quinta-feira, 20 de setembro de 2012

NO TEMPO DA FROR (Vitorino Nemésio)

           
              
Proençaes soen mui ben trobar
e dizen eles que é con amor;
mais os que troban no tempo da frol
e non en outro, sei eu ben que non
an tan gran coita no seu coraçon
qual m'eu por mha senhor vejo levar.
       
Versos de uma cantiga de amor e simultaneamente sátira literária composta pelo Rei Dom Dinis
       
                
Ai flores, ai flores do verde pino,
se sabedes novas do meu amigo!
           Ai Deus, e u é?
       
Ai flores, ai flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado!
           Ai Deus, e u é?
       
Versos de uma cantiga de amigo composta pelo Rei Dom Dinis
                                      

            
       
 
       
       
       
     
       
       
«NO TEMPO DA FROR»
      
O baile, enfim, ali armado a rigor, e os senhores da cidade sem virem! Ouviu-se rodar um trem. Manuel Bana furou por entre os convidados, como se estivesse numa venda e fosse apartar uma briga. Mas entrou meio murcho, seguido de Damião Serpa e do tenente Espínola à paisana. João Garcia mostrara muita pena, mas estava de serviço: tinha de pagar uma troca ao capitão Soares; pedia desculpa...
A Rosa Bana fora buscar Margarida à cadeira do pé do altar, que era o lugar de respeito. Margarida abria os braços escusando-se, como quem não tem consigo a prenda que procuram; alegava um começo de rouquidão que apanhara na tarde do bezerro, quente das papas de milho.
‑ Não se faça rogada, Bidinha!
Aquele argumento venceu-a; encostou a cadeira, tomou o lugar da namorada de Chico Bana em frente dele. Damião Serpa substituíra um rapaz das Funduras por baixo do braço da viola, e deitou cantiga a propósito, que agradou logo muito:
     
         Boa noite digo a todos,
         Que eu tive ensino de mãe:
         Viva a dona desta casa
         E estas meninas também.
       
Então Margarida, aproveitando a pausa que o Feijão fizera no baile para apertar as cravelhas da viola, agarrou Manuel Bana, que se fora plantar desconsolado e de mão no batente de forro; trouxe-o para o terreiro entre risos, quase arrastado, e encaixou-o no lugar do sobrinho, no meio das palmas e dos vivas dos convidados divertidos. O Feijão mandou "rasgar":
      
         Eu trago terra de longe
         Para fazer um jardim,
         Para plantar este cravo
         Que está longe de mim.
     
         A voz de Margarida tinha um timbre claro naquela ironia do "jardim", do "cravo" que parecia crescer do bigode de Manuel Bana e florir-lhe os olhos velhos, rodeados de preguinhas velhacas. Todo ele ria, fazia "que não" com a cabeça, parecia procurar caminho para se esgueirar dali:
‑ Ora a alembrança da menina! Fazer pouco de um home... Um velho, cos dentes escabaçados! ‑ E alargava a mão na cara encovada, no seu gesto manhoso.
Mas o seu olhar fino e doce interrogava a cabeça de Margarida, meio pendida no ombro, a expressão longínqua e iluminada da testa e do cabelo um pouco desmanchado, que parecia seguir o rasto da cavalgada que se perde no pó e deixa os campos conforme a noite desenha as árvores e as lavas, por cima dos buracos dos grilos.
         
                                                   Vitorino Nemésio, Mau Tempo no Canal, Capítulo XVIII.
       


       
LINHAS DE LEITURA
         
1. Decifre o simbolismo do título do capítulo, atendendo ao facto de “No tempo da fror” ser uma perífrase muito usada nas cantigas de amigo da lírica trovadoresca (Idade Média).
2. Localize a ação no tempo nespaço.
3. Dque forma profano e o sagrado se misturam no texto?
4. Recolha exemplos dos registos de língua populacuidado.
5. Caracterize Margarida e Manuel Bana.


       
CHAVE DE CORREÇÃO
    
1. “No tempo da fror” é uma perífrase muito usada na lírica trovadoresca galego-portuguesa para designar a Primavera e o incitamento ao amor que esta estação supostamente provoca.
2. Para responder a este item é necessário ser capaz de associar o títulao mês de Maioe o espaçum ambientruralna casa de ManueBana: «O baileenfim, ali armado arigor e osenhoreda cidade sem virem!»
3. Importrealçar que religioso coexiste com o profano de forma naturalMargarida sai do pé daltar (erigido em honra do Espírito Santo) para ir participar nas cantigas aodesafio.
4. 
5. 
Novo Ser em Português 10, coord. A. Veríssimo, Porto, Areal Editores, 2007.
      
       




[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/09/20/no.tempo.da.fror.aspx]

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

TOU CO A PESTE, MEU AMO!... (Vitorino Nemésio)

        
            
Parecia que a febre tinha pele...
     
Vitorino Nemésio, Mau Tempo no CanalCapítulo XXII
     
       
Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infeção!
[…]
E eu sonho o Cólera, imagino a Febre,
Nesta acumulação de corpos enfezados;
[…]
Cesário Verde, “O sentimento dum ocidental”
            

Foi quando em dois verões, seguidamente, a Febre
E a Cólera também andaram na cidade,
Que esta população, com um terror de lebre,
Fugiu da capital como da tempestade.
[…]
Porém, lá fora, à solta, exageradamente,
Enquanto acontecia essa calamidade,
Toda a vegetação, pletórica, potente,
Ganhava imenso com a enorme mortandade!
          
Cesário Verde, “Nós”
            
                             
      ..................................

               

MAU TEMPO NO CANAL | Vitorino Nemésio

      
Texto
      
Outra vez interessados pela sombra maciça do Canal, ficaram à janela espiando. Mas o silêncio de tudo - casa e tempo parecia ganhá-los para alguma coisa de profundo e de recessivo que diminuía pouco a pouco a vivacidade e o sentido das palavras trocadas, esgotando aquela expectativa a dois, como os sobreviventes de uma equipa polar que a neve invade e resigna. Roberto retomara o passeio sem fim no soalho velho, sugara o cachimbo apagado, desaparecera para os lados do seu quarto. Margarida, à luz do candeeiro americano, marcava o ritmo do petróleo com o pique da agulha no bordado. Uma pomba de filosel repetia o seu corpo esquemático e o seu raminho no bico ao largo de uma tira de pano riscada a papel químico.
Deu meia-noite... Deu uma hora... Os passos de Roberto descreveram a volta toda do fundo da casa deserta; um gemido remoto obrigou Margarida a abafar o ruído do papel de seda nos dedos e a apurar bem o ouvido. - O Manuel Bana, que acordava. Margarida atravessou o quarto da Mariana, desceu os degraus que davam para a adega.
A vivenda dos Clarks, conhecida pela Pedra da Burra, no sítio de Campo Raso, era a casa tradicional das vinhas queimadas do Pico. Um piso alto, com mirante na empena, flanqueava a adega funda e metida em casa. Em regra, seguia-se à adega uma cozinha com as paredes em osso. Mas o Sr. Roberto velho,british subject, sem alterar o castiço da arquitectura picarota, acumulara por trás e aos lados da adega os quartos e esconsos exigidos pelo crescimento da família e pelo seu amor ao conforto. Do todo resultara uma impressão de polipeiro, como se o capitão de um navio retido indefinidamente num porto estrangeiro e de alfândegas desconfiadas resolvesse reforçar os camarotes para a tripulação e reacomodar a carga. A adega, com o seu lagar profundo, a madre imensa, o peso de pedra chumbado à finura do fuso de rosca até ao tecto, e os vastos canteiros de pipas irremovíveis e de tamanhos descrentes, era o porão. Margarida atravessava sempre à noite aquela arca de bafio com uma sensação de mistério. A escada era fraca e parecia descer de um portaló. Ela apanhava a saia numa mão, empunhava uma vela na outra; o seu passo furtivo agitava os ratos na falsa. E as sombras das pipas e dos madeiros velhos dançavam na parede tracejada da conta de milhares de canadas de vinho, embebidas no tempo como numa esponja oculta.
- Então, Manuel... Sentes-te melhorzinho?
Responderam a Margarida dois olhos vermelhos e encovados. Roberto deu mais força ao candeeiro. Manuel Bana; inquieto e a arder em febre, gemia. Queixou-se da cabeça e das "cruzes"; queria andar. E, descendo o braço ao longo da pilha de cobertores, parou a mão a medo:
- O pior é o matulo... - E, para Roberto, em voz baixa, aproveitando o movimento de distracção voluntária que Margarida fizera em direcção ao avarandado interior que dava do quarto sobre a adega: - Aqui, meu amo; caise im riba das partes...
Margarida desabafou o bule pousado num tinote, e, enchendo de alto uma grande caneca vidrada, enquanto Roberto o amparava pelos ombros, deu-lhe a beber. Manuel Bana estava realmente trémulo. Parecia que a febre tinha pele e que, como um anelídeo invisível, se lhe enroscara aos tendões, ao peito, ao corpo todo. Por cima da maçã-de-adão, que subia e descia como um êmbolo, a borda do bigode molhava-lhe de chá forte os beiços secos.
- Im o sinhor dòtor chigando, a menina ajunte a sua roipinha e vaia e mais ele. Mandaro recado a minha irmã pró Capelo, como ê disse? Ela é que tem obrigação de ficar aqui a pé de mim. São doenças mum ruins...
- Qual! - disse Roberto. - Apanhaste um resfriamento, é o que foi... Uma madrugada daquelas, na subida do Pico... Não era de esperar outra coisa. Se não fosse o senhor Diogo teimar para teres a vaca descansada e mugi-la ao romper do Sol, nada disto acontecia...
- Tou co a peste, meu amo!...
               
Vitorino Nemésio, Mau Tempo no CanalCapítulo XXII – 4º Nocturno (Lento)
      
      


ANÁLISE DO EXCERTO DE MAU TEMPO NO CANAL
      
      
O excerto desenvolve-se em dois momentos distintos, cada um deles estando dependente da mudança da temporalidade e de espacialidade. Como elo entre estes dois momentos destacam-se duas personagens que percorrem os espaços e os tempos, unidas por uma preocupação: a doença de uma terceira personagem.
primeiro destes momentos é determinado pela utilização preferencial de dois modos de representação: a descrição e a narração. A ausência de diálogo é explicada logo no início:
«Mas silêncio de tudo casa tempo - parecia ganhá-los para alguma coisa de profundo de recessivo que diminuía pouco a pouco a vivacidade e o sentido das palavras trocadas, esgotando aquela expectativa a dois, como os sobreviventes de uma equipa polar que a neve invade resigna."
Deste pedaço ressalta um tempo e um espaço ilusórios, que transcendem as personagens, remetendo-as, através do silêncio, para um outro silêncio profundo onde elas (onde o Homem) encontra razão de existência na reflexão sobre a condição humana.
Mas de tempo e espaço «reais» nos dá conta este excerto. O espaço da permanência - «a vivenda dos Clarks, conhecida pela Pedra da Burra, no sítio de Campo Raso, era a casa tradicional das vinhas queimadas do Pico" - e um espaço de passagem, do para além de... - «a sombra maciça do Canal". ,
A descrição do espaço físico é pormenorizada, minuciosa, ultrapassando as características meramente materiais para invadir o afetivo e o psicológico: «Margarida atravessava sempre à noite aquela arca de bafio com uma sensação de mistério.»
Como é comum na escrita nemesiana surgem-nos variadas comparações, algumas delas enquadradas no momento descritivo: «Do todo resultara uma impressão de polipeiro, como se o capitão de um navio retido indefinidamente num porto estrangeiro..»; «E as sombras das pipas dos madeiros velhos dançavam na parede tracejada da conta de milhares de canadas de vinho, embebidas no tempo como numa esponja oculta.»
Neste espaço profundo (a adega funda, o lagar profundo) ressalta o tempo que, apesar de pontualizado (Deu meia-noite... Deu uma hora...) se assume como um tempo psicológico, face à situação que se vive. Notem-se expressões como «parecia ganhá-los para alguma coisa de profundo de recessivo», ou «esgotando aquela expectativa a dois como os sobreviventes de uma equipa polar que a neve invade resigna».
Nesta última frase sublinhou-se ainda uma comparação, recurso que, como vimos anteriormente, é utilizado frequentemente por Nemésio.
E deste primeiro momento resta-nos as personagens: vivendo um momento que os faz estar presos a uma terceira personagem que está ausente «de cena» neste passo do texto, mostram-se nervosas, inquietas, fechadas no espaço e no tempo. Deste tempo é deste espaço só conseguem fugir através da mente, da memória das coisas por viver e do altruísmo das pequenas coisas vividas.
Enquanto Roberto Clark apresenta a sua inquietude andando de um lado para o outro e sugando o cachimbo apagado, Margarida vai preenchendo o seu bordado, uma pomba de filosel, símbolo - quem sabe? - de liberdade, de voo, de esperança, embora fixa na tira de pano riscada a papel químico.
Finalmente, o som do pretexto de mudança de espaço: um gemido remoto - Manuel Bana acordava. Repare-se no adjetivo remoto, a lembrar que ele se encontrava num local que dista deste outro e que só é alcançado devido à passagem pelo interior de toda a vivenda dos Clark, que, como foi referido anteriormente, é descrita ao pormenor à medida que as personagens a atravessam.
E assim chegamos à adega, perto do doente Manuel Bana, e assim inicia o nosso segundo momento, pautado pela descrição e pelo diálogo. Quer num, quer noutro se realça a doença pela qual a personagem foi acometida: «Responderam a Margarida dois olhos vermelhos e encovados»; «…inquieto a arder em febre, gemia. Queixou-se da cabeça das 'cruzes'...»; «Manuel Bana estava realmente trémulo».
Também nesta descrição, Nemésio não foge à comparação como recurso para melhor determinar os factos que quer sublinhar. Repare-se: «Parecia que a febre tinha pele... »; «Por cima da maçã-de-adão, que subia descia como um êmbolo...»
No diálogo destacaremos também dois momentos distintos: um, reporta-se à conversa normal entre Margarida e Manuel Bana ou Roberto e Manuel Bana. No entanto, um excerto da conversa entre as personagens masculinas não é ouvido pela personagem feminina, o que prova que, além do respeito que poderia parecer lógico entre a patroa e criado, um estatuto da mulher que a remete para o tabu de certos assuntos: «pior é o matulo... Aqui, meu amo; caise im riba das partes...»
Deste modo, fica-nos também a perícia com que Nemésio maneja o falar açoriano, bem dele conhecido, por experiência vivida. Efetivamente, da boca de Manuel Bana só pode sair a linguagem que conhece, do povo, e com a pronúncia que é característica do açoriano. Esta utilização marca, portanto, o estatuto social, visto que nem Roberto nem Margarida, embora vivendo no mesmo espaço mostram a cultura erudita a que tiveram acesso pelo seu nível social e económico.
A parte final do diálogo é marcada pelas frases reticentes utilizadas por Roberto Clark, provavelmente a denotar uma certa ambiguidade e a vontade de esconder a evidência ao empregado da família. Mas como sabemos da vida real, comprova-se que o doente é habitualmente lúcido da doença que o mina e, por conseguinte, e espantosamente, o excerto termina com a revelação da doença «Tou co a peste, meu amo...», pronunciada por Manuel Bana, por contraste com a indecisão que se tinha verificado latente em Roberto Clark.
      
Maria da Conceição Coelho e Maria Teresa Azinheira, Apontamentos Europa-América explicam Vitorino Nemésio – Mau Tempo no Canal, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1995.
       


       
SUGESTÃO
      





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terça-feira, 18 de setembro de 2012

CÂNDIA FUROA (Vitorino Nemésio)

          
          
Toca-se as grades, nas cadeias. Som
Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!
O aljube, em que hoje estão velhinhas e crianças,
Bem raramente encerra uma mulher de "dom"!
         
Cesário Verde, O sentimento dum ocidental
       
                       
                         

                            
           
MAU TEMPO NO CANAL | Vitorino Nemésio
          
Texto
                  
Os olhos da Cândia Furoa estavam rasos de lágrimas. Limpou a um trapo a blusa e a saia de Margarida, que lhe passou, comovida, a mão pelo cabelo.
Mas, arrumado o incidente daquele primeiro amor, que parecia teimar no fundo da rapariga como brasa em borralho, foi quase com orgulho que a Cândia Furoa explicou a origem dos seus quatro filhos e a sua situação social no povo da Urzelina e das Velas. A Liberdade era filha de um fiscal dos impostos, um prosa que chegara do continente e fora corrido da ilha por escarnecer da religião e não pagar a quem devia. Tinha oito anos; estava no Asilo há dois. Se não fosse o poder do barão e a caridade da senhora baronesa, não a tinham aceitado lá com aquela idade.
Abaixo da Liberdade era o Simão, filho do Dr. Feraústo. Esse sim! Era do Registo Civil; tratava-a muito bem. Aquela malandragem das Velas dizia: "Ele faz(i)-os e baptiza-os!" Deixá-los dizer... Pôs-lhe casa na Fajãzinha; enchia-a de tudo quanto havia. Dos melhores padrões de chitas que chegavam no vapor à loja do Sr. Francisquinho, era logo: "Corte lá um vistido prà Cândia!" E uns sapatos de cordovão... Um xaile de merino... Mas tinha sido mandado chamar pelo Governo; o pai estava na costa de África por ter matado um cunhado:
- Quistã de partilhas... Olhe a sinhóra: ainda me mandou vinte mel-réis! A indirecção era: "Inlustríssemo Senhor Doutor Oscre Fraústo, Dingníssemo Ofecial do Cevil, Paredes de Coira"... Nunca mais m'iscreveu! A gente só vem a este mũindo pra penar...
Enfim: ali estava a Vitória, à porta do frontal, em camisinha, com o ranho a cair. Essa era filha do padre Picanço, um servo de Cristo de fora da terra, que o senhor deão mandara para não envergonhar os padres velhos e sérios da ilha. Parece que não lhe chegara a tirar a esmola da missa, com dó dele... Era a afilhada da Srª Domitília Rezisto, a criada grave de casa do senhor barão. E o menino, o indês, era Joaquim. Era o filho do guarda-fiscal:
- As más-línguas inté pusérum a boca no senhor Andrezinho... Tal aleive! O filho do senhor barão!... Credo Dês me livre!
             
Vitorino Nemésio, Mau Tempo no CanalCapítulo XXXIII – Canção de Embalar
       
       
             

                   
ANÁLISE DO EXCERTO DE MAU TEMPO NO CANAL
       
[Cândia Furoa]
       
Eis um excerto, onde uma figura feminina é retratada sob o olhar profundamente humano com que Vitorino Nemésio se debruça sobre toda a gente, mas talvez em particular sobre aqueles que, de uma forma ou de outra, são subjugados por uma sociedade impiedosa, fechada, que não permite caminhos escolhidos por cada um. Neste caso, com efeito, é Cândia Furoa «escanzelada, […] e torta do grande cesto de roupa encostado à vazia, com as mãos gretadas do frio da água da potassa do sabão», em quem «só lume dos olhos vivos atrevidos […] falavam de uma mocidade desperdiçada·e teimosa».
Lendo, portanto, o texto acima transcrito, sente-se que o autor não formula juízos de valor sobre a rapariga, como se, mesmo assim, a absolvesse implicitamente dos «pecados» que levam a sociedade a desprezá-la. E de um ser humano que, aos baldões, consoante o homem que lhe aparece, Nemésio fala, retratando-a como uma mulher digna, apesar dos «maus passos». E isto leva-nos a pensar que há no coração e no cérebro de Vitorino Nemésio um profundo respeito pela sua gente, pela mulher em especial, mesmo aquela que os outros consideram a mais degradada. De resto, analisemos a galeria dos amantes da Furoa: um fiscal de impostos, «um prosa... que fora corrido da ilha por escarnecer da religião e não pagar a quem devia»; um doutor do Registo Civil, «Esse sim!... tratava-a muito bem»; um padre sem préstimos, «que Sr. Deão mandara embora para não envergonhar os padres velhos e sérios da ilha»; um guarda-fiscal que a Cândia não chega a caracterizar, mas sabemos ser o pai do bebé que encantara Margarida quando o vira, o tal Joaquim que «as más-línguas inté puseram a boca no Sr. Andrezinho...»
Neste conjunto, repare-se que o autor indicou os principais agentes da «colonização» dos Açores feita pelo Continente. E aí fica a sua forma de pensar sobre as Ilhas que, suspeitas à colonização real de flamengos, ingleses e portugueses, continuam a ser subjugados por «colonizações» particulares, de que uma vítima bem visível é esta pobre mulher de São Jorge, uma serva do barão da Urzelina. É que nobres e burgueses não sentem verdadeiramente nenhuma colonização, pois têm interesses de classe que os colocam fora da alçada do Continente, no entanto, envia para as ilhas os seus fiscais e conservadores do Registo Civil, funcionalismo que, sendo na maior parte das vezes sozinho, procuram a fêmea onde ela estiver à mão... E é sempre o povo quem paga a opressão, quer externa, quer interna.
Analisando esta prosa escorreita, embora nem sempre fácil, encontramos bem destacados dois tipos de discurso no texto que vimos observando: a narração e a descrição; modos de representação que constituem o discurso do narrador omnisciente entrelaçados· com o discurso indireto livre com que Cândia informa, com ternura e uma certa dignidade, a interlocutora da origem dos filhos e do homem que mais a encantou, o Dr. «Feraústo» «[…] uns sapatos de cordovão... um xaile de merino…»; o discurso direto irrompe também desta contadora de «estória», numa linguagem «vivida», sem enfeites, resultado de nesciência ingénua e da própria fonética da ilha: quistã, sinhóra, muindo a par de "inlustrissemo», «indirecção», «Rezisto Cevil».
No meio do acervo de informações que Cândia Furoa fornece a Margarida (testemunha calada), parece espelhar-se a necessidade de contar, de falar, de explicar uma alma que vive dentro de um corpo estragado, mas que teima em sobreviver num registo de resignação feito voz em «A gente só vem a este muindo pra penar...»
Por último, note-se a dignidade da personagem que parece saber medir distâncias mesmo em coisas do sexo: «Tal aleive! […] Credo, Dês me livre!» Afinal, esta mulher, que é do homem que lhe calha, reconhece que  por má-língua se pode falar do filho do senhor barão; e é, afinal, ainda a sua vontade que aqui prevalece, conferindo-lhe a tal dignidade de que Nemésio se faz arauto ‑ «Dês me livre!»
       
Maria da Conceição Coelho e Maria Teresa Azinheira, Apontamentos Europa-América explicam Vitorino Nemésio – Mau Tempo no Canal, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1995.
       
       
   

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/09/18/Candia.Furoa.aspx]