sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Natália Correia: A Feiticeira Cotovia


Natália Correia, por João de Sousa



A exposição itinerante Natália Correia: A Feiticeira Cotovia, organizada pela Direção Regional da Cultura e seus Serviços Externos, no ano em que se assinalou o nonagésimo aniversário do nascimento e vigésimo aniversário da morte de Natália Correia (Ponta Delgada, 1923 – Lisboa, 1993), é constituída por quatro grandes temas que visam colocar em evidência o polimorfismo da criação literária nataliana, cuja audácia lhe valeu a proscrição de várias obras pela Censura, em vigor no contexto do regime do Estado Novo (1933-1974).

Consagrada a esta figura incontornável das áreas cultural e política nacionais da segunda metade do século vinte, a presente exposição dá ênfase à ação cívica no empenhamento em várias causas humanitárias, entre as quais, a defesa da liberdade, a denúncia dos regimes autoritários, a causa feminina, a defesa do património nacional e da paz universal.

A exposição reúne um conjunto de quadros pintados por Natália Correia e objetos pessoais, entre vários outros documentos inéditos, onde o destaque incide nos relatórios dos censores às obras proscritas durante o Estado Novo. É igualmente de realçar a integração do vídeo da estreia nacional, em 2005, no Teatro Municipal Mirita Casimiro, da peça inédita Auto do Solstício do Inverno, encenada pelo Teatro Experimental de Cascais, sob a direção do encenador Carlos Avilez.
Coordenação de Sílvia Massa.
http://www.culturacores.azores.gov.pt/agendaNovo/default.aspx?id=3257
http://www.culturacores.azores.gov.pt/agendaNovo/default.aspx?id=4548

Exposição "Natália Correia a feiticeira cotovia"



Esta mostra, organizada pelo Governo dos Açores no âmbito das comemorações regionais do 90.º aniversário de nascimento e 20.º da morte da grande escritora açoriana, foi inaugurada na Academia da Juventude, na Praia da Vitória, a 13 de setembro de 2013, dia do aniversário de Natália Correia.








          
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 Um retrato de Natália Correia”, Ana Maria Pacheco do Nascimento. Angra do Heroísmo, Instituto Açoriano de Cultura, Atlântida - Revista de Cultura, vol. LVIII, 2013.

 Reportagem da RTP Açores sobre a exposição "Natália Correia: a feiticeira cotovia". URL: http://videos.sapo.pt/QBUNhzlZCwCVV7nGa2PK, 2013-09-16.


S.O.S.! S.O.S.! (José Gomes Ferreira)

  
             
          
CAFÉ
1945-1946-1947-1948
I
       
Quem foi o arquitecto,
que fez este Café?
tão longe da Natureza 
e tantos homens de pé?

Criado: põe esta gente na rua!
E abre um buraco no tecto
que eu quero ver a lua.
           
LIX
              
Todas as noites toca um telefone na Lua.

Sou eu, sou eu a marcar o número automático dos poetas de hoje
para gritar cá de baixo em código de astros:

Está lá? Está lá? Aqui Terra, zero, zero, zero, zero, zero.
S.O.S.! Fome, ódio de mil patas, tiranos com cutelos de cinzas,
bandeiras de pele humana, olhos furados de cardos,
mortos que só vêem o céu através dos caminhos das raízes
‑ e as mães a baterem nos filhos
para lhes ensinarem a instrução primária das lágrimas.

Aqui escravos, preguiça, azorragues de chumbo derretido,
exportação de tédio dos palácios dos ricos, carregamentos de bocejos,
suor em latas para discursos de demagogos,
mordaças com restos de bocas de cadáveres,
fúria de túmulos, guerra, raptos, incestos, automóveis imbecis,
saques, mandíbulas nos olhos a roerem o azul
‑ e os dedos de súbito de ferro-em-brasa nos seios das mulheres,
lodo de sol aparente
que continuam a ser deusas nos jantares de cerimónia
com os colos luzidios das horas empertigadas.

Aqui planeta zero, zero, zero, nada, torres de musgo,
punhais a rasgarem noites em vez de chagas,
países de arame farpado, vulcões de sangue,
batalhas trespassadas do frio dos esqueletos concretos
‑ e ainda por cima a carne das mulheres só é real um momento,
um momento apenas
e em vão tentamos fixá-la com um sopro de frio
no rasto deste defunto com um caixão às costas
cheio de corações vivos.
S.
O.S.! S.O.S.!

Fantasmas de todos os planetas! Fantasmas de todos os planetas!
Saltai em pára-quedas no silêncio que há por dentro do silêncio
e vinde salvar-nos!

Vinde salvar os homens
para aqui abandonados ao pesadelo de si mesmos,
só a serem homens,
homens apenas,
homens sempre,
de manhã até à noite,
semi-homens,
infra-homens,
super-homens,
ex-homens...

E fartos, fartos, fartos, fartos, fartos, fartos
desta desistência
de já nem quererem ser deuses!

Nem de transformarem os cavalos em relâmpagos!
               
José Gomes Ferreira, Poesia III
Portugália Editora, 1971 (4ª edição), pp. 135, 193-194
                 
              
ORIENTAÇÃO DE LEITURA
                
Atenta no poema n.º «LIX» da série «Café». As perguntas que se seguem dizem respeito ao segmento textual desde «S.O.S.! S.O.S.!» até «Nem de transformarem os cavalos em relâmpagos!».
1. O excerto inicia-se com um apelo repetido.
1.1. Identifica o(s) interlocutor(es).
1.2. Que Ihe(s) é solicitado?
2. «para aqui abandonados ao pesadelo de si mesmos».
2.1. Segundo o sujeito poético, qual é o pesadelo dos homens?
3. Explica o sentido de: «semi-homens» e «infra-homens».
4. «E fartos, fartos, fartos, fartos, fartos, fartos / desta desistência / de já nem quererem ser deuses!»
4.1 Interpreta a repetição do adjetivo «fartos».
4.2 Na tua opinião, os homens já desistiram de querer ser deuses («de já nem quererem ser deuses»? Fundamenta a tua resposta.
5. Parece-te possível que os homens transformem «os cavalos em relâmpagos»? Justifica.
6. Apresenta uma interpretação para a mancha gráfica do excerto.
7. O excerto começa por uma frase sugestiva: «S.O.S.! S.O.S.!» Justifica a afirmação.
               
Adaptado de Página Seguinte. Português 10º Ano, Filomena Alves e Graça Moura, Lisboa, Texto Editores, 2007.
            
            
JOSÉ GOMES FERREIRA (1900-1985)
UMA TESTEMUNHA PARTICIPANTE DO SÉCULO XX
              
José Gomes Ferreira nasceu no Porto em 1900. Embora tivesse conhecido o lançamento de Orfeu Presença e consequente manifestação dos dois momentos do modernismo aristocrático, como vimos, o poeta não se sente solicitado por ele e vai realizar-se, a seu tempo, seguindo outros rumos. Poesia (de 1948), Poesia II (de 1950)e os mais volumes da sua obra em verso surgem em plena fase da maturidade do poeta que assim se exprime em 1931, ao dar início à sua carreira poética: «... de repente, em 8 de Maio, às dez horas da noite... escrevi de jorro e sem esforço a minha primeira cristalização de poesia autêntica, com a sensação de quem abria uma porta secreta para uma zona interdita de riqueza confusa... ». Uma data histórica, sem dúvida, para o poeta e para a literatura portuguesa, pelo que de superiormente belo tem sabido encontrar na tal riqueza confusa de que atrás se falou.
É com a geração neorrealista que o poeta sintoniza, embora confesse o sortilégio que nele exercia o velho Gomes Leal que encontrava, por vezes, nos seus passeios com o Pai (A Memória das Palavras) e se sinta na sua poesia a presença de João de Deus e, principalmente, de Raul Brandão ‑ «o meu mestre secreto», como declara. Mas pende, de facto, para a linha da geração neorrealista do Novo Cancioneiro.
Literatura Prática (sécs. XIX-XX) 11º Ano, Lilaz Carriço, Porto Ed., 1986 (4ª ed.), p. 510.
            
            
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 Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro

  
                      

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/09/13/S.O.S.aspx]

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

DOMINGO (Manuel da Fonseca)

 Susana Monteiro, “Manuel da Fonseca”, in Diário do Alentejo. Prémio Stuart de Desenho de Imprensa na categoria de Ilustração, 2011.
Susana Monteiro, “Manuel da Fonseca”, in Diário do Alentejo.
Prémio Stuart de Desenho de Imprensa na categoria de Ilustração, 2011.
           
           
DOMINGO

Quando chega domingo,
faço tenção de todas as coisas mais belas
que um homem pode fazer na vida.

Há quem vá para o pé das águas
deitar-se na areia e não pensar...
E há os que vão para o campo
cheios de grandes sentimentos bucólicos
porque leram, de véspera, no boletim do jornal:
«Bom tempo para amanhã»...
Mas uma maioria sai para as ruas pedindo,
pois nesse dia
aqueles que passeiam com a mulher e os filhos
são mais generosos.
Um rapaz que era pintor
não disse nada a ninguém
e escolheu o domingo para se matar.
Ainda hoje a família e os amigos
andam pensando porque seria.
Só não relacionam que se matou num domingo!
Mariazinha Santos
(aquela que um dia se quis entregar,
que era o que a família desejava,
para que o seu futuro ficasse resolvido),
Mariazinha Santos
quando chega domingo,
vai com uma amiga para o cinema.
Deixa que lhe apalpem as coxas
e abafa os suspiros mordendo um lencinho que sua mãe lhe bordou,
quando ela era ainda muito menina...
Para eu contar isto
é que conheço todas as horas que fazem um dia de domingo!
À hora negra das noites frias e longas
sei duma hora numa escada
onde uma velha põe sua neta
e vem sorrir aos homens que passam!
E a costureirinha mais honesta que eu namorei
vendeu a virgindade num domingo
‑ porque é o dia em que estão fechadas as casas de penhores!

Há mais amargura nisto
que em toda a História das Guerras.
Partindo deste princípio,
que os economistas desconhecem ou fingem desconhecer,
eu podia destruir esta civilização capitalista, que inventou o domingo.
E esta era uma das coisas mais belas
que um homem podia fazer na vida!

Então,
todas as raparigas amariam no tempo próprio
e tudo seria natural
sem mendigos nas ruas nem casas de penhores...

Penso isto, e vou a grandes passadas...
E um domingo parei numa praça
e pus-me a gritar o que sentia,
mas todos acharam estranhos os meus modo
se estranha a minha voz...
Mariazinha Santos foi para o cinema
e outras menearam as ancas
‑ ao sol
como num ritual consagrado a um deus! ‑
até chegar o homem bem-amado entre todos
com uma nota de cem na mão estendida...
Venha a miséria maior que todas
secar o último restolho de moral que em mim resta;
e eu fique rude como o deserto
e agreste como o recorte das altas serras;
venha a ânsia do peito para os braços!
E vou a grandes passadas
como um louco maior que a sua loucura...
O rapaz que era pintor
aconchegou-se sobre a linha férrea
para que a morte o desfigurasse
e o seu corpo anónimo fosse uma bandeira trágica
de revolta contra o mundo.
Mas como o rosto lhe estava intacto
vai a família ao necrotério e ficou aterrada!
Conheci-o numa noite de bebedeira
e acho tudo aquilo natural.
A costureirinha que eu namorei
deixava-se ir para as ruas escuras
sem nenhum receio.
Uma vez que chovia até entrámos numa escada.
Somente sequer um beijo trocámos...
E isto porque no momento próprio
olhava para mim com um propósito tão sereno
que eu, que dela só desejava o corpo bom feito,
me punha a observar o outro aspecto do seu rosto,
que era aquela serenidade
de pessoa que tem a vida cheia e inteira.
No entanto, ela nunca pôs obstáculo
que nesse instante as minhas mãos segurassem as suas.
Hoje encontramo-nos aí pelos cafés...
(ela está sempre com sujeitos decentes)
e quando nos fitamos nos olhos,
bem lá no fundo dos olhos,
eu que sou homem nascido
para fazer as coisas mais heróicas da vida
viro a cabeça para o lado e digo:
‑ rapaz, traz-me um café...
O meu amigo, que era pintor,
contou-me numa noite de bebedeira:
‑ Olha,
quando chega domingo,
não há nada melhor que ir para o futebol...
E como os olhos se me enevoassem de água,
continuou com uma voz
que deve ser igual à que se ouve nos sonhos:
‑ ... no entanto, conheço um homem
que ia para a beira do rio
e passava um dia inteirinho de domingo
segurando uma cana donde caia um fio para a água...
... um dia pescou um peixe,
e nunca mais lá voltou...
O pior é pensar:
que hei-de fazer hoje, que toda a gente anda alegre
como se fosse uma festa?... ‑
O rapaz que era pintor sabia uma ciência rara,
tão rara e certa e maravilhosa
que deslumbrado se matou.

Pago o café e saio a grandes passadas.
Hoje e depois e todos os dias que vierem,
amo a vida mais e mais
que aqueles que sabem que vão morrer amanhã!
Mariazinha Santos,
que vá para o cinema morder o lencinho que sua mãe lhe bordou...
E os senhores serenos, acompanhados da mulher e dos filhos,
que parem ao sol
e joguem um tostão na mão dos pedintes...
E a menina das horas longas e frias
continue pela mão de sua avó...
E tu, que só andas com cavalheiros decentes,
ó costureirinha honesta que eu namorei um dia,
fita-me bem no fundo dos olhos,
fita-me bem no fundo dos olhos!

Então,
virá a miséria maior que todas
secar o último restolho de moral que em mim resta;
e eu ficarei rude como o deserto
e agreste como o recorte das altas serras:
e virá a ânsia do peito para os braços!
… … … … … … … … … … … … … … … … … … … …
Domingo que vem,
eu vou fazer as coisas mais belas
que um homem pode fazer na vida!
                    
Manuel da Fonseca, Rosa dos Ventos, 1940
             
              
Audição do poema «Domingo» de Manuel da Fonseca

              
              
Analise o poema «Domingo» de Manuel da Fonseca, procurando seguir estas linhas de leitura:
  • a linguagem utilizada pelo poeta, em especial, o uso de símbolos como forma de revelar aspetos da realidade social e política de Portugal;

  • as temáticas presentes na poesia, que comprovam o comprometimento do poeta com a vida e a sua luta contra todas as formas de cercear e privar o ser humano de uma vida digna e em liberdade;

  • o espaço alentejano retratado pelo poeta, que revela tanto a beleza dessa região quanto as relações sociais, económicas e políticas que se estabelecem e tornam o Alentejo povoado por uma gente sofrida e injustiçada;

  • a presença de personagens no poema de Manuel da Fonseca que evidenciam as peculiaridades do homem alentejano e, eventualmente, as injustiças sociais sofridas por homens que habitualmente não tem direito a voz.
            
                

PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE LER:
           
 Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Manuel da Fonseca, por José Carreiro. In: Folha de Poesia, 2018-05-04, disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/manuel-da-fonseca.html



[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/09/12/domingo.aspx]

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

OLHAI O VAGABUNDO QUE NADA TEM (Manuel da Fonseca)


  «Ação de Graças do Vagabundo», Maxfield Parrish
            
                 
SOL DO MENDIGO

Olhai o vagabundo que nada tem
e leva o Sol na algibeira!
Quando a noite vem
pendura o Sol na beira dum valado
e dorme toda a noite à soalheira...
Pela manhã acorda tonto de luz.
Vai ao povoado
e grita:
- Quem me roubou o Sol que vai tão alto?
E uns senhores muito sérios
rosnam:
- Que grande bebedeira!

E só à noite se cala o pobre.
Atira-se para o lado,
dorme, dorme...
                
Manuel da Fonseca, Rosa dos Ventos, 1940
Poema inserido na parte “O vagabundo e outros motivos alentejanos”
            

             


O VAGABUNDO E OUTROS MOTIVOS ALENTEJANOSUMA LEITURA DE «SOL DO MENDIGO»
            
Observamos nos versos desse poema uma constante musicalidade nas rimas (algibeira! / soalheira... / bebedeira!, tem, vem), além do uso de uma expressiva pontuação que contribui para reforçar a entonação, fazendo com que os versos terminem em um tom elevado e marcante, ampliando assim a sonoridade do poema. Nota-se também a utilização da letra maiúscula na escrita do vocábulo “Sol”. Isso se explica pela simbologia que este vocábulo representa para o personagem do poema: o vagabundo que sente amparado pela presença do sol. Nesse sentido, o sol pode ser considerado uma entidade protetora do vagabundo, que vive ao relento, enfrentando todas as consequências de viver sem rumo e sem acolhimentos.
Assim, apesar do vagabundo ser aquele que está destituído de bens materiais e morais, a presença do sol o torna um ser diferenciado dentro do poema tornando-o uma figura iluminada, poética, como se percebe na utilização das metáforas (leva o Sol na algibeira!, pendura o Sol na beira dum valado, acorda tonto de luz). O destaque a esse personagem se faz necessário também por ser uma figura desprezada pela sociedade, situação que fica bem clara pela forma como as outras pessoas o veem, como um bêbado, como se nota nesses versos:
Vai ao povoado
e grita:
- Quem me roubou o Sol que vai tão alto?
E uns senhores muito sérios
rosnam:
- Que grande bebedeira!
            
Ao colocar em relevo a atitude dos senhores ao ouvir o vagabundo, ou seja, o verbo “rosnam”, o poeta deixa evidente o desprezo e o deboche que cercam essa figura. É por isso que o poeta tenta exaltar, engrandecer essa figura e inicia o poema com um verbo no imperativo: “olhai”, isto é, o poeta pede para que a sociedade não tenha um olhar de indiferença, mas sim um olhar atento, de cuidado para com o ser humano.
O vagabundo de que fala o poeta Manuel da Fonseca é o homem alentejano, que sai de terra em terra em busca de trabalho e de pão. Nada tem de seu, apenas a força dos seus braços para trabalhar e o sol que ele “carrega na algibeira” para se aquecer nos longos e desamparados tempos de desemprego, de fome e de ira. E por trazer o sol na algibeira, o vagabundo traz também consigo a sua veia poética aquecida que se revela no seu grito: “Quem me roubou o Sol que vai alto?”.
                 
Dissertação de mestrado de Rosilda de Moraes Bergamasco, 
Universidade Estadual de Maringá, 2012, pp. 113-114.
             
              
OLHAI O VAGABUNDO QUE NADA TEM E LEVA O SOL NA ALGIBEIRA
            
Alongados sobre a planície do Alentejo, os poemas de Manuel da Fonseca apresentam uma característica muito peculiar: estão rodeados de personagens. Segundo Fernando Mendonça (A literatura portuguesa no século XX. São Paulo: HUCITEC, 1973, p. 113), os poemas têm “protagonistas – personagens em busca de romance”. Isso porque, vários personagens aparecem depois como heróis dos seus contos, como por exemplo:
«Maria Campaniça, um dos poemas de Rosa dos Ventos, é a protagonista de um dos contos de Aldeia Nova, tal como “o Jacinto Baleizão, que foi a África”, “o bêbado do Zé Limão”, ou Zé Gaio, que acreditou que a guerra salvaria o mundo, em Rosa dos Ventos, e acabou perdendo “o cheiro da casa”, em Aldeia Nova»(MENDONÇA, 1973, p. 113).
          
Desse modo, pode-se considerar que na produção literária de Manuel da Fonseca não é possível encontrar uma efetiva separação entre a sua poesia e a sua prosa de ficção, pois elas interpenetram-se, tornando-se integradas. Essa característica se revela tanto no aparecimento dos personagens dos poemas na prosa quanto na própria utilização de uma estratégia discursiva típica da narração – a presença de personagens – nos poemas. Estratégia essa que se configura como meio de expressão ideológica e é explorada pelo poeta desde Rosa dos Ventos e em Planície se torna ainda mais frequente.
Portanto, os personagens que passam pelas searas e charnecas da planície alentejana são campaniços, mendigos, vagabundos, malteses que não são meras figuras regionais, mas sim homens em conflito com um espaço físico e social adverso, como observa Fernando Mendonça (O romance português contemporâneo. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis, 1966, p. 108) que “as personagens do Autor de Rosa dos Ventos não são de caráter regionalista: são homens nascidos e torturados numa terra madrasta, que lhes insufla a coragem e a decisão das castas em luta permanente.”
Na imensidão dos campos alentejanos vivem homens perseguidos pelas chuvas ou pelas secas intermináveis, sofridos com a miséria que lhes foi imposta, explorados pelas forças opressoras do latifúndio e do Estado. Uma gente rústica, árida e desolada, com seus sonhos insatisfeitos, isolados pela miséria, pela ignorância, por problemas de relação humana e pela precariedade de comunicação.
Homens que, apesar de todas as dificuldades, todas as provações e privações por quais são obrigados a passar, conservam uma dignidade e uma força que tornam o homem alentejano um ser humano digno de exaltação, como observa Miguel Torga(Portugal. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1996, p. 126) quando fala sobre o Alentejo e o homem alentejano:
«É preciso ter uma grande dignidade humana, uma certeza em si muito profunda, para usar uma casaca de pele de ovelha com o garbo dum embaixador.
Foi a terra alentejana que fez o homem alentejano, e eu quero-lhe por isso. Porque o não degradou, proibindo-o de falar com alguém de chapéu na mão.»
              
Nota-se nesse trecho que as características do homem alentejano estão intrinsecamente ligadas ao espaço em que está inserido, principalmente pelo isolamento que essa região proporciona em relação às outras regiões do país. É esse homem que por mais simples que seja “leva o Sol na algibeira” e não se deixa curvar diante das dificuldades enfrentadas que Manuel da Fonseca procura retratar e enobrecer nos seus poemas. Além disso, o poeta procura retratar a vida pobre dos trabalhadores rurais e das classes marginalizadas das planícies alentejanas, de forma a realçar, em especial, a sua luta contra as injustiças.
Com o propósito de denunciar as injustiças sofridas pelas classes mais oprimidas, o poeta privilegia o emprego da personagem tipo, ou seja, uma subcategoria da personagem que pode ser entendida como
«personagem-síntese entre o individual e o coletivo, entre o concreto e o abstrato, tendo em vista o intuito de ilustrar de uma forma representativa certas dominantes (profissionais, psicológicas, culturais, econômicas, etc.) do universo diegético em que se desenrola a ação, em conexão com o mundo real com que estabelece uma relação de índole mimética» (REIS, Carlos e LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 1988., p. 223).
             
Por isso, a personagem tipo, de acordo com Lukács (apud REIS e LOPES, 1988, p. 223), é uma síntese que reúne ao mesmo tempo o universal e o particular e nela, pelo seu caráter dialético, “convergem e reencontram-se todos os elementos determinantes, humana e socialmente essenciais, de um período histórico”. Portanto, através da criação de tipos torna-se possível mostrar “esses elementos no seu grau mais alto de desenvolvimento, na revelação extrema das possibilidades que neles se escondem, nessa representação extrema dos extremos que concretiza ao mesmo tempo o cume e os limites da totalidade do homem e do período”. Considerando tais características da personagem tipo nota-se que a preferência de Manuel da Fonseca por ela revela muitos aspectos relevantes da sua produção poética:
«Para se ver como em Manuel da Fonseca a predileção pelo tipo não é meramente pontual, basta assinalar que já em Rosa dos Ventos, ele aparecia com alguma insistência: aí, o vagabundo, o mendigo e o maltês mais não fazem do que anunciar a projeção futura de um procedimento de representação literária não só dotado de inegáveis virtualidades de expressão ideológica, mas também capaz de apontar para a pertinência de estratégias discursivas de pendor narrativo em que essas virtualidades serão amplamente exploradas. Em Planície, esta dinâmica de amadurecimento estético avança consideravelmente» (Carlos Reis. O discurso ideológico do neo-realismo português. Lisboa: Almedina, 1983.p. 459).
            
Nesse sentido, as personagens prediletas dos poemas de Manuel da Fonseca são figuras marginais, como o vagabundo, o mendigo e o maltês que representam ao mesmo tempo a impossibilidade de viver uma vida plena, por serem vítimas da sociedade e a revolta que nasce em decorrência das condições de vida que são submetidas. Por essa razão essas personagens vivem em constante conflito com a sociedade que as cerca, fazendo com que se elevem, “sozinhas, armadas apenas com a força do seu amor ou da sua raiva, dispostas a tudo” (Mário Dionísio, Prefácio a Obra Poéticade Manuel da Fonseca, Lisboa, Editorial Caminho, 1984, 7ª ed. revista pelo autor, p.35).
Ou seja, a busca insaciável do poeta por uma imagem ideal de vida, de liberdade se relaciona inteiramente com o partido que este toma por figuras que por alguma razão e de algum modo estão à margem da sociedade e que sempre tiveram suas presenças esquecidas e suas vozes caladas. Por isso, colocar em relevo essas personagens e dar voz a elas representa ao mesmo tempo fazer justiça e contribuir para que as transformações no campo social se efetivem. Assim, a admiração que o poeta sente por essas figuras faz com elas sejam retratadas em seus poemas de forma a enobrecer as suas atitudes, como pode ser percebido nos versos do poema “Sol do mendigo, que é de um lirismo ímpar.
                 
Dissertação de mestrado de Rosilda de Moraes Bergamasco, 
Universidade Estadual de Maringá, 2012, pp. 110-113.
             
             
PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE LER:
           
 Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Manuel da Fonseca, por José Carreiro. In: Folha de Poesia, 2018-05-04, disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/manuel-da-fonseca.html

 Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/09/11/sol.do.mendigo.aspx]