ESPÍRITO DA NOITE
Espírito da noite, variável
De Miguel a Satã, conforme os lumes,
Dependente da carne,
Cheio de mortos como um Marne
E lúcido de gumes.
Espírito forçoso na vigília
E lânguido no sonho
Que uma seiva de tília,
Tépida, fez risonho.
Espírito tão simples, enunciado,
E profundo na causa,
Espírito da noite, variável
De Miguel a Satã, conforme os lumes,
Dependente da carne,
Cheio de mortos como um Marne
E lúcido de gumes.
Espírito forçoso na vigília
E lânguido no sonho
Que uma seiva de tília,
Tépida, fez risonho.
Espírito tão simples, enunciado,
E profundo na causa,
Urdido para o tempo, dilatado
Peito de pausa em pausa,
Alto és no amplo sopro
Que ainda tenta na argila,
Como na pedra o escopro
Minha forma tranquila.
Mas, se à tua fogueira
Aos ventos estendida,
Prometeu, anjo velho, tirou fogo,
Alma, de que maneira
Escaparás à ardida
Terra, sem água ou rogo?
Espírito, na beta luminosa
Instantâneo e evidente,
Voltarei como lágrima na rosa
Da tua alva silente.
Entretanto, como as várias
Aves de ramo em ramo,
As espadas contrárias
Decidirão do que amo.
Peito de pausa em pausa,
Alto és no amplo sopro
Que ainda tenta na argila,
Como na pedra o escopro
Minha forma tranquila.
Mas, se à tua fogueira
Aos ventos estendida,
Prometeu, anjo velho, tirou fogo,
Alma, de que maneira
Escaparás à ardida
Terra, sem água ou rogo?
Espírito, na beta luminosa
Instantâneo e evidente,
Voltarei como lágrima na rosa
Da tua alva silente.
Entretanto, como as várias
Aves de ramo em ramo,
As espadas contrárias
Decidirão do que amo.
Vitorino Nemésio, O Pão e a Culpa, Lisboa, Bertrand, 1955.
TEXTO DE APOIO
Dir-se-ia que a noite adquiriu, aos olhos do poeta, o dom de consubstanciar o Bem e o Mal. O «Espírito da Noite», entidade dilacerante, tanto pode englobar as milícias do Arcanjo como as forças do inferno. É o Espírito devorador*, «lúcido de gumes», brilho sinistro de espadas noturnas (o campo do desconhecido) que deixam atrás de si ossadas, como na guerra.
* O carácter terrivelmente enigmático do Espírito Santo foi assim apresentado por Teixeira de Pascoaes:
Sou o Espírito Santo, compreendes?
E este imenso gigante que tu vês
É a seara viva"o pão da minha fome!
E este imenso gigante que tu vês
É a seara viva"o pão da minha fome!
«Regresso ao Paraíso», Obras Completas,
vol. IV, Bertrand,.s/d., pág. 131
vol. IV, Bertrand,.s/d., pág. 131
Esse Espírito, que uma «seiva de tília» fez «risonho», é a simplicidade profunda (tudo e nada) que habita em cada ser, o «amplo sopro» que dá «forma tranquila» a cada homem. Mas «tenta» dar vida à argila, ou «tenta» ao pecado? Ambas as coisas, naturalmente...
Citámos, em nota anterior, alguns versos de Pascoaes onde se fala do <«imenso gigante». Trata-se, evidentemente, de Prometeu enquanto símbolo da espécie racional. Também Nemésio estabelece um elo entre o Espírito Santo e Prometeu. E esse elo leva-o à angustiada interrogação: esse fogo (símbolo do Espírito e, simultaneamente, das luzes prometeicas) não queimará a Alma, se a Terra (local de degradação) não ofertar ao homem, rezando este, uma gota de água (de graça divina)?
O poeta espera essa graça, espera a luz, espera que o Espírito não seja unicamente lume, mas também claridade, iluminação. Enquanto essa graça não chega, as «espadas contrárias» travarão no íntimo do poeta o seu milenar combate.
Importa salientar que, em O Pão e a Culpa, avulta o «lume» ‑ elemento já presente na anterior mundividência do autor, mas que irrompe agora com mais intensa obsessão. E mais uma vez Nemésio mergulha profundamente na açorianidade nesse sentimento ilhéu segundo o qual o Divino Espírito Santo, por ser «língua de lume» (Verbo de apóstolo, comunicação a todos os povos), é também a «língua de lume» (vulcão) castigadora dos desvarios humanos. Para os Açorianos, o Divino Espírito Santo, sendo Deus, não se confunde nem com o Pai (entidade remota) nem com o Filho, cordeiro de Deus sacrificado aos pecados do homem. O Espírito Santo, cujo símbolo é a pomba, é a verdadeira transcendência dentro da cosmovisão insular. Por isso Vitorino Nemésio, neste livro, traduziu um dos hinos do Espírito Santo: «Veni, Creator Spirictus, / Mentes tuorum visita» (págs. 24-27), terminando da seguinte maneira:
Vem, Espírito Santo,Por nome amor e asa,Como a áscua de espanto
Acende a mente e a casa.
Os corações repletos
Serão de Ti, que amplias,
Como os grãos são completos
Já nas vagens esguias.
Das quais Uma, à luz núncia,
Para mais que anjos feita,
Abre a cruz da renúncia
Sobre a Terra imperfeita.
Vem na consolação,
lndene a gáudio e a pranto,
Tu, Padre, e à dextra mão
O Filho, Espírito Santo.
Acende a mente e a casa.
Os corações repletos
Serão de Ti, que amplias,
Como os grãos são completos
Já nas vagens esguias.
Das quais Uma, à luz núncia,
Para mais que anjos feita,
Abre a cruz da renúncia
Sobre a Terra imperfeita.
Vem na consolação,
lndene a gáudio e a pranto,
Tu, Padre, e à dextra mão
O Filho, Espírito Santo.
Mas o Espírito Santo esconde-se em seu mistério uno e trino. Nem a oferenda do Homem («Abre a cruz da renúncia / Sobre a Terra imperfeita») vale perante essa entidade ambígua que parece por vezes consubstanciar o Bem e o Mal. Por isso o autor reza, reza para que o Espírito o ilumine:
TERRA DE LUME
Rezo, dobrado, aos Anjos da manhã.
O céu é fosco e o coração sonoro
Como a chuva que cai na telha vã
E o verbo com que imploro.
Rezo, dobrado, aos Anjos da manhã.
O céu é fosco e o coração sonoro
Como a chuva que cai na telha vã
E o verbo com que imploro.
Vitorino Nemésio, O Pão e a Culpa, Lisboa, Bertrand, 1955.
José Martins Garcia, Vitorino Nemésio, a obra e o homem,
Lisboa, Editora Arcádia, 1978, pp. 170-174)
SUGESTÕES DE LEITURA
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/09/01/espirito.da.noite.aspx]
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