terça-feira, 1 de outubro de 2013

QUANDO ME DEREM POR MORTA, DE LÁGRIMAS NEM UMA PINGA. (Natália Correia)



          
            
          








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O LIVRO DOS MORTOS

Quando me derem por morta
de lágrimas nem uma pinga:
um trevo de quatro folhas
tenho debaixo da língua.

Está em regra o passaporte.
Venha o Limite da idade.
Não me chorem, não é morte
é só invisibilidade.

Túnel, poço ou espiral
suga a alma. Fica o corpo.
Vai-se a cópia sideral
e isso não é estar morto.

É assombro e estranhez
por não ser o céu ainda.
Há que morrer outra vez.
Demanda de Deus não finda.

Já noutro modo de ser,
Eterna, é contudo breve
a vida! Sempre a ascender
fica cada vez mais leve.

Até que – é esse o endereço –
já não é precisa a alma.
Unido o fim ao começo
Espírito encontra a morada.

De lembrar cessa o sentido
onde está tudo na Glória.
Por isso pelo caminho
foi-se perdendo a memória.

Por favor, em funeral
não me ponham pranto à volta.
Isso do choro faz mal
a quem do peso se solta.

Aqui parecendo cadáver,
indemne à carne, não morta,
já em frente vou na nave
que eu tenho um trevo na boca.

E se a sombra me queimarem,
bem hajam. Não sou católica.
Mas se missa me rezarem
pela alma, não me importa.
Natália Correia, O Dilúvio e a PombaLisboa, Edições Dom Quixote, 1979
       
       
       
O livro de poemas O Dilúvio e a Pomba está dividido em três partes: a primeira com o título “Onde o mar, com paredes de vidro, rodeia o centro inviolável: a Ilha”; a segunda “A Árvore da Vida”; e a terceira “O Espírito é tão real como uma árvore”. É nesta que se situa o poema “O Livro dos Mortos” cujos versos testemunham a índole da autora, a sua crença e a afirmação do seu caráter.
       
No poema apela-se ao conhecimento oculto: não se deve chorar pela pessoa que partiu, primeiro porque a morte não existe, morrer “é só invisibilidade”, a pessoa continua. Aliás, já o Fernando Pessoa dizia no Cancioneiro: “A morte é a curva da estrada / morrer é só não ser visto.” Segundo, quando ela diz “Não me chorem” (v. 7), “não me ponham pranto à volta. / Isso de choro faz mal / a quem do peso se solta” (vv. 30-32) refere-se, na interpretação de António Macedo, à grande perturbação que se provoca à pessoa que partiu, pois esta precisa de estar três dias e meio numa posição horizontal, numa dimensão suprafísica, em estado descanso para proceder a um certo tipo de trabalho antes de partir para outros túneis mais luminosos e elevados ‑ “Sempre a ascender”, diz a poeta no verso 19. Desde a primeira estrofe, com “um trevo de quatro folhas […] debaixo da língua” (clara referência simbólica ao costume grego decolocar uma moeda, chamada óbolo, sob a língua do cadáver, para pagar Caronte pela viagem)até à sexta estrofe, verifica-se as fases por que a poeta acredita vir a passar, uma vez ultrapassado o “Limite de idade.”
       
No livro Instruções Iniciáticas ‑ Ensaios Espirituais (Hugin Editores, 1999)António Macedo chama-a de “sacerdotisa tão pouco descoberta, ainda por encontrar, do enigmático «século XX português»”. E acrescenta, no documentário de 1999 “A Senhora da Rosa (Natália Correia)” realizado por Teresa Tomé para a RTP-Açores: “a Natália Correia era uma sacerdotisa de um sagrado que hoje as pessoas não entendem, porque não é um paganismo, não é um cristianismo… ou talvez seja um certo tipo de cristianismo. Ela tinha uma veneração muito grande pelo Espírito Santo.”
             
“Natália sentia que era chegada a era do Espírito, que deveria seguir-se à do Pai e à do Filho. Natália não era católica mas não desdenhava da religião pois escreveu num dos seus mais belos poemas [“O Livro dos Mortos”, vv. 38-40] que não desdenhava duma missa rezada por sua alma. Aliás, sempre me pareceu que o seu culto do esotérico era uma janela aberta onde buscou sem parar o mundo espiritual e tentou encontrar sempre as suas fontes últimas buscando a religião perfeita.” (Carlos Melo Bento, “Para uma biografia de Natália Correia: o Reino dos Transparentes2004-07-16)
         
“Afrodite Ressurrecta” é o poema que aparece na sequência de “O Livro dos Mortos”.
           
       
       
AFRODITE RESSURRECTA

Da espiritual roseira vos cito a Citereia
que nos braços de Adónis cobre a terra de flores.
Cereal e celeste. Não a Vénus sereia
que em tropos gregos passa por ter muitos amores.

A de leite colmada. De amor, a mama cheia.
Universal obreira de aromas e sabores,
que pelos argonautas, nos filtros de Medeia,
troca luas malignas por honestos lavores.

Da Grécia ao tredo Lácio degradada em Pandemos
em mirtos a resgato de cultos obscenos.
Do Espírito o plectro fere de novo a onda.

Venusta sai da concha e para todos brilha
em divas formas Deus. A carne é maravilha.
É-lhe devido o cisne. Mas sobretudo a pomba.
Natália Correia, O Dilúvio e a PombaLisboa, Edições Dom Quixote, 1979
            



Amigos da escritora libertam uma pomba branca, 
durante o funeral de Natália Correia, 
em Lisboa a 18 de Março de 1993.
   
            

       
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 A Tripla Deusa: tradição cristã.
       
A saudosa Natália Correia, com a exuberância que lhe era peculiar, e como boa açoriana e simultaneamente sacerdotisa do ancestral-renovado culto feminino, não poucas vezes dissertou — pelo menos no «Botequim», tanto quanto me recordo, e lhe ouvi —, sobre a transcendência Paraclética do Espírito de Verdade de Deus, que ela insistia em designar por Espírita Santa!
       
Está certo: a Espírita Santa é a POMBA — que em hebraico se diz yonah e que a tradição hermética, fazendo tábua rasa das rigorosas pesquisas etimológico-científicas da Linguística, considera relacionada com a yin chinesa (princípio feminino, complementar do princípio masculino yang) e a yoni indiana (órgão sexual feminino, complementar do órgão sexual masculino linga). Trata-se duma «Cabala fonética» de que Fulcanelli foi um dos principais impulsionadores, e que, não obstante a sua rejeição por parte da linguística histórica, revela e torna «transparentes» os mais subtis e inesperados aspetos do REAL.
       
Vimos como a tradição helénica associava o polo feminino da Divindade à Terra e ao elemento Água, e como a tradição judaica associava o polo feminino da Divindade ao Céu e ao elemento Ar .
       
Por sua vez a tradição cristã, epítome e sequência das duas, congloba no polo feminino da Divindade os elementos Ar e Água, juntamente com o Céu e a Terra, do seguinte modo:
       
• Pomba  — Espírito Santo/Inspiração Paraclética: Ar (Mente Superior), e Céu; Virgem-Mãe —Associação complementar e indissolúvel entre o Pai Celestial e a Mãe Terrenal: Céu, e Terra;
• Sophia — Água (Coração, Desejos Sublimados), e Terra.
       
1. Pomba  — O primeiro aspeto  — POMBA  — surge pela primeira vez, no Novo Testamento, no exato momento do Batismo de Jesus, e simboliza o divino Espírito Santo, que João designa por «Paracleto». O simbolismo da pomba associado ao princípio feminino da Divindade já vem de longe, e perdurou: tanto o encontramos na antiga Mesopotâmia e na Ásia Menor, em que o Princípio Feminino visível e invisível, substância e essência, era reverenciado nos templos sob a forma duma pomba, tal como continua a figurar, muito mais tarde, como por exemplo num tratado gnóstico do século III d. C., Pistis Sophia, onde vemos logo nas primeiras linhas do capítulo 1 que «o Mistério anterior a todos os Mistérios é o Pai sob a forma duma Pomba». Lemos no capítulo 8 do Génesis como Noé enviou um corvo (símbolo da negra natureza de desejos) e uma pomba (símbolo do luminoso «corpo anímico») para saber se as terras já tinham secado após o dilúvio. O corvo limitou-se a voar para cá e para lá até que as águas secaram, mas a  pomba, à segunda tentativa, trouxe um raminho de oliveira (Génesis 8, 6 - 11). A oliveira, de tradição sagrada muito antiga —a oliveira e o azeite, atributos da deusa Atena, foram as suas dádivas sagradas à Ática  —, associa- se ao ministério de Cristo e ao bálsamo da cura pelo espírito. Um dos motivos decorativos das colunas da catedral de S. Pedro, em Roma, é uma pomba com um raminho de oliveira: — o Espírito Santo  com uma oferta de regeneração e cura. Este Espírito  — ru’ah —, manifestação do polo feminino da Divindade, conduz-nos ao segundo aspeto aludido acima:
       
2. Virgem/Mãe — Esse segundo aspeto  — VIRGEM/MÃE  —, recuperado desde muito cedo pela Igreja na sua Teologia Mariânica, é uma tónica recorrente num curioso manuscrito que o estudioso Edmond Bordeaux  Székely diz ter encontrado nos Arquivos secretos do Vaticano e que traduziu do original aramaico para francês (1928). A respetiva edição policopiada deu origem à versão inglesa que foi publicada em 1937, em Londres, com o título The Essene Gospel of Peace. A ideia de Virgem/Mãe surge nesse apócrifo naturalmente associada à Terra, alternadamente Virgem e Mãe, e embora o texto  — que é um longo discurso de Jesus em resposta a algumas questões que lhe são apresentadas pelo discípulos  — não deixe de se referir, com frequência, ao «Heavenly Father» (Pai Celestial), insiste muito mais na reverência, amor, fidelidade e veneração que se deve à «Earthly Mother» (Mãe Terrenal), que nos doou amorosamente tudo de quanto o nosso corpo é feito e tudo o que possui. Em dado passo diz Jesus:
       
«O vosso Pai Celestial é amor.
A vossa Mãe Terrenal é amor.
O Filho do Homem é amor.
       
É pelo amor que o Pai Celestial e a Mãe Terrenal e o Filho do Homem se tornam um. Porque o espírito do Filho do Homem foi criado do espírito do Pai Celestial, e o seu corpo, do corpo da Mãe Terrenal. Tornai-vos, pois, perfeitos, como são perfeitos o espírito do vosso Pai Celestial e o corpo da vossa Mãe Terrenal».
       
Registe- se a relevância atribuída ao AMOR que «torna UM» não só o Pai e o Filho («Eu e o Pai somos um»!) mas também a Mãe.
       
Não é só neste Evangelho essénio que o polo feminino da Divindade se identifica com a Mãe, incluso a própria Mãe mistérica de Jesus: outros manuscritos antigos também o atestam. Por exemplo, há um curioso indício transmitido pelo Evangelho dito dos Hebreus, usado por algumas comunidades iniciáticas cristãs como os Nazarenos e os Ebionitas, e do qual só restam fragmentos que nos foram conservados em citações feitas pelos Padres da Igreja. Supõe- se que tenha tido a sua origem nos princípios do século II d. C. Segundo o testemunho de Jerónimo (Dial. adversus pelagianos, III, 2) teria sido originalmente escrito em aramaico, e nele se afirma que o Espírito Santo, além de ser feminino — ru’ah em hebraico é feminino —, é, ainda por cima, a Mãe de Jesus!
       
«Há pouco a minha mãe, o Espírito Santo [gr. ‘agion pneuma] tomou me por um dos cabelos e levou-me ao monte sublime do Tabor…» (É um paralelo de Mateus 4, 1 e vem citado no Comentário ao Evangelho de João, de Orígenes: In Io. 2, 6).
       
Ou, noutra versão, que nos foi transmitida por Jerónimo no seu II Comentário sobre Miquéias (Comm. II in Mich.7, 6):
       
«Há pouco tomou-me a minha mãe, o Espírito Santo [lat. Sanctus Spiritus], por um dos meus cabelos…».
       
Jerónimo surpreende-se, pois a ser assim, «a alma, que é esposa do Verbo, tem por sogra o Espírito Santo»! («Et animam, quae sponsa sermonis est, habere socrum Sanctum Spiritum, qui apud Hebraeos genere dicitur feminino, ru’ah» — id., ibid.).
       
No Evangelho da Paz dos Essénios esta  ru’ah corresponde ao Espírito da Terra, perfeita e imaculada por todo o Amor que tem para doar.
       
No final do Livro Primeiro de  The Essene Gospel of Peace, Jesus ensina duas orações: uma, muito semelhante ao «Pai Nosso» que conhecemos, em veneração ao Pai Celestial; e outra em veneração à Mãe Terrenal e que é a seguinte:
       
«Mãe nossa que estás na Terra, santificado seja o teu nome. Venha a nós o teu reino e faça-se em nós a tua vontade, tal como em ti se faz. Tal como envias os teus anjos diariamente, envia-no-los a nós também. Perdoa os nossos pecados, tal como expiamos os pecados que cometemos contra ti. Não nos deixes cair na doença, mas liberta-nos de todo o mal, porque teus são a Terra, o corpo e a saúde. Ámen».
       
Eis-nos perante o mistério do Eterno Feminino corporizado na Terra Lucida, a Terra de Luz que um dia o ser humano reconstruirá (redescobrirá), redimido em Cristo, mediante o vínculo de fé na sagrada e irresistível união do Cristo e da Sophia.
       
Daqui passamos naturalmente ao terceiro aspeto referido acima:
       
3. Sophia  — O terceiro aspeto do polo feminino da Divindade na tradição mistérica cristã  — SOPHIA  — surge não só na continuidade do Antigo Testamento, sobretudo no Livro dos Provérbios e no Livro de Job, como vimos acima a propósito daHochmah («Sabedoria»), mas também num livro veterotestamentário que a tradição judaica considera apócrifo e que a tradição da Igreja aceitou como «deuterocanónico», redigido em grego cerca do ano 50 a. C.: o Livro da Sabedoria. Neste livro a Sabedoria personificada (Sophia) é tida como o agente da atividade divina no mundo, participando de certo modo da própria natureza divina. O livro foi composto como se o seu autor tivesse sido Salomão, que em dado passo diz:
       
«Rezei, e o entendimento foi - me dado; supliquei, e o Espírito da Sabedoria veio até mim. […] Amei-a mais do que à saúde ou à beleza, preferi-a à própria luz, porque o seu resplendor nunca fenece. Em sua companhia todos os bens vieram até mim, e as suas mãos trouxeram-me incalculáveis riquezas. De todas estas coisas me alegrei, porque foi a  Sabedoria  que as trouxe; mas eu ignorava ainda que ela fosse sua Mãe» (Sabedoria 7, 7.10- 12).
       
No tratado gnóstico a que fiz referência acima, Pistis Sophia, e que se supõe ter sido composto no século III d. C., Jesus ressuscitado faz revelações aos Seus discípulos sobre a queda e a redenção duma das emanações da Divindade, a  Sophia (ou PistisSophia: «Fé-Sabedoria»). Aqui a principal preocupação é saber quem finalmente será salvo. Os que se salvarem devem renunciar ao mundo e seguir a ética pura do amor e da compaixão, a fim de se identificarem com Jesus e se transformarem em raios da Luz Divina.
       
No Judaísmo  — sobretudo intertestamentário  — abundaram especulações filosófico-teológicas sobre a Sabedoria celestial (Hochmah, Sophia) uma entidade celeste ao lado de Deus que se apresenta à humanidade não só como mediadora da obra de criação mas também como mediadora do conhecimento de Deus. Ireneu Lugdunense, ou de Lião, apologeta e feroz anti - herético que floresceu na segunda metade do século II, resume o ponto de vista duma seita gnóstica do seu tempo observando que o homem-Jesus, nascido duma Virgem e o mais sábio, mais puro e mais justo de todos os seres humanos, foi escolhido para que, no momento do Batismo, nele descesse o Espírito  Crístico (o Cristo, o Ungido) acompanhado pela Sophia(«Sabedoria»), dando origem a Jesus - Cristo que a partir desse momento passou a fazer milagres, a curar, etc. (Adversus Haereses, I, 30, 12- 13).
       
No Novo Testamento, essa «Sabedoria de Deus» (Theoû Sophia) é-nos apresentada por Paulo do seguinte modo: «Sabedoria [gr.  Sophia], com efeito, falamos entre os iniciados [gr. teleiois]; não a sabedoria deste ciclo [gr. aiôn] nem dos príncipes deste ciclo condenados a perecer. Mas falamos antes da Sabedoria de Deu s em mistério [gr.  Theoû Sophia en mystêriô], a oculta, que Deus predestinou antes dos ciclos para glória nossa» (1 Coríntios 2, 6 - 7). A associação do princípio feminino  — Sophia  — ao Mistério da Iniciação é aqui acentuado por Paulo: quando ele usa o termo «mistério» não o faz no sentido eclesiástico e distanciador que a Igreja cunhou mais tarde, como por exemplo o «mistério» da Transubstanciação, mas no sentido de «mistérios iniciáticos» como era corrente no tempo de Paulo.
       
Por fim, a própria Igreja de Roma acabou por identificar a Virgem Maria, «Mãe de Deus», com a figura da Divina Sabedoria (Sophia), e, tal como na Cristologia mainstreamse descreve Jesus como uma «hipóstase» do Pai (um ente da mesma substância), também na Teologia mariológica acabou por prevalecer o conceito de que Maria tem a Sophia como sua «hipóstase»
                   
António de Macedo, “EU E O PAI SOMOS UM: O Eterno Feminino na Nova Religiosidade” in Artigos e ensaios
           
           




[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/10/01/o.livro.dos.mortos.aspx]

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

AI FLORES, AI FLORES DO VERDE PINO (D. Dinis)


              
             

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Ai flores, ai flores do verde pino,
se sabedes novas do meu amigo!
              Ai Deus, e u é?

Ai flores, ai flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado!
              Ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amigo,
aquel que mentiu do que pôs comigo!
              Ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amado,
aquel que mentiu do que mi 'á jurado!
              Ai Deus, e u é?

Vós me preguntades polo voss'amigo,
e eu bem vos digo que é san'e vivo:
              Ai Deus, e u é?

Vós me preguntades polo voss'amado,
e eu bem vos digo que é viv'e sano:
              Ai Deus, e u é?

E eu bem vos digo que é san'e vivo
E seera vosc'ant'o prazo saído:
              Ai Deus, e u é?

E eu bem vos digo que é viv'e sano
e seerá vosc'ant'o prazo passado:
              Ai Deus, e u é?


           
D. Dinis (CV 171, CBN 533)
           
              
Glossário:
v. 1 ‑ pino: pinheiro.
v. 3 – u é: onde está?
v. 8 ‑ do que pôs comigo: sobre aquilo que combinou comigo.
v. 14 ‑ sano: saudável, são.
v. 20 ‑ seera vosc’ant’o prazo saído: estará convosco antes de terminar o prazo.
           
           




           
           
VERSÕES MUSICAIS
                        

Originais
Desconhecidas

       
Contrafactum

Ai flores, ai flores do verde pino      versão audio disponível
Versão de José Augusto Alegria, Pedro Caldeira Cabral

Ay flores, Ay flores do verde pino 
Versão de José Augusto Alegria

Flores de verde pino      versão audio disponível
Versão de José Augusto Alegria, Mondeguinas - Tuna Feminina da Universidade de Coimbra
       
Composição/Recriação moderna

Ai flores de verde pino 
Versão de Maria de Lourdes Martins

Ai flores, ai flores, do verde pino       versão audio disponível
Versão de Victor Macedo Pinto

Ai flores! Ai flores!      versão audio disponível
Versão de Miguel Carneiro

Ai flores do verde pinho      versão audio disponível
Versão de Pedro Barroso

Ai, flores do verde pino      versão audio disponível
Versão de Amancio Prada

Flores do verde pino      versão audio disponível
Versão de Marta Dias

Ai flores do verde pinho      versão audio disponível
Versão de José Mário Branco

Ai, flores do verde pino 
Versão de José Carlos Godinho

Ay Deus, e hu é?      versão audio disponível
Versão de Barahúnda

Cantigas de Amigo: Ai flores 
Versão de Ivan Moody

Ai flores do verde pino      versão audio disponível
Versão de Miguel Carneiro, Choral Polyphonico João Rodrigues de Deus

Linhagem 
Versão de Eurico Carrapatoso

          


QUESTIONÁRIO INTERPRETATIVO SOBRE O POEMA
              
Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas aos itens.
1. Delimite as partes que compõem o texto, justificando a sua resposta.
2. A questão da fidelidade do «amigo» percorre a cantiga.
Explicite o modo como é tratada por cada uma das vozes presentes no texto.
3. Analise o papel desempenhado pelas «flores do verde pino».
4. Indique três características temáticas do poema que contribuem para a sua inserção no género das cantigas de amigo.
              
              
Cenários de resposta:
1. A estrutura bipartida da cantiga relaciona-se com o carácter dialógico da mesma, uma vez que, nas quatro primeiras estrofes (vv. 1-12), a donzela interroga a Natureza sobre o paradeiro do «amigo», e, nas quatro restantes estrofes (vv.13-24), «as flores do verde pino» respondem à sua interpelação.
2. O «amigo» é referido pela donzela como tendo mentido, faltando a um juramento (v. 11), ou a um compromisso (v. 8). A essa infidelidade, que é imaginada pela própria ânsia e saudade da donzela, é contraposta, pela voz atribuída às «flores do verde pino», uma atitude de fidelidade, pois, segundo essa voz afirma, ele voltará até mesmo antes do prazo combinado
3. A donzela sente temor pela sorte do «amigo», de quem não tem notícias, e cria um interlocutor fictício para desabafar. A esse confidente imaginado – símbolo do seu próprio amor – confessa a sua saudade e inquietação, e dele ouve a seguir o que tanto deseja ouvir: que o amigo está bem e que voltará em breve. Essa personificação benfazeja das «flores do verde pino» estabelece a comunhão da donzela com a Natureza.
4. Na resposta, podem ser indicadas, entre outras, [as] seguintes características:
– representação de um sujeito poético feminino, como falante e como ouvinte;
– lugar central dado à referência ao namorado («amigo», «amado»);
– expressão, por parte da donzela, do desejo de um encontro amoroso;
– interpelação da Natureza como confidente.
           
Exame Nacional do Ensino Secundário, Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de março, Prova Escrita de Literatura Portuguesa, 10.º e 11.º Anos de Escolaridade, Prova 734/1.ª Fase, Lisboa, Gabinete de Avaliação Educacional, 2009.
             
         
ANÁLISE DE UM POEMA MEDIEVAL
               
Elabore um comentário da composição, orientando-se pelos seguintes tópicos:
              
-          Apresentação (identificação; género; presença nos cancioneiros; autor)
-          Estrutura externa/ versificação;
-          Tema;
-          Assunto;
-          Estrutura interna;
-          Análise interpretativa;
-          Simbologia;
-          Dimensão histórico-cultural (coordenadas espacial e/ou temporal);
-          Conclusão.
         
          
Cenário de resposta:
        
«Ai flores, ai flores do verde pino» é uma cantiga de amigo da autoria de D. Dinis, presente nos cancioneiros da Vaticana e da Biblioteca Nacional com os números 171 e 568, respetivamente. 
Do ponto de vista formal, esta cantiga paralelística perfeita, dialogada, é constituída por oito coplas , cada copla tem um dístico de decassílabos graves (1ª parte) e hendecassílabos graves (2ª parte) de rima monórrima e um refrão monóstico pentassílabo agudo. O esquema rimático é: aaB. 
Nesta composição é abordado o tema da saudade; quanto ao assunto, cheia de saudade do seu amigo que se demora a menina interpela as flores, que a tranquilizam. 
Na primeira parte (coblas I a IV) a donzela traduz o seu estado de espírito e a saudade pelo amigo. Aqui, ela entra em diálogo caracterizando-se indiretamente como ansiosa («Se sabedes novas do meu amigo/amado», «Ai Deus, e u é?») e indicando que o namorado está ausente; zangada («Aquel que mentiu do que pôs comigo/mh’á jurado») e, ele, diretamente caracterizado, mentiroso. 
Na segunda parte (coblas V a VIII) a Natureza, personificada e humanizada, tranquiliza a donzela. As flores respondem-lhe com a revelação de que o amigo está de saúde («E eu bem vos digo que é viv’e sano/san’e vivo») e comparecerá de acordo com o combinado («E será vosc’ant’o prazo saído/passado»).

No entanto, acaba a cantiga e ela continua preocupada como confere a própria estrutura paralelística cuja técnica do leixa-prém e a manutenção do refrão adensam o clima tenso transmitido na cantiga. 
Se quisermos fazer uma leitura do vocabulário utilizado e da simbologia para que nos pode remeter, é possível descobrir os intervenientes da relação amorosa. Assim: «as flores do verde pino» constituem uma invenção poética cujo referente será, sim, a flor do pinheiro, mas também e sobretudo a «flor del bels pis» (da poesia provençal, occitânica), isto é, o símbolo do amor invencível. Portanto, às flores se associa o campo lexical de beleza, delicadeza, sensibilidade, feminilidade e aroma e a este campo lexical se liga a imagem que existe na poesia trovadoresca da donzela. O pinheiro, pela força, apoio, segurança, robustez, masculinidade, braços (ramos) simbolizará o amigo. A relação entre os dois jovens, cheios de esperança, é transposta para a ideia de verde, que significa imaturidade, juventude e esperança. 
As coordenadas espácio-temporais que extraímos deste poema remetem-nos para os primórdios da nacionalidade, época do estabelecimento das fronteiras territoriais, quer pelo uso dos vocábulos «san’e vivo», quer pela autoria do texto. O ambiente é rural.

A concluir, D. Dinis apanhou nesta composição de inspiração popular uma característica tipicamente portuguesa, a saudade, podendo mesmo considerar-se um tema eminentemente nacional, pois reflete condições em que se formou o nosso país: a reconquista cristã.
         
José Carreiro, Ponta Delgada, 2002-01-07.
         
            
DOM DINIS O REI-TROVADOR
            
Dom Dinis, nascido em 1261 e tendo data de falecimento em 1365, é o rei que assume o poder logo após o Estado de Portugal ter sido consolidado por seu pai o rei Afonso III, teve um reinado um tanto diferente do Demais.
Sua preocupação já não era tanto a conquista de terras, mesmo que nesse período o sul peninsular ainda estivesse sob domínio dos mouros e por vezes ou outra, fosse necessário se ocupar de algumas querelas políticas, eclesiásticas e conflitos pessoais com seu irmão que pretendia o trono, seu interesse estava direcionado à cultura de sua nação.
Dom Dinis chegou a receber o cognome de Lavrador, por ter se destacado ao aplicar em plantações dos “imensos pinhais de Leiria” como fala João Ameal em Breve Resumo da História de Portugal, página 23. Tinha também os olhos voltados para o Comércio e a Marinha, contudo seus cuidados foram além desses fatos. O rei trovador foi responsável pela substituição do latim bárbaro pela língua vulgar portuguesa na redação de atos e processos judiciais e criou o “estudo geral” que derivou a primeira universidade, a Universidade de Lisboa transferida em 1308 para Coimbra.
Não foi sem razão que D. Dinis foi considerado o “príncipe dos trovadores” (Do Cancioneiro de D. Dinis, p.11), bisneto de Sancho I, o mais antigo trovador português e neto de Afonso X, o Sábio de Castela, autor das Cantigas de Santa Maria, possuía nas veias a arte poética.
Sua produção artística soma o número de setenta e seis cantigas de amor, cinquenta e duas cantigas de amigo e dez de escárnio e maldizer, essas também se diferenciam das demais cantigas de escárnio dos outros trovadores, a linguagem do rei é mais branda e ameniza as críticas com pequenas insinuações ao invés do despudor nas palavras usadas.
           
A lírica trovadoresca galego-potuguesa e suas características nas cantigas de D. DinisMonografia apresentada por Karin Feldkircher à disciplina Orientação Monográfica II em Letras, como requisito parcial à conclusão do Curso de Letras, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof. Dr. Marcelo Sandmann. Curitiba, 2006.
            
          


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Programa televisivo "Neste lugar onde... a poesia dos trovadores" da série Um mais um igual a um. Natália Correia, Carlos Alberto Vida, RTP, 1981.
       
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/09/20/ai.flores.do.verde.pino.aspx]