quinta-feira, 9 de agosto de 2012

A CONCHA (Vitorino Nemésio)


 A concha de uma lapa (recordação dos Açores)
                                                                           
      
A CONCHA        ¯
      
A minha casa é concha. Como os bichos
Segreguei-a de mim com paciência:
Fachada de marés, a sonho e lixos,
O horto e os muros só areia e ausência.      
          
Minha casa sou eu e os meus caprichos.
O orgulho carregado de inocência
Se às vezes dá uma varanda, vence-a
O sal que os santos esboroou nos nichos.      
             
E telhados de vidro, e escadarias
Frágeis, cobertas de hera, oh bronze falso!
Lareira aberta ao vento, as salas frias.         
                
A minha casa... Mas é outra a história:
Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,
Sentado numa pedra de memória.      
                 
Vitorino Nemésio, O Bicho Harmonioso (1938)
         
                                        
         




ORIENTAÇÕES DE LEITURA
      
 A Ilha, como todos sabem, independentemente da sua existência real ‑ ou subjacente, no caso de um ilhéu, a essa existência real que permanece, indelével, na sua memória ‑, constitui também, na memória da espécie, ou no inconsciente colectivo, um símbolo muitíssimo complexo. Para um psicólogo e filósofo como Jung ‑ que foi, neste domínio, o principal desbravador ‑, ela representará, antes de mais, "o refúgio contra o assalto ameaçador do mar do inconsciente, isto e: a síntese de consciência e vontade". Por sua vez, um mitógrafo e historiador das religiões como Mircea Eliade verá nela, também, "uma das imagens exemplares da criação", depois de ter observado que "as águas simbolizam a soma universal das virtualidades; elas são tons et origo, o reservatório de todas as possibilidades da existência; elas precedem toda a forma e suportam toda a Criação"; e é nesta altura que Eliade acrescenta: "Uma das imagens exemplares da Criação é a Ilha que subitamente se "manifesta" no meio das vagas. Em contrapartida, a imersão na água simboliza a regressão ao pré-formal, a reintegração no modo indiferenciado da pré-existência. A emersão repete o gesto cosmogónico da manifestação formal; e a imersão equivale a uma dissolução das formas". Será bastante conveniente não perdermos de vista estas considerações para bem compreendermos uma obra como a de Vitorino Nemésio.
      
David Mourão-Ferreira, O Essencial sobre Vitorino Nemésio, pp. 45-47
      
      
 Observe, neste poema, como a interioridade, que é logo anunciada com o verso «A minha casa é concha», se representa através de uma dimensão externa.
1. Atente na coexistência do dentro e do fora;
‑ o espaço interno, fechado («casa-concha») pode desencadear a presença de abertos: «se às vezes dá uma varanda»; «lareira aberta ao vento»; «sou eu ao vento e à chuva».
2. Atente na metamorfose final da «concha» (1º verso) em pedra (último verso):
 habitada, primeiro, por um animal («Como os bichos Segreguei-a de mim com paciência»), a «concha» torna-se, no fim, uma pedra habitada pela memória. Assim como o animal é a vida interior da concha, assim a memória é a vida interior deste eu».
      
Maria Madalena Gonçalves, Poesias de Vitorino Nemésio (Apresentação crítica, selecção e sugestões)
      
Em síntese, o poema “A concha" é atravessado por duas linhas: a da interioridade e a da exterioridade, esta provocada por aquela. Um pequeno esquema pode ajudar a compreender o poema:
      
  
J. Guerra e J. Vieira, Aula Viva. Português B. 12º Ano, Porto Editora, 1999
      
          
           
   O grau de desterritorialização atingido pelo autor leva-o a escolher, como símbolo do estar no mundo, a concha. Mas essa concha é a do animal marinho, não a concha dum qualquer bicho terrestre. A presença de «marés», «areia», «sal», nos versos 3, 4 e 8 respetivamente, elucidam-nos quanto ao habitat da concha e do seu problemático conteúdo. Sim, que conteúdo alberga a concha? O poeta, obviamente; mas esse poeta escreve a rematar o primeiro quarteto a palavra «ausência».

Por um processo metonímico tão ao gosto de Vitorino Nemésio (aqui estabelecido na relação continente/conteúdo), a exterioridade da casa/concha confunde-se com o ser nela alojado: «Minha casa sou eu». Mas não só o ser alojado se denuncia em vacuidade, como essa vacuidade se define por traços caracterizadores 1: «orgulho» e «inocência», que é como quem diz: a bipolaridade da inconsistência do bicho humano.

O ato criador que preside ao soneto é todo ele processo de desprendimento em relação ao cárcere material. Graças a essa liberdade verbal a casa/concha, que alberga um ser paradoxal- ausência, vacuidade, tensão entre pecado e inocência - produz a imaginária «varanda», essa possibilidade de o poeta passear o olhar sobre o mundo circundante. Mas logo o sal (o mar, agora a sinédoque) destrói esse mundo circundante, ao fim e ao cabo simples miragem, porque de sons se constrói, porque é o enunciá-loque lhe confere «realidade» ‑ supra-realidade, melhor dizendo.

Esse sal ‑ memória do mar ‑ é o responsável pela deterioração da terra, ou seja, da fixação do autor. Nem dentro duma concha (e Nemésio, nas suas Notas Autobiográficas, fala abertamente do trauma do nascimento a propósito do lençol que o envolvia, menino) ele «é», uma vez que as conchas vazias são ambulantes, conchas que erram ao sabor das «marés», conchas, como as de búzio (e o pai de Nemésio, tocando búzio, «atroava» a vizinhança - cf. Notas Autobiográficas, 1971), onde o som se faz sonho (é pô-lo ao ouvido), conchas pisadas na areia, detritos: «sonhos e lixos» (verso 3). Até os «santos» sofrem a arremetida do «sal» e pouco a pouco se desfiguram as estátuas dos «nichos» (nicho - outra forma de concha).

Com a arte - tantas vezes praticada ao longo da obra poética ‑ de introduzir no texto a frase-feita, o coloquialismo, a expressão aparentemente corriqueira, Nemésio atribui à sua casa «telhados de vidro». Claro que, dada a vulgaridade da expressão, o artifício retórico deixou, em contextos usuais, de ser polissémico: «telhados de vidro» são defeitos, culpas, pesos de consciência. Mas, em caseis tais, a enunciação de Nemésio - circular, como já dissemos ‑ opera a devolução da figura de retórica à sua significação literal, apagando-lhe a singeleza do lugar-comum para obter o efeito condensador do semema-soma. (Esta nomenclatura é a de KIaus Reger em «L'analyse sémantique du signe linguistique», Langue Française, nº 4. Entende-se por semema-soma a ocorrência de dois sememas indestrinçáveis pelo facto de o contexto verbal permitir duas ou mais leituras da mesma unidade sémica. O trocadilho é o processo mais generalizado da ocorrência do semema-soma.)

Pode ser que, na casa imaginária, os telhados correspondam, com a transparência do vidro, a uma outra transparência obsessiva: a da água do mar. Tal correspondência não pode todavia confundir-se com uma identificação, nem sequer com uma substituição funcional. O mar, que funciona por vezes, na poesia nemesiana, como anulação da permanência neste vale de lágrimas, representa a envolvência a que responderia o vidro no plano mais alto, o da ascensão até Deus. Contudo - e voltaremos ao assunto-, o almejado diálogo de Nemésio com o Ente Supremo carece de transparência. O Pão e a Culpa é mais vidro fosco do que claridade. O que se torna altamente significativo é o facto de, já em O Bicho Harmonioso, o poeta amalgamar no sintagma «telhados de vidro» a significação literal com o efeito retórico: aspirar à transparência e incluir nessa aspiração o peso das culpas... e do que jaz escondido no espírito, «realidade» que, como é sabido, não é transparente, antes «selva oscura».

Esta tensão de contrários ‑ transparência do vidro / opacidade do inconsciente ‑ prolonga-se em «escadarias frágeis» (quando se associa a «escadarias», normalmente, a amplidão e a solidez), em «hera» (casa desabitada) e «bronze» {a duração: «mais duradouro que o bronze», desejava Horácio), até que o adjetivo «falso», enunciando o carácter ilusório da enunciação (que é, neste caso, o ato linguístico criador do soneto), vem transportar ao plano do explícito a desolação efetiva que reside na concha vazia: «Lareira aberta ao vento, as salas frias.»

O discurso é interrompido no primeiro verso do último terceto: «A minha casa ... » Reticências. Dir-se-ia que o autor repele a enunciação: «Mas é outra história». Não há, afinal, casa nem concha. Apenas abandono, apenas despojamento. Nada. Um «eu» tão inconsistente como o sonho, «Sentado numa pedra de memória», pois até o  elemento palpável, duro - a pedra, essa onde descansam os vagabundos - é apenas uma lembrança... ou um vocábulo trazido duma ilha que, tendo sido de basalto, se imaterializou em perdição.
     
José Martins Garcia, Vitorino Nemésio, a obra e o homemLisboa, Editora Arcádia, 1978, pp. 156-159)
      
      


ANÁLISE DO TEXTO
      
1. "A minha casa é concha."
Interpreta a metáfora, notando como nela se conjugam
- a representação do mundo interior;
- a íntima ligação ao mar.
      
2. O sujeito poético é o ocupante da concha.
2.1. A exterioridade da casa/concha confunde-se com o ser nela abrigado. Que figura de estilo realiza essa confusão?
2.2. Caracteriza o ser aí alojado.
2.3. Trata-se de um ser humano bipolar. Transcreve as palavras que significam essa bipolaridade.
      
3. A poesia é a criação de sentidos. A casa/concha produz "às vezes, uma varanda".
3.1. Que possibilidades potencia ao sujeito poético essa varanda?
3.2. Como é destruída essa varanda?
3.3. O sal é um signo polivalente. Refere essa polivalência.
3.4. O efeito do sal atinge até os santos. Onde quererá chegar o sujeito poético?
3.5. Os nichos podem comparar-se a uma casa/concha. Explica essa comparação.
      
4. Qual o efeito do sal sobre o sujeito poético?
      
5. A casa-concha parece ser protectora, mas nem sempre cumpre essa função. Porquê? Indica as expressões que revelam ser frágil ou nula a protecção da casa.
      
6. A casa tem" telhados de vidro".
6.1. O que se entende vulgarmente por ter "telhados de vidro"?
6.2. Por se tratar de um poema, a expressão tem outro sentido. Que figura de estilo está aqui realizada?
6.3. Sendo os "telhados de vidro" sinédoque de casa/concha e esta o próprio "eu", o que é que o sujeito poético gostaria de tornar transparente?
      
7. As "escadarias" são “frágeis", "cobertas de heras", isto é, muito antigas, tudo é "bronze falso".
7.1. Qual o significado da fragilidade e da falsidade?
7.2. Os sentidos levantados no número anterior são confirmados pelo verso 11. Justifica a resposta.
      
8. Na última estrofe, o sujeito poético afirma que a sua casa, o seu interior, é constituído por tudo o que ele viveu ”ao vento e à chuva" e está gravado na sua memória.
8.1. Qual a conclusão traduzida no verso 13?
8.2. Qual o sentido do último verso?
      
9. A partir do seguinte esquema interpretativo, explicite em que medida a memória é, simultaneamente, fonte de construção e de desconstrução do poema:


Ser em Português 12, coord. A. Veríssimo, Porto, Areal Editores, 1999.
                
      
10. Explica esta sequência: casa →concha →nicho →pedra.
      
      
CHAVE DE RESPOSTAS
      
1. Através da metáfora, o sujeito poético identifica-se com um bicho marinho que segrega a sua concha, ficando no interior. A casa é, pois, o lugar habitado por dentro, símbolo do mundo interior e também símbolo da ligação ao mar. Ao falar da casa, o sujeito poético fala de si mesmo com a protecção que foi construindo.
      
Em síntese, a relação que se pode estabelecer entre a casa e a concha é a seguinte: aconcha = habitação de um animal; a casa = habitação do ser humano; a concha = espaço fechado; a casa = espaço fechado; a forma circular da concha evoca a infância, a circularidade do ovo = útero.
A concha é marinha está, por isso, relacionada com água. Assim, a concha poderá ter simbolismo da fecundidade, da vida, do ser feminino; a prosperidade; a morte, porque a prosperidade provém da morte do ocupante primitivo.
      
2.1. A metonímia.
2.2. Um ser vazio, desprotegido.
2.3. Orgulho e inocência.
      
3.1. Apoderar-se do mundo exterior, circundante.
3.2. Pelo sal.
3.3. Purificação e corrosão, vida e morte.
3.4. Ninguém escapa à acção destruidora do sal = tempo.
3.5. Albergam os santos e a forma é semelhante.
      
4. Impede-o de fixar o mundo circundante.
      
5. A casa parece ser protectora, mas revela-se frágil, porque é corroída pelo sal e pelas heras, símbolos da passagem e efeito do tempo, tem "telhados de vidro" que podem quebrar, escadarias que podem desabar, a lareira exposta ao vento que a pode apagar.
Portanto, a concha é inútil porque não o protege, nem dentro da concha ele "é"; as conchas vazias andam ao sabor das marés, são sonho e lixo.
      
6.1. Ter defeitos.
6.2. Metáfora.
6.3. O seu mundo interior, o inconsciente que é opaco.
      
7.1. A desolação da concha vazia, o carácter ilusório da enunciação.
7.2. A lareira não aquece; as salas são frias = ausência de protecção; vazio.
      
8.1. Não há casa nem concha, apenas vazio e abandono; o eu desprotegido do seu elemento primordial: a ilha.
8.2. Todo o exterior é apenas constituído por elementos "de memória", que lhe lembram a sua infância, o seu paraíso perdido.
      
9. «A minha casa… / Sou eu […] / Sentado numa pedra da memória».
 a memória é a vida interior do eu poético, tal como o bicho é a vida interior da concha;
• o «sal» que destrói a varanda-abertura é o resíduo do mar, a memória do mar;
 a casa-concha é a ilha da memória (da saudade) do poeta, a sua ilha;
 a memória é sonho, é ausência, é frio, é pedra.
 …
      
10. A casa/concha assemelha-se pela forma e simbolismo e é destruída pelo sal do mar; a casa/pedra = metáfora da memória, que não cessa de evocar o passado.
      


Bibliografia didatizada:
Aula Viva. Português B 12º Ano, João Guerra e José Vieira, Porto Editora, 1999.
Plural 10, E. Costa, V. Baptista, A. Gomes, Lisboa Editora, 2010.
Plural 12, E. Costa, V. Baptista, A. Gomes, Lisboa Editora, 1999.
Ser em Português 12, coord. A. Veríssimo, Porto, Areal Editores, 1999.
      
         Vitorino Nemésio



Deolinda Soares, MUA_2016



[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/08/09/concha.aspx]

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

VERSOS A UMA CABRINHA QUE EU TIVE (Vitorino Nemésio)


Picasso
Picasso
 
        
        

(VERSOS A UMA CABRINHA QUE EU TIVE)
     
Com seu focinho húmido
Esta cabrinha colhe
Qualquer sinal de noite
De que a erva se molhe.
     
Daquela flor pendente
Pra que seu passo apela
Parece que a semente
É o badalinho dela.
    
Sua pelerina escura
Vela-a da noite sentida;
Tem cada pêlo uma gota,
Com passos, poeira, vida.
    
De silêncio, silvas, fome,
Compõe nos úberos cheios
Toda a razão do seu nome
E fruto de seus passeios.
    
Assim já marcha grave
Como os navios entrando,
Pesada dos pensamentos
Da sua vida suave.
    
E enfim, no puro penedo
De seus casquinhos tocado,
Está como O ovo e a ave:
Grande segredo
Equilibrado.
    
Vitorino Nemésio, Eu Comovido a Oeste, 1940
     




ORIENTAÇÃO DE LEITURA
    
Faça a análise interpretativa do poema, considerando os seguintes aspetos:

• a memória da infância de raiz rural;

• a presentificação do passado;

• o elemento evocado: o animal que estabelece a cadeia com o vegetal e o mineral;

• o equilíbrio e a totalidade do ovo;

• a promessa do voo da ave;

• os diminutivos que sugerem a linguagem infantil;

• as metáforas, as comparações, as aliterações;

• a estrutura poética quase regular.
        
(Plural 12, E. Costa, V. Baptista, A. Gomes, Lisboa Editora, 1999)
         


         


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/08/08/NEMESIO.cabrinha.aspx]

terça-feira, 31 de julho de 2012

O ESPÍRITO (Natália Correia)


Pomba de Espírito Santo (foto de Sara Luís)
            
       


O ESPÍRITO
       
Nada a fazer, amor, eu sou do bando
Impermanente das aves friorentas;
E nos galhos dos anos desbotando
Já as folhas me ofuscam macilentas;
       
E vou com as andorinhas. Até quando?
À vida breve não perguntes: cruentas
Rugas me humilham. Não mais em estilo brando
Ave estroina serei em mãos sedentas.
       
Pensa-me eterna que o eterno gera
Quem na amada o conjura. Além, mais alto,
Em ileso beiral, aí espera:
       
Andorinha indemne ao sobressalto
Do tempo, núncia de perene primavera.
Confia. Eu sou romântica. Não falto.
       
Natália Correia, Sonetos Românticos, 1990
       
                 

Vocabulário:
Indemne: que não sofreu perda ou dano; incólume.
Núncio: anunciador.
       

     
   
TÓPICOS DE ANÁLISE    
    
                
• a simbologia da ave e da andorinha em particular;

• a inevitabilidade da partida (vv. 1-2);

• a metáfora de Outono (vv. 3-4);

• brevidade da vida versus eternidade;

• o amor "mais alto", "ileso ";

• significado do último verso ("Impermanente" como as andorinhas ando ao sabor do tempo: vou, mas volto sempre anunciando a Primavera).
       
(Entre Margens | Português 10.º Ano, Olga Magalhães e Fernanda Costa, Porto, Porto Editora, 2010, p. 129)
                 


               
           
TEXTOS DE APOIO
          
Estamos, portanto, perante uma poeta que se confronta com a proximidade da morte. Novidade nenhuma a morte na poesia de Natália. No livro anterior, publicado cinco anos antes, a morte era quase assunto omnipresente. Mas aqui não se trata da morte, mas sim da nitidez com que agora esta é vista. É, pois, alguém que sente o fim a chegar. O fim de tudo. Até da Obra Poética, a sua culminação.
[…]
A proximidade de um fim, efectivamente, pode induzir o poeta a querer esclarecer em definitivo a sua poesia, ou pelo menos, assim parece acontecer aqui.
É interessante aqui um parêntesis para um paralelismo: Luiza Neto Jorge, outro dos nomes desta “onda”, manteve características surrealistas no grosso da sua obra entre 1960 e 1973. “A Lume”, livro póstumo publicado em 1989, no entanto, surgia com uma outra clareza de discurso, uma linguagem mais depurada e mais simplificada onde também se notava a consciência do declínio do corpo e da vida a esmorecer aos poucos.
O declínio do corpo faz-se sentir raramente aqui, mas, mais à frente, no soneto “O Espírito”, sente-se, porque “cruentas/ Rugas me humilham. Não mais em estilo brando.”
      
      


      
Escritos sob os desígnios de Eros, os três sonetos - "o corpo", "a alma" e "o Espírito" - aqui insertos, irrompem de uma paixão corpórea arrebatadora e violenta, cujo ritmo, no primeiro, através de um sugestivo tom anafórico, insinua o da cópula norteada, esta, por "uma estrela insaciável" (p. 37).
Todavia este excesso, ou não sejam estes sonetos românticos, convoca a infelicidade gerada nas incongruências amorosas naquele jogo de ocultação / desvendamento que, erotizando os sentidos - "Esquivo-me: o teu sonho mais instigo. / Fujo-te: a tua chama mais provoco" -, induzem a tristeza anímica - "E de ser tão amada eu fico triste" (p. 38). Na senda de G. Bataille, a poeta sabe e sente que a posse total só é possível pelo aniquilamento no outro e, sem pudor, o revela: "Num beijo infindo queres morrer comigo." (p. 38) Assumindo o seu romantismo - "Eu sou romântica" (p. 39) - sente a erosão causada pela passagem do tempo, mas é no Espírito que confia para um eterno retomo - "Pensa-me eterna que o eterno gera / Quem na amada o conjura." (p. 39). Sendo os únicos sonetos que, ao longo da obra, possuem título, apenas a palavra Espírito aparece maiusculada dando consistência à demanda espiritual que enforma Sonetos Românticos, metamorfoseada numa demanda também física, já que o número três se converte, segundo Freud, num símbolo sexual. O erotismo não é tão só o mero impulso vital para se inscrever numa união íntima e espiritual "núncia de perene primavera" (p. 39).
   
Entre Eros e Thanatos (em torno de Sonetos Românticos de Natália Correia)”, Isabel Vaz Ponce de Leão in Natália Correia 10 anos depois, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2003, p. 64 
    
    
*
           
   
A última das vozes natalianas — a d’ "O dilúvio e a pomba" (1979), d’ "O armistício" (1985) e de "Sonetos românticos" (1990) — traduz um acontecimento decisivo da vida da poetisa: a gratífica consciencialização do excepcional dom ou favor que merecera do Espírito, entidade agora dominante, devotadamente elevada a princípio dos princípios. À medida que o tempo foge e o Eterno a intima, Natália quer ser mais do que musa ou vate eméritos; quer encontrar uma via que aprofunde e sobreleve o Mistério e a Tradição antes cantados; quer, por assim dizer, tornar-se "sófica", votar-se por inteiro à sabedoria, que outra coisa não há que melhor distinga a sua condição de eleita. Aqui chegados, é evidente que já se não está a falar de uma qualquer poesia espiritual; está-se perante uma poesia de carácter eminentemente gnóstico e salvacionista, sujeita a graus de iniciação, consciente das provas prestadas e das provas ainda a prestar — sobretudo consciente do objectivo maior a atingir: fazer cair "o véu do mistério final" (I, p. 387), habitar enfim "o céu futuro que houve dantes" (I, p. 392). Em definitivo convicta de que o poeta e o sacerdote são um só, como nas origens o haviam sido, Natália pugna pela harmonia universal das coisas e dos seres, pela confluência de mitos regressivos e projectivos, pela diluição das galvanizantes vivências do porvir nas longínquas experiências do passado (Unido o fim ao começo / Espírito encontra a morada", II, p. 170). Será, de resto, na Ilha, na volta à "Ilha do Arcanjo", com tudo o que ela simboliza (perdido mundo da infância, deusa-mãe primitiva, memória de arcanos, sacro lugar de refúgio, "centro inviolável" da actividade espiritual, etc.), que a poetisa verdadeiramente se inteira da colombina "citação" e do seu real significado: o reencontro com o Espírito Santo, com as velhas lições guardadas em lendas e rimances, com a certeza de que o amor da sabedoria conduz naturalmente à sabedoria do amor. Assim se compreende o seu final joaquimismo, a esperança no breve advento de uma terceira idade, a sua muito propalada conversão ao Páraclito ou à gnose pentecostal. Uma conversão, todavia, muito particular, já que ela tem como base "a festa da descrucificação", a denúncia intransigente do monoteísmo, a pagã reabilitação de todos os deuses — daí o maior comedimento, nesta fase, da imaginação criadora e o óbvio enfeudamento de numerosos poemas (com relevo para os de "Armistício") a formas e temas clássicos.
[…]
Quem quiser compreender a poesia de Natália não poderá nunca prescindir do seguinte: de que se trata de uma obra gerada, do princípio ao fim, sob o signo do amor ao Todo (chame-se ele Natureza, Universo, Ser, Deus, Vida, Alma ou Espírito...). É por isso que acertadamente ela se define como romântica: em primeiro lugar, porque liberta da apertada malha dos universais literários; em segundo lugar, porque jubilosa de cooperar na grande obra da criação; em terceiro lugar, por saber que a cada momento nela se renova a tradição literária, vale dizer, que a cada momento nela se refaz a odisseia de um espírito determinado pela íntima necessidade de perdurar ("Em mim se resolve / o alto sentido / do fruto na árvore / incontido", I, p. 95).
     
O sol na noite e o luar nos dias, de Natália Correia: romance, a três vozes, de uma ocidental”,
Fernando Vieira-Pimentel, Ponta Delgada, Outubro-Novembro de 1997.
                     
     

        
Poderá também gostar de:
            
 Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Natália Correia, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo. Disponível em: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/Natalia_Correia, 2021 (3.ª edição).

       
            
         

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/07/31/NataliaCorreiaOESPIRITO.aspx]