalidade’”.
Ana Paula Costa, autora da Fotobiografia de Natália Correia (Dom Quixote, 2006), abre as páginas da Poesia Completa e lê um sublinhado que fez quando preparava o trabalho:
“Basta cerrar os olhos e fixá-los na constelação das turmalinas mais rápidas do sangue para saber que a ilha é a mãe que se fecha na sua insânia de morta a percorrer impudicamente as nossas artérias.”
O excerto é retirado de A Mosca Iluminada, de 1972.
O abandono da ilha. A viagem aos Estados Unidos (1950). O casamento com Alfredo Machado (“o amor da sua vida”, para muitos). A amizade com António Sérgio, Almada Negreiros e Vitorino Nemésio. A criação do Botequim e todas as tertúlias que lá se fizeram. A amizade com Sá Carneiro que também incluía a admiração pela circunstância de ter assumido perante a sociedade a sua relação com Snu Abecassis.
Estes são alguns dos momentos da biografia da autora de A Madona destacados por Ana Paula Costa. Ângela Almeida acrescenta outros: todo o tempo vivido num ideal cooperativista, ao lado de figuras como António Sérgio e Urbano Tavares Rodrigues, lutando sem medo contra a ditadura, não obstante os livros apreendidos, e a condenação em tribunal pela publicação da Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica. A  esperança que viveu com a chegada da Revolução do 25 de Abril e o desencanto posterior, quer pelo domínio comunista que se seguiu, quer por nunca ter sentido que os ideais tivessem sido realmente alcançados. “Ainda a sua acção interventiva, desde tenra idade, a favor do integral cumprimento da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e da Paz, enquanto direito universal, que só poderia ser trazido pelo Amor”.
A sua afamada passagem pela Assembleia da República, na qualidade de deputada, e as intervenções que a tornaram conhecidas – como do poema do “Morgado” – não são, no entender de Ana Paula Costa, o que de mais importante se terá passado na sua vida. Lembra o que escreveu sobre o assunto:
“Não tenho qualquer espécie de carreira. Fui deputada porque me pediram para introduzir o discurso cultural no Parlamento, o que fiz nunca abdicando de me dedicar à minha obra literária que se desdobra em vários géneros”.
Mulher de paixões, valorizava muito a amizade. Um dos seus amigos fundamentais foi David Mourão-Ferreira, que dizia que ela era a irmã que nunca havia tido. David Ferreira, filho do autor de “As Lições do Fogo”, recorda essa irmandade. Conheceu-os como irmãos de temperamentos muito diferentes, irmãos pela camaradagem e pela convergência em matérias muito importantes: contra o Estado Novo e contra qualquer condicionamento estético e ideológico (“contra o pior neo-realismo, por isso”), contra o puritanismo e a moral burguesa, novos e abertos ao novo mas sem paciência para o modernaço, poetas, estudiosos e divulgadores da poesia de outros séculos, atraídos pela música e sem preconceitos contra o fado. E europeus convictos.
As reedições da Ponto de Fuga

David Mourão-Ferreira admirava-lhe a coragem e foi sua testemunha quando Natália encontrou problemas com a Justiça. “Depois da Revolução”, conta David Ferreira, “tiveram trajectórias parecidas: próximos do PS a certa altura, afastando-se depois (a Natália aproximando-se do Sá Carneiro, o meu pai do Eanes), reaproximando-se do Mário Soares no fim”. Foi a suspensão pelo Conselho de Redacção d’’A Capital’ de um artigo de Natália Correia que levou David Mourão-Ferreira a demitir-se, em 1975, do cargo de director do jornal.
David Ferreira, que após o trabalho na edição discográfica durante quase 40 anos se dedica hoje à realização de vários programas na Antena 1, lembra, a propósito, um serão histórico que juntou Vinicius de Moraes e Amália Rodrigues, nascido num jantar de Vinicius em casa de David Mourão-Ferreira, ao qual Amália não pôde comparecer por estar constipada, acabando por lhe pedir para se dirigirem à sua casa. “Eram muitos em casa do meu pai nessa noite. Uns tinham vindo ao jantar, outros vieram depois para estar com o Vinicius. E como nessa altura moravam perto acabou tudo em casa da Amália”.
Só faltou o material de gravação adequado para registar o encontro. Mas o seu tio Rui Valentim de Carvalho também apareceu e combinaram logo repetir o serão, agora preparados para gravar um disco. “A Natália, claro, era um dos amigos que desceram da Estrela para a Rua de São Bento”. Na sequência disso, veio a gravar vários discos, entre 1968 e 1974 (uns para a Valentim de Carvalho e outros para a Sassetti) de poesia sua e de poesia medieval (um deles com a própria Amália).
O juiz conselheiro jubilado do Supremo Tribunal de Justiça e ex-ministro da Justiça Álvaro Laborinho Lúcio, autor dos romances O Chamador e O Homem que Escrevia Azulejos (ambos editados pela Quetzal), define com estas palavras a sua relevância: “Da poesia, do teatro, do romance, mas também da política, da intervenção cívica, fez lugares para si, púlpitos para o discurso da transcendência que apontava como desígnio das gentes. Desprezando o banal, renegando o vulgar, a sua luta travava-se no palco das ontologias, ali, onde a verdade não conhece concessões”.
Laborinho Lúcio foi um dos frequentadores do Botequim, aonde afluíam, entre outros, políticos, intelectuais e artistas. Refere que “era má a notícia, dada à entrada pelo barman, de que ‘a senhora dona Natália hoje não vem’”. Sem Natália, o Botequim era apenas um bar. Aí, afirma, “ao contrário do julgamento de muitos, todos eram figurantes. Vedeta, era só ela”. Discutia-se política, políticas e políticos, acontecimentos mundanos, paixões reveladas, segredos espreitados, revelações literárias, temas que haveriam de ser assunto de todos, conspirava-se. “Natália tinha, porém, a palavra final retirada do desassombro com que pensava e dizia o que pensava”. A poesia chegava mais tarde e ficava reservada para os resistentes, para os que ficavam para a ouvir. E, recorda Álvaro, Natália cantava. “Era então que voltavam as Ilhas, e o canto popular açoriano enchia a voz sonora, de um timbre perfeito, envolvendo todos na emoção de uma interpretação culta e sentida”.
O ex-ministro da República para os Açores (2003-2006) salienta um ponto essencial na sua tempera: “Natália escolhia. Tomava partido. Distinguia e agia de acordo com as escolhas que fazia”. Não gostava de Juízes, diz. “Bramava contra o Plenário. Ficara-lhe a revolta desde os tempos da Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, do julgamento, da condenação. E não deixava que a memória se apagasse no registo do processo que lhe haviam movido pela edição de Novas Cartas Portuguesas”.
Até que um dia, depois de aturada resistência, que teve o Botequim como palco, aceitou participar num debate sobre ética e estética, no âmbito da formação de magistrados, a decorrer na respectiva escola, na vizinhança do bar. E tudo mudou. Segundo relatos de amigos, a partir daí passou a dividir os juízes em dois grupos, os “Plenários” e os “Outros”. “E destes, dos ‘Outros’, vários passaram a acorrer também ao Botequim onde, no entanto, nunca se sentiram dispensados de fazer prova de que o eram realmente”.
Depois de uma vida de múltiplas actividades, da escrita (do teatro à poesia, passando pelo romance e pelo ensaio) à edição, do jornalismo à política, e após muito pensar o país, a Europa e o mundo com fervor utópico e uma perspectiva apaixonada, progressista e exigente, ficou com um sentimento dividido em relação a Portugal. Ângela Almeida usa a seguinte formulação para o caracterizar: um sentimento “de encanto pelas raízes da nossa Portugalidade, onde se aloja a nossa interioridade” e aquilo que classifica como “um profundo e crescente desencanto pelo desaire neo-liberal europeu, a que naturalmente Portugal não escapou”. Era, diz, “verdadeiramente pessoana, apesar de tudo, aguardava a Hora”.
Que legado deixa a autora de Sonetos Românticos e de O Dilúvio e a Pomba? Para Ângela Almeida, o seu legado literário funde-se com o seu ideal ético. “Longe dos poetas das torres de marfim, escreveu que a literatura serve a vida e, por isso,  defendia a síntese agregadora de todas as antinomias e de todas as antíteses existenciais, que dariam lugar ao Absoluto heterodoxal, através da fusão dos  contrários, viabilizada pelo Amor incondicional, a que chamou Espírito”. Essa era, acrescenta, a morada da libertação da alma universal: longe de qualquer espécie de ortodoxia, o ser humano teria que divinizar-se pelo fogo (agregador) de Pentecostes. “Foi esse ideal de libertação humana, através dessa fusão dos contrários, que a fez estudar e amar o Trovadorismo (onde a mulher é dignificada), o Romantismo e o Surrealismo. A sua corrente literária era a sua voz pessoal”. A estudiosa realça um aspecto pouco conhecido: “Há uma profunda unidade temática entre a obra édita e a obra inédita de Natália Correia. Como se a inédita provasse o pensamento de Natália ou vice-versa”. A mesma realização do Amor Total, “muito importante para o mundo de hoje, onde as diferenças ainda não são respeitadas, antes alvo de balas de variada ordem. Veja-se o que aconteceu recentemente no Brasil, que é de gelarmos”.
Recententemente, Ana Paula Costa conheceu uma jovem professora de Português e História que não sabe quem é Natália Correia. E teme que não seja a única. É por isso que deseja que a autora que morreu há 25 anos seja descoberta pelas novíssimas gerações e mais conhecida e respeitada pelas entidades responsáveis pelo impulso de uma divulgação que, acha, ainda não começou. Considera A Madona” um romance admirável, muito pouco lido e estudado. E classifica a sua poesia, pautada por um ecletismo de forma e conteúdo, como um tesouro nacional. “O ensaio que escreveu reflecte momentos e circunstâncias do pensamento português no século XX e terá que ser, mais cedo ou mais tarde, objecto de estudo por parte dos académicos ou de jovens autores que tenham a preocupação de conhecer a herança que lhes coube”.
Ao falar do seu legado ético, nomeia a palavra “verdade”, mesmo que ultrapasse os contornos do razoável ou do politicamente correcto. “A verdade poética que, para ela e segundo ela, não é corrompível”. A professora e escritora pensa muitas vezes no que poderia dizer e escrever sobre algumas questões com que nos debatemos hoje.
A citação é recuperada por Álvaro Laborinho Lúcio. Disse Natália Correia, na linha do pensamento de Pascal, que a verdadeira moral se atinge apenas quando ela se ri da própria moral. Eis uma proclamação, remata, que bem pode ouvir-se ainda hoje, recordando-a, de pé, braço direito ao alto, voz no peito, projectada, junto ao balcão, ali, onde ela e o seu Botequim se confundiam, e agora se confundem para sempre, num só ser.
Nuno Costa Santos, "25 anos sem Natália Correia, a mulher da língua de fogo", 17-03-2018
https://observador.pt/especiais/25-anos-sem-natalia-correia-a-mulher-da-lingua-de-fogo/
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A Ponto de Fuga reedita "Descobri que era Europeia", a propósito dos 25 anos da morte da autora açoriana. Do livro fazem parte inéditos como este diário nos EUA em 1983 que o Observador revela.


“Descobri que era Europeia” é o conjunto de textos publicados originalmente em 1951 nos quais Natália Correia refletia sobre a sua primeira viagem aos Estados Unidos, sobre a descoberta de um mundo diferente e com as impressões de uma viagem marcante. É este livro que é reeditado agora, pela Ponto de Fuga, a propósito dos 25 anos da morte da autora, a 16 de Março de 1993. Nesta reedição estão incluídos inéditos, como este diário sobre um regresso à América, mais de 30 anos depois, em representação do então Presidente da República, o general Ramalho Eanes. O Observador faz a pré-publicação de um excerto desta reedição de “Descobri que era Europeia”, que chega às livrarias esta sexta feira, dia 16.

1. Voo Lisboa–Nova Iorque

3/6/1983

“E cá vou até à América do Norte, para representar o Presidente da República nas comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades.
Se ele soubesse quanto isto me custa!
Missa, parada, entrega de condecorações, e toda a banda de solenidades que são um susto para a alma de um poeta. Mas como poderia recusar a incumbência? Esse homem tem-me cumulado de manifestações de carinho e de apreço pela minha obra. Talvez um dia se perceba que a força de alma que tem permitido a Eanes conduzir sem grandes abalos o barco ébrio desta democracia é o seu respeito pela cultura, pela gente que a faz, sobretudo pelos poetas, que são os verdadeiros sacerdotes de uma cultura eminentemente poética.
Mas cá vou neste interminável voo suavizado pelo caviar, pela lagosta, pelo foie gras trouffé e pelo champanhe que a primeira classe proporciona. A par dos sorrisos das hospedeiras que são as gueixas deste vê se te avias que é o transporte aéreo. Sempre que o utilizo, previno-me com leitura sentimental. É o meu antídoto contra o desencanto de um viajar ofegante, apertadinho no bojo do dragão aéreo. Desta vez a receita é um livro sobre os amores de Venceslau de Morais. Imaginem que escolha! No fundo, bem acertada. Neste desamar gerado pela pressa, de que o avião é um produto tecnológico, sabe bem o refrigério de amores românticos, convulsões de alma, pieguices, maravilhas de um ridículo sublime que nos fez mais humanos.
Mas agora reparo que a bata que as hospedeiras puseram para servir a refeição está amarrotada, e os seus sapatos já não têm aquele chique que era a marca da mulher portuguesa, requintadíssima no calçar. Isso deve ter alguma coisa que ver com um Portugal que se amarrota por não ter gosto nenhum para acompanhar o tal progresso que tem como apoteose o foguetório da bomba atómica. Pois é esse Portugal que eu vou representar junto das comunidades portuguesas na América. Que dizer-lhes? Que o país é a bem-aventurança dos piores, o paraíso dos parasitas, o picadeiro dos garanhões das ganâncias partidárias? Impossível transmitir-lhes este desconsolo nacional. Mas que lhes direi? Que os amores do exilado Venceslau de Morais me inspirem, pois vou falar para exilados.
E não seremos nós todos portugueses exilados? Mesmo na Pátria. Sobretudo na Pátria, que por isso mesmo é a Pátria da Saudade.

2. Voo Nova Iorque – Califórnia

11/6/1983

— Thanks for having chosen the friendly skies.
«Obrigada por ter escolhido os céus amigos» — isto diz uma voz repugnantemente açucarada no avião.

Esta sociedade está pior do que nunca. Em relação há 30 anos, quando cá estive e me horrorizei o suficiente para escrever o Descobri que Era Europeia, tem a mais (ou a menos) o computador, que é o prolongamento da sua imbecilidade. Desde que cá cheguei, esse monstro só comete erros comigo. No Intercontinental, em Nova Iorque, tinha uma mensagem à minha espera. Isto me disseram, indicando-me que fosse até à secção do computador que tinha registado a mensagem. Quando lá cheguei, o monstro tinha-se avariado. Adeus, mensagem.
Ontem, no Plaza, em Boston, pedi na portaria para me acordarem às oito da manhã, porque tinha de seguir para a Califórnia. Nada de enganos, portanto. A rececionista informou-me de que essa função de acordar era com o computador. Mas que estivesse descansada. Seria acordada às oito em ponto. Pois bem.
Às cinco e trinta da manhã, uma vozinha sadicamente alegre desperta-me pelo telefone, cantando a saudável alegria do despertar!
E cá vou, de voo para a Califórnia, nesta América onde um criptonazismo põe God bless América onde o boche berrava Deutchland über alles. Esta gente está realmente convencida de que, para além deles, nada mais há no mundo. Chama-se a isto imperialismo por ignorância.

3. Voo Califórnia – Nova Iorque

13/6/1983

E cá vou, liberta, enfim, da missão cumprida. Fui recebida em todas as comunidades, particularmente Newark, Boston e Califórnia, como a «pessoa que melhor representou o Presidente da República até hoje». Eanes não esperava outra coisa quando me escolheu para lhe servir de embaixadora neste universo de portugueses, onde a palavra quente de um poeta faz mais lume do que o discurso sisudo com as linhas do calculismo de um político.
Mas confirmou-se a minha opinião de que (isto no meu instante contacto com os cônsules que aqui me mimosearam com a vénia dirigida ao Presidente da República) a diplomacia é o caminho mais curto para a homossexualidade. Algumas exceções, claro, mas quase todos eles, ainda que casadinhos, papais, machões, em suma, desse terrorismo moral que é a família, não conseguem libertar-se dos gestos amaricados adquiridos na escola das Necessidades. Portanto, uma pose. Nada de prática, presumo.
São Francisco é uma cidade redonda, feminina, por entre a simetria e linearidade esquizofrénica das grandes cidades norte-americanas, excetuando Washington. Cidade com «seios» como a Lisboa das colinas, é natural que seja a capital dos gays.
Aqui no avião, um penoso esforço em primeira classe, para a técnica fazer vénia do banquete em caviar, patés, queijos da mais escolhida table de fromages francesa, etc., mas tudo tão estreitinho. Como é exíguo este mundo da amplitude transnacional conquistada pela navegação aérea. Num pulo, está-se noutro continente, mas o meio para lá chegar é uma claustrofobia, um enlatado humano.
Os portugueses da Califórnia são os mais enraizados nos Estados Unidos da América. Contudo, fazem um esforço de memória para defenderem as origens que os diferenciam neste império da igualização.
América! Num lado, arrumada na jardinagem, no golfe e no jogging, o que é bom para a saúde, para a candidatura a Matusalém. Embora o jogging, horrenda velocidade com a língua de fora e calções acuecados a que esta gente se dedica depois de sair do emprego, os faça cair cardiacamente como tordos. Mas lá vão, convencidos de que correm para a longevidade bíblica. No outro lado, destempera-se a América em taradinhos sexuais e ridículas fantasias que satisfazem a sua impenitente possidoneira.
Agora reparo. No meu lado vai uma bêbeda. Desde que entrou neste avião, ele foi o champanhe, os cocktails, os vinhos, os conhaques, um sei lá o quê. Tipo completo de frustrada do cinema americano. Sou talvez cruel com este país. Deve haver uma razão que não consigo trazer à consciência, mas irrita-me a arrogância do seu infantilismo.

4. Voo Nova Iorque – Lisboa

14/6/1983

Este voo é mesmo voo. Com asas, libertação de incumbências solenes que me ataram a têmpera.
Por exemplo: as condecorações que tive de entregar em nome do Presidente da República, com discurso custosamente apropriado, em São Francisco, na cerimónia que encerrou as comemorações do 10 de Junho.
E cá vou de regresso ao lar, que, para mim, é os meus livros, a minha muita papelada — notas aqui, projetos ali, desabafos, poemas larvares, contos que nunca farei, pétalas filosóficas de uma rosa mística que estou sempre a unir num amanhã adiado.
Mas o meu lar é também o meu velhinho querido, única paixão da minha vida, que me atura há dezenas de anos com um respeito paternal, rabugento, pela minha loucura.
Antes de partir, peguei ao acaso em alguns livros para ler de viagem. Um deles, li-o há muito tempo. E como estou na fase de ler com olhos maduros o que traguei com olho verde de rapariga, eis-me relendo, neste voo de doce retomo, essa entre magistral e maçadora redundância camiliana que é o Andam Faunos pelos Bosques, do Aquilino. (Esta prosa vai mal-arranjada, muitos cortes e emendas, porque as interrupções da hospitalidade aérea da primeira classe são muitas: o cocktail, o appetizer, o cravo, como florido desejo de boa viagem da TWA, etc…) Mas os Faunos repõem-me na atmosfera camiliana de boa fêmea para cama de padre. E foi isso que vim encontrar nas comunidades portuguesas da Nova Inglaterra, onde a bênção do pároco, indispensável em todas as sociedades, por mais laicas que sejam, tem a contrapartida saudavelmente erótica do cura com amásia.
Em mais de um núcleo (não os nomeio para não os comprometer perante a hierarquia) encontrei a imagem do velho abade dado às comidas e à fêmea. Num deles, num sarau cultural ingenuamente inserido nas comemorações do Dia de Portugal, tocava piano sob a batuta do dedo da barregã, aliás vivíssima, lá das Beiras, que era também a autora de deliciosas comédias, tais como o Retratista. Nesta farsa, arrancada ao inconsciente coletivo, no qual o ato de tirar o retrato é figuração mágica de roubar a imagem, a tal amásia do cura já pouco chegava, no desfecho aloucado da ação, ao nonsense do Ionesco e quejandos.
Também noutra comunidade tive de dar a direita a um reverendo que, no beber, no comer e no arregalar do olho (acompanhado por confessa fala de entusiasmo sexual) para a fornada de carnes, era uma maravilha de portuguesa idoneidade clerical. Sou decisivamente a favor deste padre minhoto e transmontano que Camilo tão bem pintou no seu opíparo romancear de coisas efetivamente lusas que não dispensam o recorte erótico-pagão do sacerdote comilão e femeeiro.
Lembro, a propósito, que, quando estava, há anos, em Viana do Castelo, por ocasião da cantata (com libreto meu) D. Garcia, incluída no X Festival de Vilar de Mouros, o padre Dulcino, que dirigia o coro — beleza de homem, cuja castidade (?!) era um mistério e um flagelo para as serrãs que o perseguiam —, pôs-me em contacto com uma série de abades que eram um primor no canjirão de vinho e na anedota picante.
De um deles, numa seroada em que fomos cear depois do ensaio, ouvi eu esta história, ao que ele disse verdadeiríssima e recente, passada ali para os lados de Caminha: tendo o pároco passado a pente fino todas as belezas da terra, solteiras e casadas, a diocese, instada por queixas dos maridos vitimados pela sanha viripotente do abade, deu-lhe guia de marcha para outra paróquia. O malandreco do cura mandou tanger os sinos para reunir o povo no adro e bota esta discursata, endereçada aos zeladores das pudendas partes das esposas:
«Eu cá me bou. Mas muitos cornos vos deixo.»
Isto passou-se nos anos 60, e é bem o espelho camiliano deste sacerdócio de pénis arrebitado que é a única energia que mantém os portugueses de pé. E também a mesa, não esqueçamos. Isto escrevo saboreando umas colheradas de caviar, que é petisco pelo qual quase me disponho a vender a alma ao diabo. Isto disse um dia ao Octávio Pato, que não era propriamente o demo, antes homem simpático, riso pronto de comunista aberto, à coca de eventuais simpatias ou menores antipatias pelo PCP. Estávamos na deprimente cantina self-service da Assembleia da República, onde a bicha para o chá ou o café com leite do intervalo dos trabalhos é bem a penalização merecida por indivíduos que se prestam a essa carneirada. Sempre que eu ali descia (descer é o termo), vinham-me nostalgias dos meus requintes gastronómicos. E para me aliviar da lixeira daquele péssimo chá (que fazer?, não dispenso esta bebida da Gorreana da minha infância micaelense), self-servido em condições tão humilhantes para o aprumo com que se deve beber o que nos sabe bem, desatava a chamar em altos e refinados apetites pelo meu caviar. De uma dessas vezes, o Octávio Pato, com ironia proselitista, atiçou-me:
— Isso é o menos. Venha para o PC, que tem todo o caviar que lhe apetecer.
— Todo?
— Bom… — hesitou ele.
— Então, nada a fazer — reclamei. — É que eu só seria comunista enquanto comesse caviar. Uma vez papado o acepipe, adeus comunismo. Não vale a pena mandar-me o caviar. Como vê, seria um péssimo negócio.
Rimo-nos, e por aí ficou a minha cómica adesão gastronómica ao marxo-leninismo.
Era esta a democracia nos bastidores da Assembleia da República. Uma civilidade que, infelizmente, não transparecia nos debates maniqueus do hemiciclo.
Quanto à democracia na América do Norte, é a do aperto de mão. Que tédio! Os mayors não perdem uma oportunidade, festarola, comemoração, seja o que for, para marcarem presença, com a mão estendida para todas as bandas, na prostituição da conquista do voto.
Todos muito amigos dos portugueses, os muitos mayors que vi e conheci nas diversas comunidades, por ocasião das festividades do 10 de Junho! É o és! O que eles andavam era na caça do voto, de manápula aberta e espetada para o aperto de mão que atrai votantes. Que diferença entre esta democracia do Tome lá o bacalhau e o nosso desprezo europortuguês por essa forma meretrícia de pescar eleitorado. É claro que este nosso ceticismo é o mesmo adversário da democracia que não passa sem esses ingredientes hipócritas de dar a cada um, no aperto de mão, a importância que ele não tem.
Mas que fazer?! As velhas árvores genealógicas são frágeis. Não suportam o peso grosseiro desses frutos dos povos sem história. É esta a nossa fraqueza. Somos um povo de pulhas antiquíssimos. Preferimos o punhal cinzelado pela elegância de atitudes, mesmo desdenhosas desse bem comum que é a democracia, à vulgaridade do aperto de mão que caça o voto.”






"Pré-publicação. Quando Natália Correia representou Ramalho Eanes na América", Observador, 15-03-2018


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