sábado, 15 de março de 2014

O NASCIMENTO DO POETA (Natália Correia)

    
Natália Correia (Furnas, 1975)


      
         
O NASCIMENTO DO POETA


Ora foi num dia treze
que em seu bíblico lugar de dor
minha mãe deu por completas
as letras de meu teor

Porque para acabar o mundo
era precisa a minha mão
do azul calafetado
caí nas facas do chão

Machucada de nascida,
da minha sofrida região
pus-me a levantar o mapa
em ponto de exclamação

Assim na câmara escura
de cada privada saliência
meus olhos se revelaram
negativos da ausência

Soube que o tempo é uma luva
antissética que o infinito
calça para joeirar
sem contágio o nosso trigo

daí o amor ser o meio
do homem dividido em dois
e a pior metade é estarmos
à espera de sermos depois

Soube que quando a amargura
nos gasta a pintura aparece
a cor que teriam os olhos
de um deus apócrifo se viesse

não refulgente ou teologal
tampouco suspensa espada
mas ocasional como vestir
uma camisa lavada

porque a vida é a ocupação
do único espaço disponível
para o possível amanhã
da nossa véspera impossível

e o sidéreo, adeus mistério
é um queijo de paciência
para a gulodice da terra
(e não perdi a inocência)

Soube coisas que sabê-las
foi eu ir ficando nua
como no apocalipse uma última
pedra vestida de lua

como no fim do mundo um lírico
verme a recomeçá-lo
a beber estrelas e peixes
pelo seu estreito gargalo

Como eu em amorosa
posição de cana ereta
a pescar no indizível
o sinónimo de poeta
           
Natália Correia, A mosca iluminada, 1972
           
           
           
[…] em “O nascimento do poeta” (1993, v. 1, p. 416-417), o eu lírico apresenta uma relação tensa entre o nascimento e o facto de ser poeta, construindo uma afirmação intensamente narcisista do eu.
Contido em “Fragmentos de um itinerário” (1993, v. 1, p. 411-444), que, juntamente com “As aparições” (1993, p. 445-475), é uma das duas secções da obra A mosca iluminada, publicada em 1972 e recolhida ao primeiro dos dois volumes da poesia completa de Natália, esse poema expressa a ideia de uma consubstanciação entre eu lírico e poeta, não somente pela reflexão da entidade feminina6 sobre ela mesma como criadora e, como tal, sobre seu poder de criticar o mundo e reordená-lo às suas aspirações, mas também pela data mencionada logo no primeiro verso, dia 13, que remete a 13 de setembro de 1923, nascimento de Natália. Autoafirmando-se pela voz em primeira pessoa, o eu lírico narcisista faz transbordar uma intensa preocupação com o ser que nasce e as relações por ele estabelecidas com o mundo, remetendo o leitor, inclusive, ao “Poema de sete faces” (1967, p. 53) de Carlos Drummond de Andrade.
No entanto, em uma entrevista da poeta incluída no livro Palavra de poeta - Portugal (1994, p. 79), de Denira Rozário, Natália chama a atenção para o universo da poesia, da escrita poética (da ficção, da criação, da simulação, do fingimento), e não propriamente para a realidade biográfica, acreditando que “o autorretrato do poeta, se é que ele é confiável na sua totalidade, está na sua poesia”. Tal afirmação articula-se com a de Domin (Para qué la lírica hoy? Barcelona: Alfa, 1986, p. 22), segundo a qual “para o autor, [...] o poema segue sendo uma parte de sua biografia, como o momento da suprema identidade consigo mesmo que é, ao mesmo tempo, a suprema autodespossessão”. Autodespossessão porque, no texto poético, há um jogo instituído pela ficção, que, pela construção de um simulacro, adquire um estatuto sígnico, mediatizando ou “transpessoalizando” a imagem da poeta.
A preocupação com a escrita poética torna-se mais clara no prefácio a O sol nas noites e o luar nos dias (1993, v. 1, p. II):
“[...] fixo-me nesta velha questão porque nela encontro pistas abonatórias do que na vivência do meu fazer poético me surge como uma evidência: o brotar da poesia numa linguagem construída na esfera psíquica de fatores transpessoais que atuam como uma força unificadora.”
O tom agressivo do eu lírico de Natália reclama um olhar atento e cuidadoso para compreender o posicionamento filosófico predominante de tensão entre opostos que coexistem, interpenetram-se e se complementam, como: vida e morte, origem e não origem, génese e apocalipse, revelação e ocultamento, dor e exclamação, sagrado e profano, possível e impossível, céu e terra, pureza e impureza, simples e complexo, antissético e contágio, banalidade do mundo e valorização do “eu”. Esse posicionamento admite correspondências com a lógica dos contrários lançada noManifesto surrealista (1924) de André Breton e mostra a rebeldia no poema de Natália. A síntese desses elementos em oposição ao longo de “O nascimento do poeta” recupera e atualiza o aspeto fundamental da imagem surrealista como fruto da fusão de realidades imprevistas em uma imagem síntese, enigma que se faz representação cifrada do desejo de encontrar na vida a subversão capaz de afrontar o mundo reificado e propor um novo princípio de realidade. Os dois primeiros versos da segunda estrofe (“Porque para acabar o mundo/ era precisa a minha mão”) e toda a penúltima estrofe, por exemplo, permitem identificar a subversão poética de Natália com o estatuto da beleza surrealista como aquele que se mostra na irradiação revolucionária das imagens, na embriaguez dessa vida “a perder de fôlego”.
A inscrição reiterada do ser poético de Natália, na dinâmica da contestação, pode ser entendida no âmbito de que a investigação dos conflitos da subjetividade é signo de resistência, história apreendida por meio do êxtase da imagem surrealista. A possibilidade de emancipação humana por meio da arte foi o grito mais alto e mais revolucionário da aventura surrealista.
Ainda no que concerne às oposições, também no prefácio, página IV, a autora esclarece o seu sentido: “as coisas só se revelam inteiramente no seu oposto, visto que com ele são unas”. Tal posicionamento faz lembrar as filosofias de Heráclito, baseada na tese de que o universo é uma eterna transformação, na qual os contrários equilibram-se, constituindo a razão universal (“logos”) a reger os planos cósmico e humano, e de Hegel (1770-1831), defensor da oposição entre ser e pensamento, em um primeiro nível, para depois ser superada por uma síntese ideal, fundamentando a “dialética” – problemática vinda de Platão – não como um método a supor a exterioridade do entendimento em relação ao objeto, mas como o próprio movimento do Conceito (a manifestação da essência ou substância do mundo real), a própria vida do sistema, pois o Absoluto, o nível do discurso (a verdade plena, simultaneamente ideia e realidade concreta), é o sujeito, o conhecimento racional, a razão.
Se, por um lado, a voz em primeira pessoa está presente não só como objeto do assunto, mas como enunciador, por outro lado, de acordo com Domin (1986, p. 40), “enquanto o poema ajuda o homem a ser ele mesmo, enquanto o ajuda a denominar e comunicar a própria experiência, ajuda-o a dominar a realidade que ameaça extingui-lo”, pois, no ato de escrever, o poeta permite a si mesmo expressar melhor a diferença entre a realidade empírica e a literária, criada no poema, e, deste modo, perceber a ilusão promovida nos leitores pela realidade extraliterária de levar a confundir desmedidamente poeta e eu lírico.
Em redondilha maior, quase todas as 13 quadras apresentam o traço de desconexões semânticas em uma estrutura sintática regular, levando o leitor a desenredar as várias metáforas construídas por meio das oposições citadas. A aproximação formal com a cantiga popular acaba se opondo à complexidade do conteúdo, indicando, em mais uma dualidade opositiva, o caráter provocador da poesia de Natália. A atividade do poeta é, para ela, demiúrgica, porque, ao possibilitar uma mistura entre concreto e abstrato, tornando opaca a compreensão do texto, confere poder a quem escreve, que passa a ser o detentor do saber quase inalcançável, compondo mais uma vez a imagem da feiticeira ou da poeta-feiticeira na poesia de Natália.
Ganhando corpo em um enfrentamento com o leitor, o poema se enreda em tensões dialéticas entre semântica e sintaxe, ampliando o hermetismo das associações: por exemplo, na terceira estrofe, a relação entre o nascimento dolorido e o fato de o eu poético colocar-se a levantar o mapa em ponto de exclamação chega a ser surreal, pois as realidades associadas são consideravelmente díspares no âmbito empírico. Trata-se de um recurso poético para desfazer a impressão de que a atividade do poeta é simples, puramente sentimentalismo.
Para Natália, a poesia deve provocar o leitor, perturbando o seu entendimento, por meio de uma intensificação das abstrações, uma herança das vanguardas poéticas, em especial a surrealista. No caso da terceira estrofe, a abstração se dá quando se percebe que a aproximação surreal passa a ter um sentido: a celebração do nascimento reverte-se para uma sensação de descontentamento por causa das dores, manifestada na escrita poética na atitude do eu lírico de rebelar-se contra esse acontecimento, ao recorrer, por referência semântica, à funcionalidade do ponto de exclamação. Portanto, a desconexão semântica ocorre como uma tentativa de intensificar a abstração da reflexão poética.
As ambiguidades, as passagens obscuras, as antíteses, as repetições, o perspetivismo, o pessimismo, a melancolia quanto à vida terrena, o descontentamento cósmico, o sentimento trágico referente à existência, o exagero da individualidade e do engenho pessoal, o refúgio na “torre de marfim” da arte obscura, o gosto pela grandiosidade e magnificência traduzido na riqueza de imagens, a atração pela violência e pelos sentimentos fortes manifestados em traços estilísticos intensivos como hipérboles (“para acabar o mundo/ era precisa a minha mão”, “como no fim do mundo um lírico/ verme a recomeçá-lo”, “beber estrelas e peixes/ pelo seu estreito gargalo”) induzem a enxergar uma escrita barroca na poesia de Natália. Não é à toa que, naAntologia da poesia do período barroco (1982, p. 38), organizada em 1970 pela própria Natália, ela defende ser a poesia barroca “aquela em que o poeta deixa de ser objeto da poesia para ser sujeito de uma ação poética reveladora”. Essa tentativa de o eu poético afirmar-se de modo intenso é justamente o que se verifica em forte tom em “O nascimento do poeta”.
As repetições de afirmações metafóricas em tons incontestáveis, o uso do pretérito perfeito do indicativo para intensificar as certezas, as repetições de determinadas estruturas, por exemplo, com o verbo “saber” também no pretérito reforçam o tom agressivo e presentificam, na escrita, o narcisismo. Tais realizações poéticas retomam a conceção de Valéry (1999, p. 200) de que um poema é essencialmente feito de palavras, destacando o plano formal, e não somente de ideias.
Tendo em vista os traços de difícil depreensão na poesia, é necessário compreender a noção de estilhaçamento inerente à arte literária, que, mesmo em uma estrutura de enredamento ou envolvimento entre partes do texto, ocorre, em “O nascimento do poeta”, especialmente em nível semântico, para que haja uma interação entre as categorias sémicas do objeto. Ou seja, em um poema, as associações não se dão unicamente de maneira monológica, linear, mas por sincretismo, promovendo associações plurissignificativas, conforme as relações verificadas anteriormente. Daí existir uma abertura semântica no fechamento discursivo. Um exemplo é o da sexta estrofe: o que significa “o amor ser o meio /do homem dividido em dois /e a pior metade é estarmos/ à espera de sermos depois”? Como se percebe, há uma abertura plurissignificativa no “enredamento” entre os quatro versos, permitindo concordar com Bartolomeu Campos de Queirós (2006): “todo escritor configura um texto, mas é a abertura em sua construção que vai conduzir o leitor a reconhecê-lo como literário ou não”.
*
[…] em “O nascimento do poeta”, […] a relação sintático-semântica não apresenta completamente uma harmonia, mas também uma tensão dialética que instaura ironia, porque as sete sílabas, estrutura das cantigas populares, contrastam com a complexidade das associações imagéticas. O plano cósmico, a noção de tempo, o apocalipse e a ocasionalidade da ocupação do espaço, equivalente ao facto de nascer, são aspetos recolhidos figurativamente pelo eu lírico na dimensão que ele chama de “indizível”, para apresentar o nascimento e, conforme a última estrofe, o sinónimo de poeta.
O poema constitui-se de versos com seis, sete, oito e nove sílabas, cada número simbolicamente relacionado a uma determinada questão: versos de seis sílabas referem-se à suavidade do Amor; de sete, à poesia; de oito, a uma disforia relacionada a sofrimento e ao facto de estar no mundo; de nove, a Deus, ao cosmos e ao fim de um ciclo. Por exemplo, a sétima estrofe contém um verso de sete, dois de oito e um de nove sílabas, sendo este último relacionado a um “deus apócrifo”, o que revela uma espécie de senso crítico do eu lírico de Natália, por correlacionar, pela perspetiva da ocasionalidade, a amargura do nascimento ao aparecimento de um deus falso. Mas as relações de sentido dessa estrofe não terminam e desenrolam-se na próxima, também iniciada por um verso com nove sílabas e remetendo ao elemento divino. Forma-se, então, pela ironia e pelo senso crítico, um “enredamento” no poema.
Essa denominação foi escolhida entre várias outras – “trama”, “enovelamento”, “intrincamento”, “entrelaçamento”, “enlaçamento”, “desdobramento”, “encadeamento” – porque é a mais próxima da ideia de que há em um poema uma funcionalidade interna que requer a contemplação do leitor para o conjunto dinâmico do texto, ou seja, configura-se uma trama que não deixa ler isoladamente partes do poema. Trata-se de uma valorização do corpo poético em sua totalidade, na qual as associações insólitas (tempo - luva antissética calçada pelo infinito, amargura - desgaste da pintura, aparecimento de um deus apócrifo - ato de vestir uma camisa lavada, vida - ocupação de um espaço, sidéreo - queijo de paciência para a gulodice da terra) em uma sintaxe narrativo-discursiva, próprias do estilo de Natália, que prima pelo excesso, pela magia encantatória do verbo, remetem a traços do barroco: jogos de luz e sombra com ângulos das inclinações mais diversas; procura do movimento e da ilusão que leva a obra a não permitir uma visão privilegiada (frontal, definida), mas induza o observador a deslocar-se continuamente para compreendê-la sob aspetos sempre inusitados, como se ela estivesse em contínua mutação.
O tipo de escrita de Natália remete às instabilidades criadas nas obras barrocas, nas quais o tratamento temático se dá por meio de conflitos, de tensões, de modo a não haver questões absolutas no equilíbrio entre forma e conteúdo. Assim como no estilo barroco, em “O nascimento do poeta” a multiplicidade de detalhes converge para a unidade alcançada pela interpenetração entre as partes, projetando a atenção para o todo […]. Relaciona-se à tensão observada na obra de Natália a observação de Haroldo de Campos (1975, p. 92) de que a poesia “faz-se dialética não para o conforto de alguma síntese ideal, hipostasiada no absoluto, mas pela guerra permanente que engendra entre os elementos em conflito, à busca de conciliação, e onde o possível se substitui normativamente ao eterno”.
Nessa trama interna do poema, manifesta-se um aspeto universal correspondente à força centrípeta da linguagem literária, questão problematizada por vários críticos, como Northrop Frye, Umberto Eco e Melo e Castro. O crítico português, na obra O fim visual do século XX (1993, p. 17), explica o fato de a obra de arte possuir uma força centrípeta que atrai o espectador, transformando-o em participante no sentido de comunicar-se consigo próprio, na obra de arte. O leitor reage, assim, ao complexo das perceções que lhe são possíveis. Pensando, neste momento, no título da seção em que está incluído “O nascimento do poeta”, “Fragmentos de um itinerário”, um detalhe não deve ser deixado de lado quanto à construção desse poema: a “eloquência” é incoerente com uma estrutura poética fragmentária, levando a pensar que os fragmentos só existem no título da seção e nas respetivas implicações semânticas que agrupam os textos dela integrantes.
Trata-se de um conjunto de poemas precedidos cada um por um texto em prosa centrado no mesmo núcleo temático do poema: “Num dia demasiadamente raivoso” e “O nascimento do poeta”, “No sítio em que os Transparentes” e “Árvore géniológica”, “Na fossa dos mais acreditados dicionários” e “Mãe ilha”, “Os outros seriam menos estúpidos” e “A casa do poeta”, “O quarto é o homem elevado ao quadrado” e “Quarto”, “O casamento é um soneto” e “Tríptico do amor conjugal”, “O meu perfil é a última esperança” e “De perfil”, “O sonho é o homem a três quartos” e “Sonho a três quartos”, “Alguém liga-se à corrente poética” e “A defesa do poeta”.
Para estarem agrupados em uma obra particular e ainda receberem um subtítulo, certamente que deve haver algo a conduzir esses textos: é a voz de um ser feminino exaltando, principalmente, o “eu”, a poesia, o espaço de criação literária e o poeta. Se os textos constituem um “itinerário”, tal percurso se demarca pela voz de um ser feminino, o eu “em amorosa posição de cana erecta”, a focalizar o próprio eu, a figura do poeta. Fica patente, portanto, o princípio de composição de uma poesia marcada, sobretudo, pelo signo da intertextualidade, à medida que se estabelece uma inevitável relação de um texto com os demais, sem que isso queira dizer que eles fazem referência entre si.
Embora esteja sendo usado em um nível semântico intertextual, o termo “fragmentos” permite uma discussão a respeito da imagem de “enredamento”, por indicar que, até quando se trata de fragmentos ou, na verdade, textos, a poesia de Natália desenvolve-se no âmbito da ligação entre as partes que a escrita e leitura realiza. Quando até os fragmentos são considerados textos, é porque a perspetiva poética da autora é, realmente, a de um envolvimento que, para ela, é mais significativo entre as partes da obra do que se recorresse a espaços em branco ao longo do objeto, lembrando Mallarmé.
A já mencionada epígrafe escrita por Natália ao poema “Ode ao agravo geral” (1993, v. 1, p. 169) de que “o valor das palavras na poesia é o de nos conduzirem ao ponto onde nos esquecemos delas” e “o ponto onde nos esquecemos delas é onde nunca mais se pode ter repouso”, ao conceber uma especificidade para a relação entre as palavras e as ideias por elas suscitadas, na poesia, traz uma noção válida para o enredamento: a de que existe uma ligação entre as partes do poema capaz de provocar um “borbulhar” de sentidos, os quais, não se fixando em um ponto determinado (um verso, uma estrofe) do texto, enviam a outra parte, construindo um “enredamento”, uma teia. Essa tecedura poética impede a leitura isolada de um fragmento do poema, forçando o leitor a circular pelo texto e entre os textos, para que não se perca o recurso impulsionador do tom rebelde da linguagem adotado por Natália. É preciso mergulhar nesse espaço “onde nunca mais se pode ter repouso”. Portanto, o enredamento torna-se uma forma de impulsionar o tom rebelde da linguagem na poesia de Natália, conforme se pode notar em “Num dia demasiadamente raivoso”, antecedente a “O nascimento do poeta”:
“Num dia demasiadamente raivoso para caber no Zodíaco nasci a metade de um endecassílabo quebrado em dois. Tambor de ossos delirantes espalhei na cidade a notícia de que um planeta puro como o hálito de muitas flores reunidas preparava um dilúvio de sonhos para desnudar as estrelas jacentes nas criptas dos nomes. Era a loucura de não nascer comigo. Sentados no sumptuoso aposento da morte, os homens trocavam entre si as navalhas em códigos dos assassinos especialistas na vida. Tinham todos nascido pontualmente à hora da certidão de idade. Ou estavam pelo menos convencidos disso. Uma certeza que na caça aos fogos fátuos do alfabeto atribui a cada um o mérito de pendurar à cintura o significado esperneante da vida. Uma cabeleira em acento circunflexo amortecia os sons pertencentes a outra idade que levavam aos sepulcros, salas de dança horrível das vogais sepultadas vivas. Constelada de calafrios recolhi-me à minha flor provocada pelos dias intensos em que me alcanço na radiosa capital dos inascidos: a luz da minha pele iluminada por dentro para gravar um canto. A educação musical dos girassóis que dá o meu hectare de realidade entre o ser e o estar põe a minha memória ao serviço da metade que eu fiquei por nascer. Trabalho urbanístico de esponja embebida na luz de um lugar achado pela técnica suavíssima do marfim de todos.
Alguns, por cardíaca aceitação do policiamento da porta que um cão de turquesas abre para o sítio onde vai ser a vida, chamam a isso poesia.”
       
Ao longo de todo o texto “Num dia demasiadamente raivoso”, não por acaso em forma de prosa, tendo em vista o estilo por enredamento, a poeta é associada a um bebê que nasce. Há várias correlações, entre as quais a primeira é de tom erótico, ao metaforizar (identificar semanticamente dois conjuntos, no caso, o bebé e a poeta, por meio de um processo de intersecção sémica entre eles) a chegada do eu lírico por um canal dividido em dois. Como se pode observar, o próprio texto poético em análise é dividido em dois parágrafos, sendo que, na segunda parte, tem-se a finalização da chegada da poesia.
Outra correlação é quanto ao sofrimento: tanto no nascimento do bebé quanto no do eu lírico, há um “esperneamento”, que acaba sendo o significado da vida. Para a voz do poema de Natália, espernear é, pois, uma insatisfação permanente trazida pelo nascimento.
Uma especificidade do enredamento em “Num dia demasiadamente raivoso” encontra-se não somente nas imagens correlacionadas, mas na maneira como elas são associadas, intersecionadamente, fundindo uma realidade (o nascimento de um bebê) a outra (o nascimento da poeta). Por exemplo, em “nascer a metade de um hendecassílabo dividido em dois”, há um ser que nasce, mas o nascimento torna-se estranho quando ocorre em um hendecassílabo. No próximo período, há quatro entidades cuja associação leva a vários pontos de referência, configurando a fusão de realidades: o ser que nasceu, “planeta puro”, “dilúvio de sonhos” e “criptas dos nomes”. Tal forma de construir a linguagem poética é amparada pela horizontalidade da prosa, em que se constroem períodos longos, principalmente o último.
O mergulho no espaço do nascimento emerge em signos cujas materialidades sonoras demonstram um impulso efervescente de criação poética: “ossos delirantes”, “loucura”, “suntuoso”, “esperneante”, “técnica suavíssima do marfim”. A escolha lexical e o arranjo das palavras conferem à linguagem um tom rebelde sendo impulsionado pela continuidade de tal estilo.
      
 São José do Rio Preto, Universidade Estadual Paulista - 
Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, 2006, pp. 118-126, 160-166.
           
           
____________________
(6) Convém, a esta altura, uma nota: a motivação por reforçar no texto a identidade feminina e, além do mais, por deixar clara em toda sua poesia o facto de ser Natália quem escreve, não deixa de ser mais uma das críticas da poeta a instituições: a masculinidade que determina o mundo e a literatura, mesmo que essa crítica realize-se especificamente no plano da linguagem, da poesia para a poesia na construção de um simulacro, assim como afirma a própria autora (1966, p. 54): «a poesia é uma magia pela magia, magia sem esperança e o poeta o mago que se entrega ao rito pelo próprio rito, não esperando nada senão as experiências que fazem corpo com o ato de penetrar nesse rito». O narcisismo coloca-se contrariamente, por exemplo, à postura da escritora feminista francesa Aurore Dupin (1804-1876), que, paradoxalmente a sua ideologia, para produzir literatura, adotou o pseudónimo masculino George Sand. Baudelaire (1958, p. 1214) criticava duramente as pretensões moralísticas da escritora, desconsiderando-a como artista: «ela foi sempre moralista [...] Eis a razão por que jamais foi artista». Também vale frisar, diante desses dois exemplos, que o tipo de escrita não depende de uma correspondência estrita com a identidade do autor: assim como um discurso feminista não tem, necessariamente, uma autoria feminina, uma mulher não escreve somente com um estilo feminino e um discurso de afrodescendente também pode não ter sido produzido por um autor negro.
        
           
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[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/03/15/o.nascimento.do.poeta.aspx] 

sexta-feira, 14 de março de 2014

ANTILÓGICA (Natália Correia)


"O Pensador", Rodin

       
          
ANTILÓGICA
    
I
    
O esquivo rosto contrito
do pensador consequente
revela visualmente
a ontologia do grito

depois recluso e contracto
no contrato contratempo
que se faz com o abstracto
projeto de sermos gente.

Nascer é ficar aflito
depois estender a mão
pedir pão ao infinito
que é também abstracção.

O coração é o grito
que o pensamento repete
vem daí que a reflexão
é a aflição de quem reflecte.

Consequência não reflicto.
   
II
   
Não ter a mínima ideia
por contíguos sons achar
sobre o papel o território
e ternamente o habitar.

Aliterado amor
das coisas que se buscam
os ares soltando
da pátria brusca

mente a nossa
que nos é dada
pela língua cósmica
falante não falada.
    
III
      
Não mais os sons
do discursivo engasgo.
Reposta em seus dons
seja a palavra o rasgo

que à superfície traz
a luz do fundo
e o nosso modo mudo
de estar no mundo.

Das flores o canto
aves vogais
e o Amor címbalo de
sons naturais.
    
Natália Correia, O vinho e a lira, 1966
    
     
     
 […] o eu de Natália, predominantemente consubstancial à poeta e analogamente à posição da autora em “O ritmo como fascinação na poesia” (Humboldt: revista para o mundo luso-brasileiro, Hamburgo, Alemanha: Übersee-Verlag, 6 (14), 1966, p. 54), sustenta a condição de a poesia estar carregada de uma crença na eficácia do desejo e do sentimento, essência da magia – crença verificada na terceira parte de “Antilógica” (1993, v. 1, p. 336-337), do livro O vinho e a lira (1966) ‑, o que possibilita a esse sujeito a denominação de “feiticeira”, observada nos poemas “Auto da Feiticeira Cotovia” (1993, v. 1, p. 229-251) e “Árvore géniológica” (1993, v. 1, p. 419-421), exaltando-o na capacidade de conduzir a linguagem sob o tom da impulsividade. Portanto, focalizando a linguagem dos poemas, e não as autoras, a “esfinge” e a “feiticeira” às quais se refere o título desta introdução correspondem, mais especificamente, a um silêncio-esfíngico na poesia de Orides e à voz do eu lírico como poeta-feiticeira na poesia de Natália, podendo-se redimensionar o título para: “Quando o enigma do silêncio-esfíngico e a ousadia da voz da ‘poeta-feiticeira’ se encontram”.
     

Affe mit Schädel (Replik der Bronzeplastik von Hugo Rheinhold, 1892;
Höhe 18,5 cm, Hunterian Museum of the Royal College of Surgeons, London)

    


Complementando a indagação de “Mãos feridas na porta dum silêncio”, analisa-se, neste momento, “Antilógica” (1993, v. 1, p. 336-337). Esse poema aproxima-se não somente de “Mãos feridas na porta dum silêncio”, mas também de “Poema limo” e da problemática suscitada por “Rosa” [da poeta brasileira Orides Fontela], ao associar, na relação entre o ato de pensar e a função da linguagem da poesia, o facto de nascer às perspetivas de como lidar com (as coisas d)o mundo e de como agir na condição de poeta-pensador. O eu lírico de Natália demonstra-se incómodo com a necessidade de “refletir” e, por isso, prefere esquivar-se de tal (pre)ocupação.
A estruturação de frases declarativas semelhantes a premissas nas três últimas estrofes da primeira parte do poema leva a uma espécie de silogismo e, como tal, a uma conclusão: se “nascer é ficar aflito”, se “a reflexão é a aflição de quem reflete” e o ser não quer refletir, então, ele não quer ficar aflito; consequentemente, o ideal é não nascer. Nascer é, portanto, estar passível de um constante estado aflitivo. É a essa questão que corresponde a “lógica” do título “Antilógica”. “Anti” porque o eu lírico nega-se a refletir, já que esse ato leva-o a ficar aflito por tomar consciência da precariedade de sua condição, e “lógica” porque o que está em jogo é o ato de refletir, questão filosófica ligada a Aristóteles (384-322 a. C.), a qual aponta a atitude de pensar como traço definidor do ser humano, mensagem de caráter abstrato e generalizante análoga ao sentido da escultura “O pensador” (1881) de Auguste Rodin (1840-1917), sugerida pela descrição de um pensador nas duas primeiras estrofes do poema: “o esquivo rosto contrito/ do pensador consequente” e “depois recluso e contracto”.
       


       


Na segunda parte do poema, o eu faz uma associação entre poesia e língua, não a língua falada, no caso a portuguesa, à qual se refere Fernando Pessoa, “a minha pátria é a língua portuguesa”, e também Caetano Veloso (1984) no verso “minha pátria é minha língua” da música “Língua”, mas a língua(gem) da poesia, sugerindo que, mesmo não tendo um modo certo e tranquilo de ser composta, essa língua “cósmica” é o meio pelo qual o indivíduo faz sua pátria e seu mundo.
Enquanto o silogismo da primeira parte do poema remete a Aristóteles, autor de um conjunto de procedimentos de demonstração e prova (a “lógica” ou “analítica”, fundamentada em proposições direcionadas a uma conclusão convincente), o embate entre arte (poesia) e lógica (filosofia) instaurado na segunda e terceira partes leva a Platão (1965, v. 2, p. 105-143), que, aspirando ao mundo dos deuses, das verdades absolutas, angustiava-se com a realidade precária do homem – marcada pelos signos, pelo mundo vicário da imaginação, da linguagem, pelos limites da imaginação e do desejo – e queria atingir o mundo das ideias, onde acreditava estar a essência, a forma dos objetos.
Diferentemente do biólogo Aristóteles, que tentou compreender a arte como uma experiência especial de relação entre o homem e o mundo, o geómetra Platão (427-347 a. C.) acreditava que o verdadeiro caminho era o da ciência, a intelecção do filósofo, e não o da poesia, o mundo da opinião e da sensação. Como se sabe, por considerar em primeiro lugar o artesão e somente depois, de modo degradado, a imitação artística, Platão expulsou os poetas da República. Tendo em vista essas considerações, “Antilógica” pode ser entendido como uma espécie de insurreição ao posicionamento dos filósofos, remetendo à escultura “O pensador”, um ícone popular da imagem de um ser racional.
A palavra da poesia (palavra “reposta em seus dons”) e não necessariamente a do quotidiano (“sons do discursivo engasgo”) é o elemento que deve “falar” pelo homem naturalmente mudo, desejo expresso pelo eu ao igualar-se aos outros seres, em “nosso modo mudo/de estar no mundo”, na terceira parte do poema. Eis um engasgo materializado pela função poética e transformado em fluência pelas paronomásias. Considera-se a linguagem verbal poética como a única coisa que possibilita aos seres humanos, diante da condição silenciosa de sua existência, dirigirem-se ao mundo. Por meio da linguagem, exaltam-se o indivíduo e seu interior, mas essa linguagem não deve ser de qualquer tipo: deve ser expressa sem obstruções, como as vogais, e livremente, como as aves, sendo natural como as flores e tendo o Amor (o gosto pelo exercício da escrita poética), tal como o címbalo, como o instrumento por meio do qual se transmitem os sons naturais.
Se, no âmbito da racionalidade, a atitude de pensar remete à escultura de Rodin, por outro, no âmbito da subjetividade, a singularidade criada pelo poema quanto ao sentimento do eu lírico deque a linguagem poética é um recurso positivo contra a precariedade da condição humana vai ao encontro da seguinte frase de Carlos Drummond de Andrade mencionada no prefácio de sua Antologia poética (1995): “a literatura, tal como as artes plásticas e a música, é uma das grandes consolações da vida e um dos modos de elevação do ser humano sobre a precariedade de sua condição”. Portanto, o sujeito de “Antilógica”, já pela contrariedade prefixada no título, rebaixa a racionalidade pura, sugerindo-a como algo que não leva a um resultado plausível, e, tal como a frase de Drummond, valoriza a literatura e outras artes, colocando-a como uma atitude libertadora porque permite criar, produzir algo com o qual o homem se identifica e se eleva. Sobre a dualidade entre razão e subjetividade também reflete Jean-Jacques Rousseau, no romance epistolar Julie ou la nouvelle Heloïse (1761, III, p. 7): “se é a razão que faz o homem, é o sentimento que o conduz”.
A impulsividade a conduzir a poesia de Natália não é um interesse do eu lírico pelo conhecimento por si mesmo nem uma necessidade de a poeta comprovar seu conhecimento, mas um interesse da voz lírica pela sua satisfação existencial, no sentido de o núcleo da poesia tornar-se uma busca do ser, uma busca pelo ser daquilo que o eu canta. E com essa atitude poética, a autora sacia sua sede de ser no outro, de ser o outro, o que ela idealiza e que somente pode ser realizado no e pelo universo das palavras “naturais”, pois o eu lírico define como poesia a Natureza e, o Cosmos, o que nega valor à palavra. Paradoxalmente, é proposta uma superação da palavra utilitária. Pode-se compreender o referido universo pela seguinte questão ontológica defendida por Benedito Nunes (1986, p. 286): “a poesia é a comensuração entendida em seu sentido rigoroso, pela qual o homem recebe a medida que convém à extensão do seu ser”.
      
I
O esquivo rosto contrito (a)
do pensador consequente (b)
revela visualmente (b)
a ontologia do grito (a)

depois recluso e contracto (c)
no contrato contratempo (d)
que se faz com o abstracto (c)
projecto de sermos gente. (d), rima interna

Nascer é ficar a
flito (a)
depois estender a mão (e)
pedir pão ao infinito (a)
que é também abstracção. (e)

O coração é o grito (a)
que o pensamento repete (f)
vem daí que a re
flexão (e)
é a a
flição de quem reflecte. (f)
Consequência não re
flicto. (a)
     
II
Não ter a mínima ideia
por contíguos sons achar (g)
sobre o papel o território
e ternamente o habitar. (g)
Aliterado amor
das coisas que se buscam (h)
os ares soltando
da pátria brusca (h)

mente 
a nossa
que nos é dada (i)
pe
llíngua cósmica
fa
lante não falada. (i)
      
III
Não mais os sons (j)
do discursivo engasgo. (k)
Reposta em seus dons (j)
seja a palavra o rasgo (k)

que à superfície traz
a luz do fundo (l)
e o nosso modmudo (l)
de estar no mundo. (l)

Das flores o canto
aves vogais (m)
e o Amor címbalo de
sons naturais. (m)
  
O poema está sendo citado novamente porque é necessário mostrar no próprio texto as várias recorrências sonoras.
[…] em “Antilógica”, de Natália, as aliterações dialogam com a organização sintática dos versos, suscitando, na segunda estrofe de cada uma das três partes do poema, efeitos de sentido (respetivamente, sensações de incómodo com o projeto de sermos gente e de ridicularização desse projeto, de leveza aparente que conduz à ambiguidade e de engasgo com a palavra) relacionados a um determinado tipo de insurgência a despertar curiosidade. Na segunda estrofe da primeira parte, a reiteração do fonema dental e vibrante sonoro /􀀀/ (tepe) nos signos “contracto”, “contrato”, “contratempo”, “abstracto” e “projecto” – fonema ainda mais vibrante se considerada a dicção de Portugal –, em virtude da sonoridade adjacente aos fonemas surdos /t/ e /p/, leva às ideias de incómodo e de posição contraída, reforçando a lembrança da imagem do pensador; na terceira parte do poema, a recorrência dos fonemas bilabial e nasal sonoro /m/ e dental e oclusivo sonoro /d/ em “modo”, “mudo” e “mundo”, no agrupamento de rimas consoantes do tipo nasal, articulação que ocorre mais internamente no aparelho fonador, e dental, mais próximo ao exterior, leva à sensação de movimento vindo de dentro para fora, tal como deve ser a palavra poética na vida do ser, na conceção do eu lírico de “Antilógica”.
A insurgência de /􀀀/ na primeira parte do poema, partindo do final de um verso e apresentando-se no início e no meio de outros, sugere a intensidade da concentração referente ao ato de pensar; o rompimento entre os signos “brusca” e “mente”, da segunda parte do poema, sugere a ideia de movimento rápido como soltar os ares da língua; e a disposição de /m/ e /d/ no final de dois versos, construindo uma ligação próxima a um trava-língua, ironiza o facto de que a palavra da poesia deve ser um “rasgo” que a “luz do fundo” traz à superfície. Promove-se, dessa forma, pela articulação entre as dimensões fônica e sintática, um arranjo harmónico entre as partes do poema.
Outro ponto a ser analisado é a reiteração dos fonemas /f/ e /l/ nos signos referentes à reflexão e à aflição, nas três últimas estrofes da primeira parte: a insistência linguística figurativiza a persistência própria da aflição e a demora intrínseca ao ato de refletir. Além disso, a recorrência do fonema dental e lateral sonoro /l/ nos signos “pela”, “língua”, “falante” e “falada”, da terceira estrofe da segunda parte, cria uma sensação de desenvoltura, que faz parte da língua.
    
[…] em relação a “Antilógica”, apresentam-se amarras sintáticas plurimetaforizadoras, porque as inversões sintáticas, por exemplo, entre a primeira e a segunda estrofes da terceira parte do poema, arranjadas para obter um efeito sonoro especialmente irônico, lançam a palavra como “o rasgo que a luz do fundo traz à superfície” e “o nosso modo mudo de estar no mundo”, ambas as designações sob a forma de metáfora, sem a conjunção subordinativa comparativa “como”, que formaria um símile. A quarta estrofe da primeira parte é toda metafórica, pois o eu lírico chama o coração de “o grito que o pensamento repete” e, a reflexão, de “a aflição de quem reflete”. Entre as duas metáforas evidencia-se a amarra sintática na estrutura conclusiva “vem daí que”.
[…]
[Na obra] utiliza-se da reiteração de um mesmo signo ou de um mesmo verso em mais de uma estrofe, configurando um ritmo específico pelo princípio das relações sintagmáticas e paradigmáticas, Natália apresenta, pelo princípio da métrica, aliterações e rimas, ambas as poetas aderindo, portanto, a processos de repetição, exatamente o foco do artigo “O ritmo como fascinação na poesia” (1966, p. 51-54), em que Natália defende o ritmo como condição essencial para a existência da linguagem poética. Para a autora, essa linguagem “nasce e se movimenta no nascer de movimentos rítmicos” e o concentrado da poesia está no facto de o ritmo métrico ligar-se à repetição. A frase para o verso é matéria de movimento, bem como o verso é matéria dinâmica para a estrofe e esta para o poema estrófico. A própria rima segue a lei da repetição, constituindo um ritmo fonético que repete o igual no desigual.
Generalizando, Natália assevera que todo metro é ritmo, mas nem todo ritmo é metro. Ritmo, para ela, é vida, metro é regra; o ritmo é a alma do sistema métrico. Essa noção também se encontra em Chociay (1974, p. 3), para quem o metro representa apenas a abstração de um dos apoios rítmicos do poema e o ritmo é a resultante da solidariedade dos vários níveis da linguagem que encorpam o poema (relação entre os valores vocálicos e consonânticos, reiterações fónicas de toda ordem, duração maior ou menor de certas sílabas, entonação, entre outros).
Natália considera ter sido a poesia, em sua origem, um processo de fascinação e ambiciona sê-lo sempre que utiliza, consciente ou inconscientemente, os utensílios adequados a um projeto de repetição. Segundo a autora, pode-se encarar a obscuridade da poesia moderna como uma fórmula que convida o leitor a libertar-se do real aparente para mergulhar em uma anormalidade, entendida como realidade inaparente que se muda em nova forma e gera um novo mundo. Para o poeta moderno, na opinião de Natália, são as pulsações da possibilidade criada pela palavra que ordenam o ritmo. De acordo com a autora, na época em que ela escreveu, década de 1960, passava-se por uma fase na qual a forma era orgânica porque, obedecendo a uma lei inerente, originava e fundia com a sua invenção a forma e o conteúdo. Uma vez criada, a fórmula tinha que ser observada com a maior fidelidade, porque, para a mentalidade mágica, o êxito dependia da execução adequada do rito.
A poeta menciona Herbert Read para explicar que, quando a forma orgânica foi estabelecida e repetida como padrão e a intenção do artista já não estava relacionada com o dinamismo inerente a um ato inventivo, mas procurava adaptar o conteúdo a uma estrutura predeterminada, a forma resultante podia então ser descrita como abstrata. Para finalizar, a autora enaltece o facto de a heterorritmia ser, assim como toda a heterogeneidade da poesia moderna, um processo de fascinação peculiar a uma objetivação extravagante que apaga a atenção usual, atraindo-a para a área da concentração no objeto da mímesis poética.
Desse modo, torna-se clara a conceção de Natália sobre a forma da poesia, composição que, para a autora, somente se realiza quando apresentar um ritmo homogêneo pelo qual se repita a igualdade de sons na relação sintática e paradigmática entre diferentes palavras. Isso significa que, para Natália, a poesia requer uma certa eloquência, para se fazer desse tipo de composição artística um objeto propício ao desenvolvimento da periodicidade, princípio sobre o qual se fundamenta o ritmo, na visão de Pius Servien (1953, p. 85-93).
A referida conceção é realizada, por exemplo, no poema “Antilógica”, formado, na primeira parte toda, a única com regularidade métrica, por sete sílabas poéticas e rimas do tipo “abba” (entrelaçadas), “cdcd” (alternadas), “aeae” (alternadas), “afef” (semi-alternadas) e “a”, sendo a segunda do tipo “d” uma rima interna; na segunda parte, sem regularidade métrica, por rimas dos tipos “g”, “h” e “i” e, principalmente, por aliterações entre “buscam” e “brusca”, “pela”, “língua”, “falante” e “falada”; e, na terceira parte, também sem regularidade métrica, por rimas “i”, “j”, “l” e “m” e aliterações entre “fundo”, “modo”, “mudo” e “mundo”. Repare-se o movimento de convergência criado entre as últimas aliterações, nas quais se aproximam em pares, de acordo com a posição na estrofe, as palavras do eixo paradigmático (“fundo” e “mundo”) e as do sintagmático (“modo” e “mudo”).
A afirmação de Natália (1966, p. 54) de que, para o poeta moderno, são as pulsações da possibilidade criada pela palavra que ordenam o ritmo e que “ritmo é vida, metro é regra” coincide com a de Johanes Pfeiffer (1959, p. 21-22): “o metro é regra abstrata: o ritmo, a vibração que confere vida; o metro é sempre, o ritmo o Aqui e o Agora; o metro é medida transferível: o ritmo, a animação intransferível e incomensurável”, e com a de Octavio Paz (1976, p. 13), de acordo com a qual o ritmo, inseparável da frase, continua engendrando novos metros, não sendo composto somente de palavras soltas nem somente de medida ou quantidade silábica, acentos e pausas, mas de imagem e sentido, conteúdo qualitativo e concreto, enquanto o metro esvazia-se de conteúdo e converte-se em forma inerte, mera casca sonora, sendo medida abstrata e independente da imagem, medida vazia de sentido.
Isso tudo remete a Tynianov (1975, p. 22), que, concordando com Meyman, faz determinadas considerações a serem aproveitadas para compreender melhor as obras de Orides e de Natália: “na criação poética existem duas tendências, às vezes em contraste, outras vezes de acordo entre si, às vezes ambas atribuindo, cada qual a si mesma, a criação do efeito rítmico: tendência para ritmar e tendência a frasear para agrupar”. Na primeira, a convenção rítmica mexe com as sensações do leitor; na segunda, ele é atraído pelo conteúdo. A primeira advoga que uma determinada série (a frase) depende de um princípio unificante de outra (o ritmo). A segunda enfatiza o frasear lógico dissociado do rítmico, considerando o facto de o ritmo ser um elemento supérfluo, limitativo, perturbador, defendendo a ideia de que o verso e a construção rítmica devem ser livres. Para Tynianov, essa última tendência descuida-se daquilo que faz do “vers libre” verso e não prosa, ou seja, manifestação rítmica. O específico da poesia, segundo ele, ficaria, então, a cargo de uma disposição sintática particular, sendo abolida a linha que separa a prosa do verso.
    
São José do Rio Preto, Universidade Estadual Paulista - Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, 2006, pp. 12-14, 114-118, 141-149
        
           
"Rethink Plastic", Javier Jaén




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[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/03/14/antilogica.aspx]