quinta-feira, 18 de junho de 2015

Mário Henrique Leiria surrealista




LISBOA AINDA REVISITADA EM 70!

Um pouco de sopa
uma posta de garoupa.
Mais uma vez
os alegres cadáveres do costume
e outra vez...
olha o Simões... olha o Armindo
é lindo... é lindo
(por favor
dá-me aí o RATOFINDO)
sô barbeiro
olhe que esqueceu a «pedra nua»

A ponte sobre o Tejo
(viva mais uma ode genial)
Que tal? Que tal?
Quando a vir pela primeira vez
vou com certeza ter saudade
do tempo em que acreditava
que nunca teria que rever
um trambolho
com molho
português,
o molho ribeirinho habitual.

Olha, o melhor parece ser
um pouco mais de sopa
e — porque não? — outra posta de garoupa.

Mário Henrique Leiria




POIS...

Há anos que venho afirmando,
sempre tenho dito
que, afinal,
Portugal
é que é o país do cadáver esquisito

que esquisitice a do Simões
que beleza de antiguidade a do Tareco
e aí vamos nós
bebendo, sapientes, nos salões
da Natália...
e viva a PORTUGÁLIA
que aqui, no Brasil,
edita e propaga o Alves de Arganil

Montes de propostas desonestas
têm sido feitas ao cadáver.
Chamam-lhe periquito
tão bonito... tão bonito...!
ou convidam-no — com dignidade
para festas
com o Simões... claro, com o Simões
...como deve estar namora
esse Simões!
Isto de ser o tal
cadáver esquisito
só mesmo
em Portugal.
Um pouco de sal
e Soyo — o molho japonês —
couves — muitas —
Remexer e ficar com as orelhas
e voltar a Portugal
para assistir ao entremês... final.

Mário Henrique Leiria



Nota: “O cadáver português foi João Gaspar Simões, já antigo «inimigo» dos surrealistas desde a polémica no jornal Sol.” (Mª de Fátima Saraiva, O Surrealismo em Portugal e a Obra de Mário Cesariny de Vasconcelos, FLUP, 1986)



 
Grupo Surrealista de Lisboa



MÁRIO HENRIQUE LEIRIA que, quase desde o início esteve ligado ao Grupo Surrealista Dissidente, tendo feito parte das experiências do Cadáver Esquisito, só na década de 70 começa a publicar os seus livros, tendo até essa data colaborado, mais ou menos esporadicamente em jornais e revistas.

Há um poema-colagem datado de 1949, que circulou apenas numa folha volante73 e que, pela sua riqueza irónica e imagística, merece ser reproduzido na íntegra:


«AVISO
FOI PRESO
PELA LEGIÃO ÁRABE
UM
ARISTIDES
DE CABELOS DE CRISTAL
QUE
FOI O AUTOR DA MORTE
DE
480 CRIANÇAS
COM
BETUME JUDAICO
E
ZARCÃO INGLÊS
A
SETENÇA
SERÁ
UM GRANDE ÊXITO
PELO EMPREGO JUDICIOSO DAS CORES».


A sua obra literária é, quase na totalidade, formada por poemas e pequenos textos que narram casos insólitos, com um estilo bastante sui generis.

Dos poemas, só uma pequena parte foi publicada em livro: Imagem Devolvida Poema Mito74. Mário Cesariny de Vasconcelos trouxe ainda a público alguns textos de dois livros inéditos: 6 poemas de Climas Ortopédicos75 e cinco de Claridade Dada pelo Tempo76.

Ao analisarmos as características surrealistas na poesia de Mário Henrique servimo-nos, evidentemente, do material publicado, do Espólio existente na Biblioteca Nacional e dos poemas inéditos de Climas Ortopédicos (Dez. 1949-Jan. 1950) e de Claridade Dada pelo Tempo (Nov. 1951)77.

Estes textos, datados entre 1949 e 1951, possuem inegáveis traços surrealistas. São inúmeras as imagens tipicamente bretonianas que encontramos em Climas Ortopédicos:

«O amor feito de noite
ao som metálico
de uma orquídea vermelha
é a estrada uivante
que se enrosca em tranças
de animais marinhos
       (...)
Os teus olhos
são a COLOSSAL PIRÂMIDE
por onde sobem Vermes»78.
«Entre a bicicleta e a laranja
vai a distância duma camisa branca»79
ou
«Eu sei que as túlipas
são os olhos de todos os aviões perdidos
Eu sei que as cidades
são os esqueletos das aves de rapina»80
«Qualquer encontro
entre mim
e a tua égua aquática
é sonho
mas verdade
feita de eco nostálgico e
tábuas de engomar longínquas»81.


Em Claridade Dada pelo Tempo, Mário Henrique Leiria assume directamente uma filiação bretoniana ao apor uma transcrição de L'Amour Fou: «La beauté sera erotique — voillé (sic) explosante — fixe, magique — circonstancielle ou ne sera pas...» Apesar de tudo, porém, os poemas não se ressentem tanto da influência surrealista como os de Climas Ortopédicos. Deparamos, apenas, com uma ou outra imagem que nos remete para a lição de Breton:

«em creança aprendi
a olhar a lua distante
mar ignorado da memória
 — lâmina aguda e
extremamente fina —
a grande aranha do tempo
duas asas sono que
nos foi dado outrora»82.

Em Imagem Devolvida há uma afirmação bem característica dos ditames surrealistas:

«posso desde já afirmar que há dois corpos
ligados por uma vara metálica vibrando
constantemente digo entre o deserto
e um rosto
de criança morta»83.

Mas, como já vem sendo hábito, as metáforas que designam a mulher são sempre das mais ousadas e onde a distância entre os dois termos é maior. Num texto, inédito, «autorretrato telegráfico»84, ela é designada com os mais espectaculares atributos:

«(...)
meu pequeno e carinhoso motor diesel
(...)
meu avião de jacto
perdido ao jogo de dados
meu caranguejo-tigre
minha mala-infância
meu vento-mulher
(…)»

O poema «resultado inesperado» de Climas Ortopédicos 85 é uma espécie de dissertação sobre o homicídio. O tema é tratado de um modo aparentemente neutro, onde não falta o humor negro e a crítica aos valores vigentes:

«Anuncia-se frequentemente
em todos os jornais
que por uma insignificante quantia
qualquer pessoa
pode cair dum andaime
(...)
Uma pequena dose de ácido nítrico,
duas colheres de manteiga
e asas de morcego, quanto baste.

Temos aqui a solução que não é
decerto a esperada mas que, apesar de tudo,
serve perfeitamente.

Quem diria!!»


Apensa a Climas Ortopédicos vem uma SEPARATA GRATUITA, intitulada «antropofagia»86, com a data de 27 de Outubro de 1951. Pelo título se adivinha facilmente o tema, que goza de uma certa fortuna no movimento surrealista português. O poema limita-se a ser uma enumeração das partes do corpo e da ordem por que vão sendo comidas.

«ao almoço come-se a perna
 (...)», etc.

O seu interesse reside sobretudo na estranheza do tema e na naturalidade com que ele é tratado.

Imagem Devolvida surge-nos repleta de frases que revelam um voluntário automatismo de escrita que vai até à enumeração totalmente desmotivada:

«equivalência devolvida com rapidez
o elevador bem sei
mas mesmo assim
automaticamente verdadeira

fonética seguida pelos pássaros
A LUA

A LUA AZUL
janela(L)       e(U)      rosto(A)»87.

e

«estrada garganta carta asa; navio esfera engano
talvez relógio-de-sol cogumelo estação árvore
   (...)»88


Maria de Fátima Aires Pereira Marinho Saraiva,
O Surrealismo em Portugal e a Obra de Mário Cesariny de Vasconcelos
Dissertação de Doutoramento apresentada à FLUP, 1986.




Claridade dada pelo tempo, Mário Henrique Leiria,
1950-1951. Ilustração de Cruzeiro Seixas



***

 

O JOGO NA LITERATURA DE MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA

 

Mário-Henrique Leiria foi artista plástico, escritor, tradutor, entre muitas outras atividades, tendo falecido em 1980, com apenas 57 anos. Deixou publicada uma breve e incisiva obra, sendo mormente conhecidos pelo público os seus dois volumes de contos, embora existam outros registos de criação artística, muitos deles mantendo-se inéditos até aos dias de hoje.

O seu envolvimento no seio das atividades do grupo surrealista, de 1949 a 1951, permitiu-lhe experienciar «o jogo enquanto fórmula de criação coletiva genuinamente surrealista»,1 repercutindo-se o mesmo na sua produção artística pessoal e coletiva sob diversas formas: no processo de escrita automática; em jogos de pergunta-resposta, e de manipulação de textos populares; em projetos para espetáculos que incluem jogos poéticos realizados em interação com a assistência; em colagens e em inventários; em jogos de interpretação de sonhos e na apresentação de projetos irracionais de diversão.2

Ainda durante o período em que se considerou surrealista, e opondo-se ao servilismo e à arte propagandística vigente, Mário-Henrique teve a oportunidade de participar3 no mais disseminado dos jogos surrealistas (de origem francesa – le cadavre exquis), praticado nas suas expressões plástica e literária. Consiste o mesmo em compor uma frase ou um desenho de papel que se entrega parcialmente ocultado a outra pessoa para que esta, sem ter conhecimento da totalidade previamente desenhada ou escrita, continue livremente a obra.

A par destas experiências, a temática do jogo está bastante presente na obra literária leiriana. Alguns dos textos mais representativos serão aqui analisados, visando pensar neles este conceito.

Principie-se então esta análise recuperando algumas considerações de Johan Huizinga tecidas em Homo Ludens,4 onde é afirmado que o ato de jogar é não só inato ao homem, como é também a própria mola impulsionadora do desenvolvimento da civilização.

Huizinga enuncia diversos aspetos do ato de jogar, dentre os quais se destacam o facto de este se reger por regras próprias e de implicar mudança, alternância e movimento em múltiplas e possíveis direções.

Englobando esta perspetiva um carácter contingente, lúdico e instrutivo do jogo, aventa-se que o jogo leiriano, sob as suas múltiplas facetas, apresenta-se enquanto estratégia artística que rompe com determinada conceção (racionalista) da realidade, lançando algumas sementes de criatividade e de rebeldia singulares, que deram e continuam a dar um contributo importante para uma mudança no panorama cultural nacional. Através da literatura, o autor enceta um jogo com o poder autoritário, jogo do qual são percetíveis inúmeras variantes combinatórias.

Estas variantes são passíveis de se enquadrar nas divisões que Roger Caillois estabelece em Les jeux et les hommes,5 caracterizando o jogo no homem de acordo com o papel da competição (agôn), da sorte (álea), do simulacro (mimicry) ou da vertigem (ilinx). Delas serão apresentados, seguidamente, exemplos ilustrativos na obra leiriana.

A par da utilização direta e explícita da palavra jogo, existem na obra de Mário-Henrique Leiria textos que aludem à prática do mesmo.

Sob a forma de competição (agôn), por exemplo, é bastante frequente a evocação de jogos de xadrez, que amiúde serviram também de motivo na expressão plástica de artistas surrealistas. Deste modo, um título sugestivo é Xeque-mate,6 termo que ilustra o final desse mesmo conto, constituindo o resultado de um longo e entediante jogo de xadrez entre o narrador e um passageiro anónimo, durante uma viagem de comboio. No final, após o término do jogo, o narrador põe termo à viagem do seu adversário, dando-lhe um empurrão para fora do comboio. A prática do xadrez é igualmente referenciada no conto Jantar de amigos,7 que decorre no restaurante «Quatro ases» e onde acontece um envenenamento coletivo, sendo Guilhermino, o xadrezista, um dos envenenados.

Estes exemplos preliminares ilustram já uma característica transversal a toda a obra leiriana: a recorrente presença de jogos que metaforizam situações de relacionamentos humanos, isto é, jogos de linguagem que frequentemente são usados como veículo de comunicação e transposição entre a ficção e a realidade. […]

Em suma, a palavra adquire sentidos distintos em contextos específicos, sendo o(s) significado(s) da mesma estabelecido(s) pelo uso que lhe é dado num determinado jogo de linguagem.

A abordagem que se segue a alguns escritos leirianos centrar-se-á na análise de jogos de linguagem nos quais estão presentes três fatores essenciais: o visual, através das imagens evocadas; o auditivo, pelo ritmo e pela sonoridade; e a significação.

 

Ler mais em: O jogo na literatura de Mário-Henrique Leiria”, Marta Braga. In: O Jogo do Mundo, coord. Margarida Alpalhão, Carlos Carreto e Isabel Dias. Lisboa, IELT - NOVA FCSH, 2017, pp. 145-168.

 



SOBRE A LITERATURA SURREALISTA EM PORTUGAL


Para se avaliar a literatura surrealista não se pode nem deve desprezar a sua relação com as artes plásticas. As maiores manifestações públicas do efémero Surrealismo português passaram-se em exposições. Muitos dos autores de que falámos são também e predominantemente pintores. Ousaria até afirmar, apesar de isso sair completamente do âmbito do presente estudo, que a pintura surrealista, em Portugal, é mais sólida do que a literatura ou que, em geral, mais surrealismo nos quadros do que nos poemas e prosas de ficção.

O desfasamento espácio-temporal em relação ao movimento francês, o diferente ambiente político nos dois países (o que faz com que a um vivo posicionamento político em França, sobretudo no Second Manifeste, corresponda um certo retraimento em Portugal) e o peso da tradição literária portuguesa nos fins da década de 40 não permitiram que o surrealismo português fosse além de algumas manifestações que se concentraram principalmente em dois ou três anos. A partir daí é mais importante a influência exercida por Cesariny ou António Maria Lisboa nos poetas mais novos do que a consciência de estar a praticar uma poética surrealista.

Maria de Fátima Aires Pereira Marinho Saraiva,
O Surrealismo em Portugal e a Obra de Mário Cesariny de Vasconcelos.
Dissertação de Doutoramento apresentada à FLUP, 1986.



CARACTERÍSTICAS DA PINTURA SURREALISTA


origem do Surrealismo nos anos posteriores à 1.ª Guerra Mundial, tendo como primado a afirmação do indivíduo na sua verdade interior;

afirmação do Surrealismo com a publicação do Manifesto do Surrealismo (1924) por André Breton;

movimento que defende a liberdade individual e a exploração do inconsciente;

gosto pela representação do mistério, do inverosímil e do insólito como recursos criativos, e pela ambiguidade do significado;

reconhecimento das ideias de Freud e do método da psicanálise como meio de, a partir do inconsciente, se chegar à verdade de cada indivíduo;

utilização de uma linguagem figurativa realista em composições incongruentes e bizarras;

utilização a nível plástico de técnicas do Cubismo e do Dadaísmo, como colagem, assemblage, frottage e decalcomania;

aplicação do automatismo psíquico como criação imediata, espontânea e aleatória;

criação em estado semi-hipnótico, sob influência do álcool, da fome ou da droga;

temática inspirada no onírico e no erotismo;

preferência pelo mundo da magia;

criação de paisagens amplas, ambíguas e irreais ou de espaços vazios, habitados por figurações estranhas, com símbolos e signos diversos – astrais, animais, vegetais.

Exame Nacional de História da Cultura e das Artes, 11.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho). Critériosde classificação da prova724, 1ª fase. IAVE, 2015.


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quarta-feira, 17 de junho de 2015

A música do ser (Sophia Andresen)





BACH SEGÓVIA GUITARRA

A música do ser
Povoa este deserto
Com sua guitarra
Ou com harpas de areia

Palavras silabadas
Vêm uma a uma
Na voz da guitarra

A música do ser
Interior ao silêncio
Cria seu próprio tempo
Que me dá morada

Palavras silabadas
Unidas uma a uma
Às paredes da casa

Por companheira tenho
A voz da guitarra

E no silêncio ouvinte
O canto me reúne
De muito longe venho
Pelo canto chamada

E agora de mim
Não me separa nada
Quando oiço cantar
A música do ser
Nostalgia ordenada
Num silêncio de areia
Que não foi pisada

Sophia de Mello Breyner Andresen




QUESTIONÁRIO:

Refira dois dos traços que contribuem para a humanização da música nas cinco primeiras estrofes do poema, apresentando transcrições que comprovem a sua resposta.

A humanização da música decorre de vários aspetos, nomeadamente do facto de esta:
– estar associada a vivências subjetivas do ser humano − «Povoa este deserto» (v. 2);
– ser indissociável da identidade do ser humano − «A música do ser / Interior ao silêncio / Cria seu próprio tempo / Que me dá morada» (vv. 8-11);
– possuir uma voz que é companheira do «eu» poético − «Palavras silabadas / Vêm uma a uma / Na voz da guitarra» (vv. 5-7); «Por companheira tenho / A voz da guitarra» (vv. 15-16).


Explicite a importância da música na construção da identidade do «eu», de acordo com o conteúdo das duas últimas estrofes.

A música é fundamental na construção da identidade do «eu», na medida em que:
– tem o poder de conferir unidade ao «eu» poético – «O canto me reúne» (v. 18); «E agora de mim / Não me separa nada» (vv. 21-22);
– potencia o reencontro com um tempo primordial e puro – «De muito longe venho / Pelo canto chamada» (vv. 19-20); «Num silêncio de areia / Que não foi pisada» (vv. 26-27).


Exame Nacional de Português, 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho).
 IAVE, 2015, 1ª fase. Prova 639 e critériosde classificação.






SOPHIA E O FIO DE SÍLABAS

A poesia de Sophia sabe que as coisas do mundo não podem ecoar linearmente nas palavras ‑ porque a palavra isolada não conseguiria libertar-se da arbitrariedade que, ao mesmo tempo que a associa a um referente, não anula a existência entre eles de uma separação por onde o caos sempre ameaça emergir.
Em contrapartida, as sílabas ordenadas são já a voz do mundo, pois este precisa da poesia para falar e, por isso, produz discurso não palavras, mas versos: "O meu viver escuta / A frase que de coisa em coisa silabada / Grava no espaço e no tempo a sua escrita" (Sophia de Mello Breyner Andresen, Geografia, Obra Poética III, p. 89). Como é dito no poema "Bach Segóvia Guitarra", "Palavras silabadas / Vêm uma a uma", e só a silabação traduz "A música do ser" (Idem, p. 33). Digamos, então, que as sílabas são a matéria que permite encontrar "(...) a ordem intacta do mundo / A palavra não ouvida" (Idem, p. 67), e que esta é sempre relacional e rítmica.
Em absoluta concordância com esta perspetiva, o poeta é "um escutador", e "fazer versos é estar atento", "[d]eixar que o poema se diga por si" (Idem, "Arte Poética IV", Dual, Obra Poética III, pp. 166-7), ou seja, ouvir as frases por inteiro, evitar que o ritmo se quebre, deixar que uma sílaba conduza a outra para que as palavras justas possam surgir (juntas): as relações entre os sons tecem o fio discursivo que assegura a verdade do sentido porque o submetem a uma certa geometria, a uma ordem construtiva. Assim, apesar de procurada e humanamente "feita", a ordem do poema é também, e sem contradição, "escutada" como se fosse recebida dos deuses, dado resultar inteiramente livre.





*



A VOZ - SINAL DO SER

«Esta voz nenhuma disciplina a domina... ela é a voz do mundo: CANTO. Ela é o poema do Ser no sentido em que ela está para além de nós mesmos, no sentido em que o homem é este poema que o Ser começou...» (Daniel Charles, Les Temps de la Voix. Paris, Ed. Universitaires J. P. Delarge 1978).
Assim quando Daniel Charles diz: «Todos os homens têm uma voz, isto é, escutam o Ser», é legítimo considerar que não se trata aqui da escuta feita através do órgão auditivo mas sim da escuta que se realiza através do instrumento CORPO, que ele é simultaneamente aquilo que escuta e que é escutado e que a VOZ é a materialização dessa mesma escuta.
Teremos assim como hipótese possível que a voz é uma representação daquilo que tem de mais essencial o produto da vibração do corpo total, sico e psíquico posto em condições de disponibilidade e ativação que lhe permitem captar a vibração exterior com a qual o seu íntimo se encontra em sintonia, o que não exclui o processo inverso. Daí que, ao falar-se de voz se refira uma emissão sonora produzida por um ser global, recetor e transmissor, estando implicadas neste fenómeno vibratório todas as capacidades do ser que pensa, age, goza e ainda não perdeu o sentido de humor que o impele a comunicar com os outros.
A complexidade deste fenómeno natural é, simultaneamente, a realidade que nos obriga a avaliar quanto de animal - porque de corporal e intuitivo - quanto de psíquico e mental ele implica o que por si só chega para estabelecer as normas do relacionamento entre aquele que procura encontrar a sua autêntica voz e aquele que crê poder lançar algumas pistas nessa procura. […]
«… a verdadeira música do Ser não existe ainda porque nós estamos em vias de a compor» (Daniel Charles).

A voz – sinal do ser”, ensaio de Maria João Serrão com citações de Daniel Charles. In: Conservatório Nacional-150 Anos de Ensino de Teatro, edição do Centro de Documentação e Investigação Teatral da Escola Superior de Teatro e 
Cinema de Lisboa, 1987, pp.103-108; in: Revista da A.P.E.M. - Associação Portuguesa de Educação Musical , Boletim nº. 53, Abril/Junho 1987, pp.10-12.









OPINIÃO

As aventuras de Sophia na pátria dos examinadores
Estes poetas dão cabo da cabeça dos alunos com tantas metáforas.


O poema de Sophia de Mello Breyner Andresen que era objecto de duas perguntas que formavam um item da Prova Escrita de Português do 12.º Ano chama-se “Bach Segóvia Guitarra” e começa assim: “A música do ser/ Povoa este deserto/ Com sua guitarra/ Ou com harpas de areia// Palavras silabadas/ Vêm uma a uma/ Na voz da guitarra// A música do ser/ Interior ao silêncio/ Cria seu próprio tempo/ Que me dá morada”.
Como trabalho de interpretação solicitava-se aos alunos que referissem “dois traços que contribuem para a humanização da música” (alínea 4) e que explicitassem “a importância da música na construção da identidade do ‘eu’” (alínea 5).
Até um leitor sem treino na leitura da poesia de Sophia tem boas razões para se interrogar onde foram os autores da prova encontrar sentidos explícitos ou implícitos que autorizem a interpretação formulada como “humanização da música”. Sabendo nós que as coisas da literatura servem, não apenas na escola, para ministrar lições de humanismo, intuímos que os examinadores leram no “ser de “a música do ser” nada mais nada menos do que o ser humano. Confirmamos que a nossa intuição estava correcta quando lemos o “cenário de resposta” que é apresentado nos “critérios de classificação”: “A humanização da música decorre (…) do facto de esta estar associada a vivências subjectivas do ser humano” e, além disso, de “ser indissociável da identidade do ser humano”. Assim, onde no poema se lê “ser” os examinadores lêem imediatamente e sem hesitações “ser humano”. Para eles “ser”, substantivado, não pode ser senão isso. Que pensarão eles que é Ser e Tempo, a principal obra de Heidegger? Um tratado de antropologia? Mas mesmo que desconheçam tudo acerca do ser enquanto objecto da filosofia pelo menos desde Parménides, que nunca tenham ouvido falar de essência e de ente e que não saibam o que é a ontologia, não podem, sem erro e violência, interpretar um poema de Sophia de maneira a torná-lo completamente estranho, e até antagónico, aos princípios da poética nele implícita e construir uma parte da prova com base nessa interpretação, pedindo aos alunos um exercício que só pode ser considerado correcto se deturpar completamente o poema.
A “música do ser” evoca um tópico fundamental na poesia de Sophia. Trata-se de uma ideia de poesia como escuta das coisas essenciais, primordiais. A “música do ser” advém da procura da “ordem intacta do mundo”, da perfeição, da totalidade, da pureza e da harmonia. E esse mundo é mais povoado por deuses do que por homens. Daí o fascínio de Sophia pela Grécia clássica; O “ser”, aqui, nada tem a ver com o “ser humano”, é a veemência e a verdade das coisas, de onde Sophia sempre quis extrair um “poema imanente”. Podemos ler no final de um poema chamado “Sua Beleza” (de O Nome das Coisas): “Prometo um mundo mais inteiro e mais real/ Como pátria do ser”. E lemos também na sua “Arte Poética II”: “A poesia não me pede propriamente uma especialização pois a sua arte é uma arte do ser (...) A poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens”. Trazer para aqui qualquer questão relacionada com a “humanização” e “vivências subjectivas do ser humano” é deturpar o poema de maneira grosseira e reduzi-lo a lugares-comuns que não dizem nada sobre ele, mas dizem muito sobre a ideia que os examinadores têm da poesia. Ler o poema a partir de chaves como a das “vivências subjectivas” e de identidades leva o poema de Sophia para territórios de onde a autora se afastou radicalmente. A sua poesia é a busca de uma palavra impessoal e implica a despersonalização. Ela é completamente estranha a essa forma de subjectividade, de expressão e de identidade que os examinadores pressupõem. Por isso é que o mito da Musa é tão importante na sua obra. A poesia como invenção das Musas significa que o poeta é fiel a uma inspiração musical, a uma palavra que tem uma relação com o ser enquanto verdade. “A música do ser” é algo consubstancial à própria poesia porque o poema é canto, e a música é a arte das Musas. Fazer de tudo isto matéria de “vivências subjectivas” e querer que os alunos identifiquem aqui a construção de uma identidade é como falar em bugalhos quando o poeta fala em alhos. Que inanidades terão os alunos que papaguear para estarem conformes ao “cenário de resposta” e coincidirem com os critérios de classificação? E quem não responder de maneira acertada é porque não está à altura das exigências interpretativas dos examinadores ou porque foi confrontado com uma missão impossível?
E, sobre isto, o que diz a “Associação de Professores de Português”? Que “as duas questões apresentadas, também coerentemente elaboradas, obrigavam a que o examinando assimilasse toda a linguagem metafórica aí existente, exigindo, de novo, grande concentração”. Estes poetas dão cabo da cabeça dos alunos com tantas metáforas. Ainda bem que os examinadores têm à sua disposição um bom dicionário de metáforas que facultaram amigavelmente à Associação de Professores de Português.
António Guerreiro (crítico literário), 19/06/2015 - 05:38
http://www.publico.pt/portugal/noticia/as-aventuras-de-sophia-na-patria-dos-examinadores-1699440?page=-1




OPINIÃO

Analisar a poesia em exame nacional ou como deturpar um poema


Para quem tenha lido o que António Guerreiro escreveu no PÚBLICO, “As aventuras de Sophia na pátria dos examinadores”, na edição de 19 de Junho, sexta-feira, espanta que a lucidez desse artigo colida com a inanidade das declarações de Edviges Ferreira, presidente da Associação de Professores de Português, segundo a qual o poema de Sophia exigia “grande concentração”. Que significará, na semântica de Edviges, “grande concentração”?
De facto, quer para quem faz os exames, quer para quem, com responsabilidades oficiais – caso da presidente da APP – sabe que, em contexto de exame nacional de Português, o texto poético tem de ser avaliado, os poetas podem mesmo, como diz Guerreiro, dar “cabo da cabeça [dos examinadores] com tantas metáforas”. Creio que, para além do que António Guerreiro objectivamente afirma (“onde no poema se lê “ser” os examinadores lêem imediatamente e sem hesitações “ser humano”. Para eles “ser”, substantivado, não pode ser senão isso. Que pensarão eles que é Ser e Tempo, a principal obra de Heidegger? Um tratado de antropologia? Mas mesmo que desconheçam tudo acerca do ser enquanto objecto da filosofia pelo menos desde Parménides, que nunca tenham ouvido falar de essência e de ente e que não saibam o que é a ontologia, não podem, sem erro e violência, interpretar um poema de Sophia de maneira a torná-lo completamente estranho, e até antagónico, aos princípios da poética nele implícita e construir uma parte da prova com base nessa interpretação, pedindo aos alunos um exercício que só pode ser considerado correcto se deturpar completamente o poema.”), há espaço para nos questionarmos sobre o que pode um professor de Português fazer, ao longo do ano lectivo, quanto à leccionação do texto lírico. E o que pode fazer é, por razões várias, mas que merecem debate, manifestamente pouco.
O problema reside, a meu ver, numa questão de didáctica e de pedagogia do texto literário. É impossível facultar aos alunos, com leitura metódica efectiva, todos os poemas seja de que poeta for. As razões são de ordem prática: ao elaborar-se um programa escolar selecionam-se textos segundo um critério de qualidade e, assim sendo, que outro poema de Sophia mereceria ser analisado em Exame? Por acaso “Arte Poética II” não deveria ser texto obrigatório a constar nos manuais de Português do 10.º ano? Poema sobre a poesia, aí se explica por que razão a poesia é uma “arte do ser” e, como bem viu Guerreiro, o ser da poesia nada tem que ver, em Sophia, com o que os cenários de resposta do Exame Nacional propõem. Logo, a questão é grave: segundo os critérios, os alunos terão de dar uma resposta errada para terem certo este item do exame. Se os examinadores lessem o artigo de António Guerreiro chegariam a uma conclusão simples: qualquer que seja a resposta dada pelos alunos terá de ter cotação máxima no conteúdo, uma vez que a própria proposta de cenário é um erro crasso por parte dos que conceberam as questões e os respectivos cenários. E a questão, que lateralmente Guerreiro convoca, é mesmo a de dar, para o Exame Nacional desta disciplina, noções de poética dos autores que constam do programa. Noções de poética, isto é, as coordenadas gerais de determinada obra de dado autor, em função do contexto de produção e da comunidade interliterária a que esse autor pertence. A esta luz pode o professor escolher textos que não estão nos manuais – pode e deve fazer das aulas exercícios de leitura contrastiva/comparativa, facultando aos alunos alguma crítica literária, sem cuja leitura os alunos não conseguem apropriar-se do registo científico que, à saída do Ensino Secundário, deveriam dominar.
Em função de uma “pedagogia da admiração” (assim defende Helena Buescu) essas coordenadas de leitura conduziriam, seja em face de que poema for, a um comentário centrado na linguagem do texto em presença, e não em lugares-comuns e leituras superficiais, que é justamente o que os cenários de resposta são. A leitura do texto poético exige, de facto, “grande concentração”, como sabiamente diz Edviges, mas essa concentração deriva de um saber literário que, na relação pedagógica, se transfere do professor para o aluno, consolidando – através da escrita – a capacidade da leitura inferencial. Isso exige questionários que não corrompam os textos literários, algo que, no limite, implicaria que os fazedores dos exames soubessem que a ideia de ser em Sophia não autoriza as perguntas propostas.
Já em 2012, António Guerreiro afirmava o seguinte: “Trata-se sempre de perguntas que não convidam o aluno a ler e a interpretar, mas a repetir leituras e interpretações que lhe foram fornecidas. [...] Algum examinando que se desloque ligeiramente em relação ao "cenário de resposta" pode provocar cataclismos em cadeia: em primeiro lugar, afasta-se dos "critérios específicos de classificação [...]" o que significa fugir do horizonte dos "descritores do nível de desempenho no domínio específico da língua”“. Assim se desautorizam os professores quanto à sua liberdade para corrigir, em função da análise que os estudantes fazem, a expressão escrita e a capacidade inferencial de quem vai a Exame. E assim o acto de ensinar se tem vindo a transformar em corrupção do que, idealmente, o ensino deveria ser – nomeadamente o ensino do Português –, a saber: acto crítico, de verdadeiro rigor, não porque se queira fazer um exame infalível numa disciplina que, porque lida com a linguagem, não pode ser idêntica às matemáticas ou químicas, mas de rigor porque não se pode propor como cenário de resposta correcto o que o poema, neste caso de Sophia, jamais diz. Isso é falta de rigor, Senhores Examinadores. Por muito que mascarem com níveis de desempenho o absurdo dos cenários de resposta que propõem, esses cenários é que são propostas de correcção verdadeiramente subjectivas, feitas, afinal de contas, por quem nunca se deu ao trabalho de ler, para saber o “como diz” da poesia, Ser e Tempo, de Heidegger… E aqui, pergunte-se, como podem os professores de Português aceitar semelhantes dislates e idiotices por parte do IAVE?

Analisar a poesia em exame nacional ou como deturpar um poema”, António Carlos Cortez (Professor e crítico literário), Público, 15/07/2015.




Poderá também gostar de ler:

. “Professores denunciam falhas graves na correcção do exame de Português”, Clara Viana e Graça Barbosa Ribeiro. Público, 15/07/2015.

Perfil poético e estilístico de Sophia de Mello Breyner Andresen - apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da lírica de Sophia de Mello Breyner Andresen, por José Carreiro. Folha de Poesia, 2020-07-17


terça-feira, 16 de junho de 2015

A experiência estética

Pormenor de Ofélia, 1851–1852, John Everett Millais


A seguinte estrofe do poema Gozo e Dor, de Almeida Garrett, é um exemplo de que a arte transmite sentimentos.

Dói-me a alma, sim; e a tristeza
Vaga, inerte e sem motivo,
No coração me poisou.
Absorto em tua beleza,
Não sei se morro ou se vivo,
Porque a vida me parou.


Será que toda a arte transmite sentimentos?
Na sua resposta:
– identifique, referindo o seu nome, a teoria da arte segundo a qual toda a arte transmite sentimentos;
– apresente inequivocamente a sua posição;
– argumente a favor da sua posição.



Cenário de resposta

A resposta integra os aspetos seguintes, ou outros igualmente relevantes.
Identificação da teoria da arte segundo a qual toda a arte transmite sentimentos:
teoria expressivista da arte OU teoria da arte como expressão.
Apresentação inequívoca de uma posição de concordância, total ou parcial, ou de discordância, total ou parcial, relativamente à teoria expressivista da arte.
Justificação da posição defendida:
 No caso de o examinando concordar com a teoria expressivista da arte:
a arte é uma expressão intencional de emoções sentidas pelo artista, as quais são clarificadas e transmitidas a um público por meio de linhas, cores, ações, palavras ou sons;
para algo ser uma obra de arte, é necessário que o artista sinta, clarifique e transmita um estado emocional a um público;
qualquer obra de arte tem de ser capaz de nos emocionar, e o artista é alguém que lida essencialmente com emoções;
as pessoas subscrevem implicitamente esta teoria quando criticam uma obra de arte por não as comover ou por as deixar indiferentes, sublinhando a íntima relação entre arte e emoção.
No caso de o examinando não concordar com a teoria expressivista da arte:
muitos artistas afirmam não ter tido a intenção de comunicar emoções nas suas obras;
há obras complexas, como algumas obras de ficção, em que diferentes personagens geram diferentes tipos de emoções nas pessoas, sendo implausível que o autor tenha experimentado todas essas emoções;
os artistas e o seu público não têm de partilhar um estado emocional; por exemplo, muitos atores estão mais preocupados em gerar uma certa emoção no público do que em sentir genuinamente essa emoção;
despertar emoções pode ser uma questão de usar as formas adequadas, sem que o artista precise de sentir essas emoções; por exemplo, um escritor de livros de terror pode não ter sentido terror, mas saber como causá-lo nos leitores por meio das formas literárias adequadas a esse fim;
a definição de arte como expressão é demasiado restritiva, excluindo da arte um vasto conjunto de obras geralmente aceites como tal, como é o caso, por exemplo, de obras de arte conceptual.