Parecia que a febre tinha pele...
Vitorino Nemésio, Mau Tempo no Canal, Capítulo XXII
Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infeção!
[…]
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infeção!
[…]
E eu sonho o Cólera, imagino a Febre,
Nesta acumulação de corpos enfezados;
[…]
Nesta acumulação de corpos enfezados;
[…]
Cesário Verde, “O sentimento dum ocidental”
Foi quando em dois verões, seguidamente, a Febre
E a Cólera também andaram na cidade,
Que esta população, com um terror de lebre,
Fugiu da capital como da tempestade.
[…]
Porém, lá fora, à solta, exageradamente,
Enquanto acontecia essa calamidade,
Toda a vegetação, pletórica, potente,
Ganhava imenso com a enorme mortandade!
E a Cólera também andaram na cidade,
Que esta população, com um terror de lebre,
Fugiu da capital como da tempestade.
[…]
Porém, lá fora, à solta, exageradamente,
Enquanto acontecia essa calamidade,
Toda a vegetação, pletórica, potente,
Ganhava imenso com a enorme mortandade!
Cesário Verde, “Nós”
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Texto
Outra vez interessados pela sombra maciça do Canal, ficaram à janela espiando. Mas o silêncio de tudo - casa e tempo parecia ganhá-los para alguma coisa de profundo e de recessivo que diminuía pouco a pouco a vivacidade e o sentido das palavras trocadas, esgotando aquela expectativa a dois, como os sobreviventes de uma equipa polar que a neve invade e resigna. Roberto retomara o passeio sem fim no soalho velho, sugara o cachimbo apagado, desaparecera para os lados do seu quarto. Margarida, à luz do candeeiro americano, marcava o ritmo do petróleo com o pique da agulha no bordado. Uma pomba de filosel repetia o seu corpo esquemático e o seu raminho no bico ao largo de uma tira de pano riscada a papel químico.
Deu meia-noite... Deu uma hora... Os passos de Roberto descreveram a volta toda do fundo da casa deserta; um gemido remoto obrigou Margarida a abafar o ruído do papel de seda nos dedos e a apurar bem o ouvido. - O Manuel Bana, que acordava. Margarida atravessou o quarto da Mariana, desceu os degraus que davam para a adega.
A vivenda dos Clarks, conhecida pela Pedra da Burra, no sítio de Campo Raso, era a casa tradicional das vinhas queimadas do Pico. Um piso alto, com mirante na empena, flanqueava a adega funda e metida em casa. Em regra, seguia-se à adega uma cozinha com as paredes em osso. Mas o Sr. Roberto velho,british subject, sem alterar o castiço da arquitectura picarota, acumulara por trás e aos lados da adega os quartos e esconsos exigidos pelo crescimento da família e pelo seu amor ao conforto. Do todo resultara uma impressão de polipeiro, como se o capitão de um navio retido indefinidamente num porto estrangeiro e de alfândegas desconfiadas resolvesse reforçar os camarotes para a tripulação e reacomodar a carga. A adega, com o seu lagar profundo, a madre imensa, o peso de pedra chumbado à finura do fuso de rosca até ao tecto, e os vastos canteiros de pipas irremovíveis e de tamanhos descrentes, era o porão. Margarida atravessava sempre à noite aquela arca de bafio com uma sensação de mistério. A escada era fraca e parecia descer de um portaló. Ela apanhava a saia numa mão, empunhava uma vela na outra; o seu passo furtivo agitava os ratos na falsa. E as sombras das pipas e dos madeiros velhos dançavam na parede tracejada da conta de milhares de canadas de vinho, embebidas no tempo como numa esponja oculta.
- Então, Manuel... Sentes-te melhorzinho?
Responderam a Margarida dois olhos vermelhos e encovados. Roberto deu mais força ao candeeiro. Manuel Bana; inquieto e a arder em febre, gemia. Queixou-se da cabeça e das "cruzes"; queria andar. E, descendo o braço ao longo da pilha de cobertores, parou a mão a medo:
- O pior é o matulo... - E, para Roberto, em voz baixa, aproveitando o movimento de distracção voluntária que Margarida fizera em direcção ao avarandado interior que dava do quarto sobre a adega: - Aqui, meu amo; caise im riba das partes...
Margarida desabafou o bule pousado num tinote, e, enchendo de alto uma grande caneca vidrada, enquanto Roberto o amparava pelos ombros, deu-lhe a beber. Manuel Bana estava realmente trémulo. Parecia que a febre tinha pele e que, como um anelídeo invisível, se lhe enroscara aos tendões, ao peito, ao corpo todo. Por cima da maçã-de-adão, que subia e descia como um êmbolo, a borda do bigode molhava-lhe de chá forte os beiços secos.
- Im o sinhor dòtor chigando, a menina ajunte a sua roipinha e vaia e mais ele. Mandaro recado a minha irmã pró Capelo, como ê disse? Ela é que tem obrigação de ficar aqui a pé de mim. São doenças mum ruins...
- Qual! - disse Roberto. - Apanhaste um resfriamento, é o que foi... Uma madrugada daquelas, na subida do Pico... Não era de esperar outra coisa. Se não fosse o senhor Diogo teimar para teres a vaca descansada e mugi-la ao romper do Sol, nada disto acontecia...
- Tou co a peste, meu amo!...
Vitorino Nemésio, Mau Tempo no Canal, Capítulo XXII – 4º Nocturno (Lento)
ANÁLISE DO EXCERTO DE MAU TEMPO NO CANAL
O excerto desenvolve-se em dois momentos distintos, cada um deles estando dependente da mudança da temporalidade e de espacialidade. Como elo entre estes dois momentos destacam-se duas personagens que percorrem os espaços e os tempos, unidas por uma preocupação: a doença de uma terceira personagem.
O primeiro destes momentos é determinado pela utilização preferencial de dois modos de representação: a descrição e a narração. A ausência de diálogo é explicada logo no início:
«Mas o silêncio de tudo - casa e tempo - parecia ganhá-los para alguma coisa de profundo e de recessivo que diminuía pouco a pouco a vivacidade e o sentido das palavras trocadas, esgotando aquela expectativa a dois, como os sobreviventes de uma equipa polar que a neve invade e resigna."
Deste pedaço ressalta um tempo e um espaço ilusórios, que transcendem as personagens, remetendo-as, através do silêncio, para um outro silêncio profundo onde elas (onde o Homem) encontra razão de existência na reflexão sobre a condição humana.
Mas de tempo e espaço «reais» nos dá conta este excerto. O espaço da permanência - «a vivenda dos Clarks, conhecida pela Pedra da Burra, no sítio de Campo Raso, era a casa tradicional das vinhas queimadas do Pico" - e um espaço de passagem, do para além de... - «a sombra maciça do Canal". ,
A descrição do espaço físico é pormenorizada, minuciosa, ultrapassando as características meramente materiais para invadir o afetivo e o psicológico: «Margarida atravessava sempre à noite aquela arca de bafio com uma sensação de mistério.»
Como é comum na escrita nemesiana surgem-nos variadas comparações, algumas delas enquadradas no momento descritivo: «Do todo resultara uma impressão de polipeiro, como se o capitão de um navio retido indefinidamente num porto estrangeiro... »; «E as sombras das pipas e dos madeiros velhos dançavam na parede tracejada da conta de milhares de canadas de vinho, embebidas no tempo como numa esponja oculta.»
Neste espaço profundo (a adega funda, o lagar profundo) ressalta o tempo que, apesar de pontualizado (Deu meia-noite... Deu uma hora...) se assume como um tempo psicológico, face à situação que se vive. Notem-se expressões como «parecia ganhá-los para alguma coisa de profundo e de recessivo», ou «esgotando aquela expectativa a dois como os sobreviventes de uma equipa polar que a neve invade e resigna».
Nesta última frase sublinhou-se ainda uma comparação, recurso que, como vimos anteriormente, é utilizado frequentemente por Nemésio.
E deste primeiro momento resta-nos as personagens: vivendo um momento que os faz estar presos a uma terceira personagem que está ausente «de cena» neste passo do texto, mostram-se nervosas, inquietas, fechadas no espaço e no tempo. Deste tempo é deste espaço só conseguem fugir através da mente, da memória das coisas por viver e do altruísmo das pequenas coisas vividas.
Enquanto Roberto Clark apresenta a sua inquietude andando de um lado para o outro e sugando o cachimbo apagado, Margarida vai preenchendo o seu bordado, uma pomba de filosel, símbolo - quem sabe? - de liberdade, de voo, de esperança, embora fixa na tira de pano riscada a papel químico.
Finalmente, o som do pretexto de mudança de espaço: um gemido remoto - Manuel Bana acordava. Repare-se no adjetivo remoto, a lembrar que ele se encontrava num local que dista deste outro e que só é alcançado devido à passagem pelo interior de toda a vivenda dos Clark, que, como foi referido anteriormente, é descrita ao pormenor à medida que as personagens a atravessam.
E assim chegamos à adega, perto do doente Manuel Bana, e assim inicia o nosso segundo momento, pautado pela descrição e pelo diálogo. Quer num, quer noutro se realça a doença pela qual a personagem foi acometida: «Responderam a Margarida dois olhos vermelhos e encovados»; «…inquieto e a arder em febre, gemia. Queixou-se da cabeça e das 'cruzes'...»; «Manuel Bana estava realmente trémulo».
Também nesta descrição, Nemésio não foge à comparação como recurso para melhor determinar os factos que quer sublinhar. Repare-se: «Parecia que a febre tinha pele... »; «Por cima da maçã-de-adão, que subia e descia como um êmbolo...»
No diálogo destacaremos também dois momentos distintos: um, reporta-se à conversa normal entre Margarida e Manuel Bana ou Roberto e Manuel Bana. No entanto, um excerto da conversa entre as personagens masculinas não é ouvido pela personagem feminina, o que prova que, além do respeito que poderia parecer lógico entre a patroa e criado, um estatuto da mulher que a remete para o tabu de certos assuntos: «O pior é o matulo... Aqui, meu amo; caise im riba das partes...»
Deste modo, fica-nos também a perícia com que Nemésio maneja o falar açoriano, bem dele conhecido, por experiência vivida. Efetivamente, da boca de Manuel Bana só pode sair a linguagem que conhece, do povo, e com a pronúncia que é característica do açoriano. Esta utilização marca, portanto, o estatuto social, visto que nem Roberto nem Margarida, embora vivendo no mesmo espaço mostram a cultura erudita a que tiveram acesso pelo seu nível social e económico.
A parte final do diálogo é marcada pelas frases reticentes utilizadas por Roberto Clark, provavelmente a denotar uma certa ambiguidade e a vontade de esconder a evidência ao empregado da família. Mas como sabemos da vida real, comprova-se que o doente é habitualmente lúcido da doença que o mina e, por conseguinte, e espantosamente, o excerto termina com a revelação da doença «Tou co a peste, meu amo...», pronunciada por Manuel Bana, por contraste com a indecisão que se tinha verificado latente em Roberto Clark.
Maria da Conceição Coelho e Maria Teresa Azinheira, Apontamentos Europa-América explicam Vitorino Nemésio – Mau Tempo no Canal, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1995.
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