domingo, 2 de setembro de 2012

TERRA DE LUME (Vitorino Nemésio)






           
        
TERRA DE LUME


Rezo, dobrado, aos Anjos da manhã.
O céu é fosco e o coração sonoro
Como a chuva que cai na telha vã
E o verbo com que imploro.

Terra de lume implanta
O meu corpo de velho
Enrolado na manta.
As minhas mãos estão postas ou podadas?
Sou gente ou vide?
O chão, com minhas folhas amontoadas,
do Inferno me divide.

Mas, rezo sempre, como o fio da fonte
Teima na rocha viva ao mar virada
Na esperança de que um cântaro desponte

E o apare ainda ‑ ou a covinha breve
Que, temendo o queimor da água salgada,
Ele próprio em pedra abriu

Como na terra leve,
Ajudado dos álamos, o rio.
        

Vitorino Nemésio, O Pão e a Culpa (1955)
       



          
TEXTO DE APOIO
     
Ao longo de O Pão e a Culpa, Nemésio consegue um notável equilíbrio entre essa voz interior, a do «coração sonoro», e as imagens do mundo exterior que o poeta incorpora na sua angústia. Ora o lume lhe promete a lucidez da estrela, ora a água (promessa de lenitivo) se transforma, dentro da oração, num estímulo de esperança, «como a chuva que cai na telha vã».
          
José Martins Garcia, Vitorino Nemésio, a obra e o homem, Lisboa, Editora Arcádia, 1978, p. 174)
            



LEITURA ORIENTADA
           
1. Justifique o título do poema (cf. esquema que se segue).


     
O Divino Espírito Santo, por ser «língua de lume» (Verbo de apóstolo, comunicação a todos os povos), é também a «língua de lume» (vulcão) castigadora dos desvarios humanos. (José Martins Garcia, Vitorino Nemésio, a obra e o homem, Lisboa, Editora Arcádia, 1978, p. 172)
        
2. Caracterize o eu poético, atendendo à sua postura perante Deus.

3. Que expressões, na 1ª estrofe, reenviam para a ideia de «esperança» e de «voz interior»?

4. Comente os versos 10 e 11, considerando a polissemia de folhas. (Folhas: Outono, fim da vida e/ ou representação do papel, ou seja, da poesia.)

5. Divida o texto em duas partes lógicas, justificando a delimitação efectuada.

6. Faça o levantamento dos recursos expressivos mais relevantes.
         
Ser em Português 12, coord. A. Veríssimo, Porto, Areal Editores, 1999.
       
       


SUGESTÕES
      


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/09/02/terra.de.lume.aspx]

sábado, 1 de setembro de 2012

ESPÍRITO DA NOITE (Vitorino Nemésio)

          
 


        
ESPÍRITO DA NOITE

Espírito da noite, variável
De Miguel a Satã, conforme os lumes,
Dependente da carne,
Cheio de mortos como um Marne
E lúcido de gumes.

Espírito forçoso na vigília
E lânguido no sonho
Que uma seiva de tília,
Tépida, fez risonho.

Espírito tão simples, enunciado,
E profundo na causa,
Urdido para tempo, dilatado
Peito de pausa em pausa,

Alto és no amplo sopro
Que ainda tenta na argila,
Como na pedra o escopro
Minha forma tranquila.

Mas, se à tua fogueira
Aos ventos estendida,
Prometeu, anjo velho, tirou fogo,
Alma, de que maneira
Escaparás à ardida
Terra, sem água ou rogo?

Espírito, na beta luminosa
Instantâneo e evidente,
Voltarei como lágrima na rosa
Da tua alva silente.

Entretanto, como as várias
Aves de ramo em ramo,
As espadas contrárias
Decidirão do que amo.
    

Vitorino Nemésio, O Pão e a Culpa, Lisboa, Bertrand, 1955.
   


    
TEXTO DE APOIO
    
Dir-se-ia que a noite adquiriu, aos olhos do poeta, o dom de consubstanciar o Bem e o Mal. O «Espírito da Noite», entidade dilacerante, tanto pode englobar as milícias do Arcanjo como as forças do inferno. É o Espírito devorador*, «lúcido de gumes», brilho sinistro de espadas noturnas (o campo do desconhecido) que deixam atrás de si ossadas, como na guerra.
   
* O carácter terrivelmente enigmático do Espírito Santo foi assim apresentado por Teixeira de Pascoaes:
Sou o Espírito Santo, compreendes?
E este imenso gigante que tu vês
É a seara viva"o pão da minha fome!
      
«Regresso ao Paraíso», Obras Completas,
vol. IV, Bertrand,.s/d., pág. 131
    
Esse Espírito, que uma «seiva de tília» fez «risonho», é a simplicidade profunda (tudo e nada) que habita em cada ser, o «amplo sopro» que dá «forma tranquila» a cada homem. Mas «tenta» dar vida à argila, ou «tenta» ao pecado? Ambas as coisas, naturalmente...

Citámos, em nota anterior, alguns versos de Pascoaes onde se fala do <«imenso gigante». Trata-se, evidentemente, de Prometeu enquanto símbolo da espécie racional. Também Nemésio estabelece um elo entre o Espírito Santo e Prometeu. E esse elo leva-o à angustiada interrogação: esse fogo (símbolo do Espírito e, simultaneamente, das luzes prometeicas) não queimará a Alma, se a Terra (local de degradação) não ofertar ao homem, rezando este, uma gota de água (de graça divina)?

O poeta espera essa graça, espera a luz, espera que o Espírito não seja unicamente lume, mas também claridade, iluminação. Enquanto essa graça não chega, as «espadas contrárias» travarão no íntimo do poeta o seu milenar combate.

Importa salientar que, em O Pão e a Culpa, avulta o «lume» ‑ elemento já presente na anterior mundividência do autor, mas que irrompe agora com mais intensa obsessão. E mais uma vez Nemésio mergulha profundamente na açorianidade nesse sentimento ilhéu segundo o qual o Divino Espírito Santo, por ser «língua de lume» (Verbo de apóstolo, comunicação a todos os povos), é também a «língua de lume» (vulcão) castigadora dos desvarios humanos. Para os Açorianos, o Divino Espírito Santo, sendo Deus, não se confunde nem com o Pai (entidade remota) nem com o Filho, cordeiro de Deus sacrificado aos pecados do homem. O Espírito Santo, cujo símbolo é a pomba, é a verdadeira transcendência dentro da cosmovisão insular. Por isso Vitorino Nemésio, neste livro, traduziu um dos hinos do Espírito Santo: «Veni, Creator Spirictus, / Mentes tuorum visita» (págs. 24-27), terminando da seguinte maneira:
    
Vem, Espírito Santo,Por nome amor e asa,Como a áscua de espanto
Acende a mente e a casa.

Os corações repletos
Serão de Ti, que amplias,
Como os grãos são completos
Já nas vagens esguias.

Das quais Uma, à luz núncia,
Para mais que anjos feita,
Abre a cruz da renúncia
Sobre a Terra imperfeita.

Vem na consolação,
lndene a gáudio e a pranto,
Tu, Padre, e à dextra mão
O Filho, Espírito Santo.
      
Mas o Espírito Santo esconde-se em seu mistério uno e trino. Nem a oferenda do Homem («Abre a cruz da renúncia / Sobre a Terra imperfeita») vale perante essa entidade ambígua que parece por vezes consubstanciar o Bem e o Mal. Por isso o autor reza, reza para que o Espírito o ilumine:
   
TERRA DE LUME

Rezo, dobrado, aos Anjos da manhã.
O céu é fosco e o coração sonoro
Como a chuva que cai na telha vã
E o verbo com que imploro.
    
Vitorino Nemésio, O Pão e a Culpa, Lisboa, Bertrand, 1955.
    
     
José Martins Garcia, Vitorino Nemésio, a obra e o homem, 
Lisboa, Editora Arcádia, 1978, pp. 170-174)
       




       
SUGESTÕES DE LEITURA
      


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/09/01/espirito.da.noite.aspx]

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

O PAÇO DO MILHAFRE (Vitorino Nemésio)

       



O PAÇO DO MILHAFRE              
             

À beira de água fiz erguer meu Paço
De Rei-Saudade das distantes milhas:
Meus olhos, minha boca eram as ilhas;
Pranto e cantiga andavam no sargaço.

Atlântico, encontrei no meu regaço
Algas, corais, estranhas maravilhas!
Fiz das gaivotas minhas próprias filhas,
Tive pulmões nas fibras do mormaço.

Enchi infusas nas salgadas ondas
E oleiro fui que as lágrimas redondas
Por fora fiz de vidro e, dentro, de água.

Os vagalhões da noite me salvavam
E, com partes iguais de sal e mágoa,
Minhas altas janelas se lavavam.
       
Vitorino Nemésio, in Tríptico, nº 2 (1924)
O Bicho Harmonioso (1938)
    



     
TEXTO DE APOIO
    
[…] a «história» da casa resume-se nisto: «sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço, sentado numa pedra de memória».

Trata-se, pois, de dar expressão a uma realidade de valor metonímico que só tem existência no seu íntimo. Tal como o «Paço do Milhafre»: «O Paço do Milhafre não é ali, mas para mim lá fica o seu mistério. Nem sequer o Paço é paço, bem no sei! O Passo do Milhafre é um passo de passada e fica ao Paço da Areia, acima das de Entre-Muros» (p. 18). Mas o «mistério» do Passo/Paço não fica pelo jogo homofónico: para além do que possa ser entendido como puro ludismo verbal, estão as fluidas associações de imagens, os controles incoerentes de uma interioridade exilada, o real sublimado e tomado discurso, léxico significativo, mito, símbolo.
[…]
Vejamos o texto poético «O Paço do Milhafre» publicado n'Bicho Harmonioso.
[…]
Poema sem dúvida já profundamente marcado da insularidade açoriana da qual nunca se desligaria. Repare-se, antes de mais, no elevado número de termos da esfera marítima: «beira de água», «distantes milhas», «ilhas», «sargaço», «atlântico», «algas», «corais», «gaivotas», «mormaço», «salgadas ondas», «vagalhões», «sal». Mas Nemésio apodera-se da significação desse léxico, partindo para um plano de antropomorfização. A paisagem marítima cerca-o e invade-o, insinuando-se matéria constituinte do seu próprio ser: «Meus olhos, minha boca eram as ilhas», «Tive pulmões nas fibras do mormaço»; em suma, faz-se «atlântico».

A propósito deste livro diz Martins Garcia que a interioridade de Vitorino Nemésio, «[...], busca, na exterioridade, toda uma série de elementos da vida insular: conchas, algas, mar, poço, nuvem, barco, gaivota, estrela, lume, vento, sol, sal, etc. ‑ mas tudo isso como elementos da 'memória', à semelhança da 'pedra' onde se senta o cansaço do autor [...]» (José Martins Garcia, Vitorino Nemésio, a obra e o homem,Lisboa, Editora Arcádia, 1978, pp. 159-160). Nemésio, de resto, satura-se de reminiscências, refugia-se na reconversão fantástica. Então, confere maior espacialidade ao «regaço», heterogeneidade bizarra aos elementos que o habitam, encarnando preferencialmente alguns, todos tomando como parte vital da sua existência: «Atlântico, encontrei no meu regaço / Algas, corais, estranhas maravilhas! / Fiz das gaivotas minhas próprias filhas, / Tive pulmões nas fibras do mormaço». E é ainda a essa substância salgada que impetuosamente nele bate, a quem é devida a razão da sua subsistência: «Os vagalhões da noite me salvavam / [...] de sal e mágoa, / Minhas altas janelas se lavavam».

Aqui está, ou não, uma forte determinação, um indiscutível poder ‑ pois que faz erguer o seu «Paço / Da Rei- Saudade das distantes milhas»?

«Paço da Rei-Saudade», a personagem-narrador Mateus Queimado, várias outras como vimos, inclusive Margarida do Mau tempo no Canal, são, pois, projeções mais ou menos autónomas da personalidade Nemésio. «[...] nem o fingimento é o puro advento de pseudónimos, de protagonistas, de personagens, mas o cruzamento de seres em estado fantástico com seres de estado civil, meio por meio formados na reminiscência e na inventiva, ao mesmo tempo utópicos e moradores, convividos e sonhados» ‑ confessa o próprio autor (in «O problema do romance», Diário Popular, Lisboa, 1946-05-08). Há unidade nesta multiplicidade de vozes pelo facto de representarem uma atitude mental convertida em experiências literárias. Essa diversidade é, de resto, a prova provada do metaforismo de viagem na obra de Nemésio: em parte porque resposta à ubiquidade da Ilha Perdida; em parte devido ao carácter indefinido, em rumo e extensão, da(s) sua(s) viagen(s) mítica(s) (sobretudo na crónica, autêntica viagem de um navio [que está] no peito como se viu, isto é, uma «rota» de diário íntimo!).

Nemésio não quis, afinal, regressar à ilha Terceira nem ao tempo que lá passara. É certo que lhe é grato recordar factos, episódios vividos; mas nesta «volta atrás não avulta o tempo perdido (isso é só mau costume calculista, ponto de vista económico): [...]» (Vitorino Nemésio, «A cinza do charuto» in Jornal do observador, Lisboa, Editorial Verbo, 1974, p. 91). Se regressa fisicamente às ilhas, mesmo esporadicamente e por curto espaço de tempo, fica-lhe uma sensação de vazio, de falta interior quase hereditária: «[...] nada me falta ‑ senão o que sempre me faltou». «Quando se volta atrás ‑ continua na crónica do Jornal do observador ‑ levanta-se o passado criador, ingénuo pai do futuro. Pitoresco ou não, superficial ou profundo o que fizemos arranca dele» (sublinhados nossos).
             
Maria Margarida Maia Gouveia, A viagem em Vitorino Nemésio, Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 1986, pp. 124-126.
        
            


LEITURA ORIENTADA
     
1. Sem ler o poema, defina as expectativas que lhe cria o título.

2Leia o texto e recorra ao dicionário para esclarecer o sentido das palavras que desconheça, com particular atenção aos vocábulos «paço», «milhafre», «mormaço», «sargaço», «infusas», «oleiro», «vagalhões».

3. Indique os elementos marinhos que transformam e aproximam o corpo do «Rei-Saudade» das «ilhas» distantes.

4. Analise o valor expressivo da antítese presente no verso «Por fora fiz de vidro e, dentro, de água».

5. Tendo em conta a estrutura estrófica, classifique esta composição poética de Vitorino Nemésio.

6. Proceda à definição do seu esquema rimático, explicitando a relação de sentidos que se estabelecem entre as palavras que rimam.

7. Comente o sentido da estrofe final do poema.

8. Após a análise do texto, faça a interpretação do título e confronte-a com as suas expectativas iniciais.
    
Antologia. Português 10º Ano/Ensino Secundário, Ana Garrido, Cristina Duarte, Fátima Rodrigues, Fernanda Afonso e Lúcia Lemos, Lisboa Editora, 2007.
       

Saudade. Paulo Borges, Ponta Delgada, novembro de  2017

       
SUGESTÃO
      


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/08/31/POEMA.o.paco.do.milhafre.aspx]

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

NAVIO DE SAL (Vitorino Nemésio)


                   
              


             
NAVIO DE SAL          
                    
Quando eu era pequeno, vinha o navio de sal,
Era um acontecimento!
E meu tio António Machado ia sempre ao areal
Com o seu óculo de alcance desencanudado a barlavento.
Era um iate cheio de cordas e de velas,
Chamado Santo Amaro, Veloz ou o 
Diligente,

E, como trazia o sal, que é o sabor das panelas,
Era esperado tal qual como se fosse um ausente.
Na barra do horizonte era um ponto sozinho,
Mas crescia no vento a sua vela crua,
E o sol, ao morrer, tingia-lhe de vinho
A proa que vestia a pau a vaga nua.
Ali vinha, do Alto, sem sextante nem erro,
Enchendo devagar as previstas derrotas,
E plantava no fundo a sua raiz de ferro
Fazendo abrir no céu como flores as gaivotas.
As raparigas sãs da ribeira do mar,
Que traziam na pele um aroma silvestre,
Punham os olhos muito compridos, a cismar,
Nas cordas que secavam as roupas íntimas do Mestre.
Os pescadores mediam com a linha das pestanas
O tamanho do Audaz, a sua popa alceira:
Nunca tinha arribado àquelas praias insulanas
Tanto pano de verga, tanto oleado, tanta madeira!
Por isso a Vila, abrindo nas rochas duras
A branca humanidade das suas nocturnas casas,
Se encostava ao bater daquelas velas escuras
Como o corpo de um pássaro se deixa levar pelas asas.
………………………………………………………………...
Ah, se ele fosse salgar os caldos já tragados,
Tornar incorruptível a mocidade já verde,
Interessar o óculo do velho tio e os vidros suados
Da janela que ao longe este horizonte perde!
Se fosse encher de branco as paragens insossas,
Manter o gosto a vida aos dias moribundos,
Conservar as faces às moças
E o movimento aos mares profundos,
Então sim! levaria a porto e salvamento
A sua carga.
Na dúvida, Capitão, espera o vento,
Iça as velas e larga!
          

Vitorino Nemésio, O Bicho Harmonioso (1938)



     
     
LINHAS DE LEITURA
     

Observe, no poema, as seguintes linhas de leitura:

 a memória da infância;

 a representação de um mundo concreto, de raiz marítima;

 o carácter descritivo/narrativo da 1ª parte do poema; o carácter expressivo da 2ª parte;

 sal: agente e símbolo da conservação (dos alimentos, da memória);

 a linguagem metafórica; outros recursos estilísticos;

 a utilização livre da métrica e da rima.

         
Plural 12, E. Costa, V. Baptista, A. Gomes, Lisboa Editora, 1999.
       


       
SUGESTÃO
      


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/08/30/navio.de.sal.aspx]