quinta-feira, 18 de junho de 2015

Mário Henrique Leiria surrealista




LISBOA AINDA REVISITADA EM 70!

Um pouco de sopa
uma posta de garoupa.
Mais uma vez
os alegres cadáveres do costume
e outra vez...
olha o Simões... olha o Armindo
é lindo... é lindo
(por favor
dá-me aí o RATOFINDO)
sô barbeiro
olhe que esqueceu a «pedra nua»

A ponte sobre o Tejo
(viva mais uma ode genial)
Que tal? Que tal?
Quando a vir pela primeira vez
vou com certeza ter saudade
do tempo em que acreditava
que nunca teria que rever
um trambolho
com molho
português,
o molho ribeirinho habitual.

Olha, o melhor parece ser
um pouco mais de sopa
e — porque não? — outra posta de garoupa.

Mário Henrique Leiria




POIS...

Há anos que venho afirmando,
sempre tenho dito
que, afinal,
Portugal
é que é o país do cadáver esquisito

que esquisitice a do Simões
que beleza de antiguidade a do Tareco
e aí vamos nós
bebendo, sapientes, nos salões
da Natália...
e viva a PORTUGÁLIA
que aqui, no Brasil,
edita e propaga o Alves de Arganil

Montes de propostas desonestas
têm sido feitas ao cadáver.
Chamam-lhe periquito
tão bonito... tão bonito...!
ou convidam-no — com dignidade
para festas
com o Simões... claro, com o Simões
...como deve estar namora
esse Simões!
Isto de ser o tal
cadáver esquisito
só mesmo
em Portugal.
Um pouco de sal
e Soyo — o molho japonês —
couves — muitas —
Remexer e ficar com as orelhas
e voltar a Portugal
para assistir ao entremês... final.

Mário Henrique Leiria



Nota: “O cadáver português foi João Gaspar Simões, já antigo «inimigo» dos surrealistas desde a polémica no jornal Sol.” (Mª de Fátima Saraiva, O Surrealismo em Portugal e a Obra de Mário Cesariny de Vasconcelos, FLUP, 1986)



 
Grupo Surrealista de Lisboa



MÁRIO HENRIQUE LEIRIA que, quase desde o início esteve ligado ao Grupo Surrealista Dissidente, tendo feito parte das experiências do Cadáver Esquisito, só na década de 70 começa a publicar os seus livros, tendo até essa data colaborado, mais ou menos esporadicamente em jornais e revistas.

Há um poema-colagem datado de 1949, que circulou apenas numa folha volante73 e que, pela sua riqueza irónica e imagística, merece ser reproduzido na íntegra:


«AVISO
FOI PRESO
PELA LEGIÃO ÁRABE
UM
ARISTIDES
DE CABELOS DE CRISTAL
QUE
FOI O AUTOR DA MORTE
DE
480 CRIANÇAS
COM
BETUME JUDAICO
E
ZARCÃO INGLÊS
A
SETENÇA
SERÁ
UM GRANDE ÊXITO
PELO EMPREGO JUDICIOSO DAS CORES».


A sua obra literária é, quase na totalidade, formada por poemas e pequenos textos que narram casos insólitos, com um estilo bastante sui generis.

Dos poemas, só uma pequena parte foi publicada em livro: Imagem Devolvida Poema Mito74. Mário Cesariny de Vasconcelos trouxe ainda a público alguns textos de dois livros inéditos: 6 poemas de Climas Ortopédicos75 e cinco de Claridade Dada pelo Tempo76.

Ao analisarmos as características surrealistas na poesia de Mário Henrique servimo-nos, evidentemente, do material publicado, do Espólio existente na Biblioteca Nacional e dos poemas inéditos de Climas Ortopédicos (Dez. 1949-Jan. 1950) e de Claridade Dada pelo Tempo (Nov. 1951)77.

Estes textos, datados entre 1949 e 1951, possuem inegáveis traços surrealistas. São inúmeras as imagens tipicamente bretonianas que encontramos em Climas Ortopédicos:

«O amor feito de noite
ao som metálico
de uma orquídea vermelha
é a estrada uivante
que se enrosca em tranças
de animais marinhos
       (...)
Os teus olhos
são a COLOSSAL PIRÂMIDE
por onde sobem Vermes»78.
«Entre a bicicleta e a laranja
vai a distância duma camisa branca»79
ou
«Eu sei que as túlipas
são os olhos de todos os aviões perdidos
Eu sei que as cidades
são os esqueletos das aves de rapina»80
«Qualquer encontro
entre mim
e a tua égua aquática
é sonho
mas verdade
feita de eco nostálgico e
tábuas de engomar longínquas»81.


Em Claridade Dada pelo Tempo, Mário Henrique Leiria assume directamente uma filiação bretoniana ao apor uma transcrição de L'Amour Fou: «La beauté sera erotique — voillé (sic) explosante — fixe, magique — circonstancielle ou ne sera pas...» Apesar de tudo, porém, os poemas não se ressentem tanto da influência surrealista como os de Climas Ortopédicos. Deparamos, apenas, com uma ou outra imagem que nos remete para a lição de Breton:

«em creança aprendi
a olhar a lua distante
mar ignorado da memória
 — lâmina aguda e
extremamente fina —
a grande aranha do tempo
duas asas sono que
nos foi dado outrora»82.

Em Imagem Devolvida há uma afirmação bem característica dos ditames surrealistas:

«posso desde já afirmar que há dois corpos
ligados por uma vara metálica vibrando
constantemente digo entre o deserto
e um rosto
de criança morta»83.

Mas, como já vem sendo hábito, as metáforas que designam a mulher são sempre das mais ousadas e onde a distância entre os dois termos é maior. Num texto, inédito, «autorretrato telegráfico»84, ela é designada com os mais espectaculares atributos:

«(...)
meu pequeno e carinhoso motor diesel
(...)
meu avião de jacto
perdido ao jogo de dados
meu caranguejo-tigre
minha mala-infância
meu vento-mulher
(…)»

O poema «resultado inesperado» de Climas Ortopédicos 85 é uma espécie de dissertação sobre o homicídio. O tema é tratado de um modo aparentemente neutro, onde não falta o humor negro e a crítica aos valores vigentes:

«Anuncia-se frequentemente
em todos os jornais
que por uma insignificante quantia
qualquer pessoa
pode cair dum andaime
(...)
Uma pequena dose de ácido nítrico,
duas colheres de manteiga
e asas de morcego, quanto baste.

Temos aqui a solução que não é
decerto a esperada mas que, apesar de tudo,
serve perfeitamente.

Quem diria!!»


Apensa a Climas Ortopédicos vem uma SEPARATA GRATUITA, intitulada «antropofagia»86, com a data de 27 de Outubro de 1951. Pelo título se adivinha facilmente o tema, que goza de uma certa fortuna no movimento surrealista português. O poema limita-se a ser uma enumeração das partes do corpo e da ordem por que vão sendo comidas.

«ao almoço come-se a perna
 (...)», etc.

O seu interesse reside sobretudo na estranheza do tema e na naturalidade com que ele é tratado.

Imagem Devolvida surge-nos repleta de frases que revelam um voluntário automatismo de escrita que vai até à enumeração totalmente desmotivada:

«equivalência devolvida com rapidez
o elevador bem sei
mas mesmo assim
automaticamente verdadeira

fonética seguida pelos pássaros
A LUA

A LUA AZUL
janela(L)       e(U)      rosto(A)»87.

e

«estrada garganta carta asa; navio esfera engano
talvez relógio-de-sol cogumelo estação árvore
   (...)»88


Maria de Fátima Aires Pereira Marinho Saraiva,
O Surrealismo em Portugal e a Obra de Mário Cesariny de Vasconcelos
Dissertação de Doutoramento apresentada à FLUP, 1986.




Claridade dada pelo tempo, Mário Henrique Leiria,
1950-1951. Ilustração de Cruzeiro Seixas



***

 

O JOGO NA LITERATURA DE MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA

 

Mário-Henrique Leiria foi artista plástico, escritor, tradutor, entre muitas outras atividades, tendo falecido em 1980, com apenas 57 anos. Deixou publicada uma breve e incisiva obra, sendo mormente conhecidos pelo público os seus dois volumes de contos, embora existam outros registos de criação artística, muitos deles mantendo-se inéditos até aos dias de hoje.

O seu envolvimento no seio das atividades do grupo surrealista, de 1949 a 1951, permitiu-lhe experienciar «o jogo enquanto fórmula de criação coletiva genuinamente surrealista»,1 repercutindo-se o mesmo na sua produção artística pessoal e coletiva sob diversas formas: no processo de escrita automática; em jogos de pergunta-resposta, e de manipulação de textos populares; em projetos para espetáculos que incluem jogos poéticos realizados em interação com a assistência; em colagens e em inventários; em jogos de interpretação de sonhos e na apresentação de projetos irracionais de diversão.2

Ainda durante o período em que se considerou surrealista, e opondo-se ao servilismo e à arte propagandística vigente, Mário-Henrique teve a oportunidade de participar3 no mais disseminado dos jogos surrealistas (de origem francesa – le cadavre exquis), praticado nas suas expressões plástica e literária. Consiste o mesmo em compor uma frase ou um desenho de papel que se entrega parcialmente ocultado a outra pessoa para que esta, sem ter conhecimento da totalidade previamente desenhada ou escrita, continue livremente a obra.

A par destas experiências, a temática do jogo está bastante presente na obra literária leiriana. Alguns dos textos mais representativos serão aqui analisados, visando pensar neles este conceito.

Principie-se então esta análise recuperando algumas considerações de Johan Huizinga tecidas em Homo Ludens,4 onde é afirmado que o ato de jogar é não só inato ao homem, como é também a própria mola impulsionadora do desenvolvimento da civilização.

Huizinga enuncia diversos aspetos do ato de jogar, dentre os quais se destacam o facto de este se reger por regras próprias e de implicar mudança, alternância e movimento em múltiplas e possíveis direções.

Englobando esta perspetiva um carácter contingente, lúdico e instrutivo do jogo, aventa-se que o jogo leiriano, sob as suas múltiplas facetas, apresenta-se enquanto estratégia artística que rompe com determinada conceção (racionalista) da realidade, lançando algumas sementes de criatividade e de rebeldia singulares, que deram e continuam a dar um contributo importante para uma mudança no panorama cultural nacional. Através da literatura, o autor enceta um jogo com o poder autoritário, jogo do qual são percetíveis inúmeras variantes combinatórias.

Estas variantes são passíveis de se enquadrar nas divisões que Roger Caillois estabelece em Les jeux et les hommes,5 caracterizando o jogo no homem de acordo com o papel da competição (agôn), da sorte (álea), do simulacro (mimicry) ou da vertigem (ilinx). Delas serão apresentados, seguidamente, exemplos ilustrativos na obra leiriana.

A par da utilização direta e explícita da palavra jogo, existem na obra de Mário-Henrique Leiria textos que aludem à prática do mesmo.

Sob a forma de competição (agôn), por exemplo, é bastante frequente a evocação de jogos de xadrez, que amiúde serviram também de motivo na expressão plástica de artistas surrealistas. Deste modo, um título sugestivo é Xeque-mate,6 termo que ilustra o final desse mesmo conto, constituindo o resultado de um longo e entediante jogo de xadrez entre o narrador e um passageiro anónimo, durante uma viagem de comboio. No final, após o término do jogo, o narrador põe termo à viagem do seu adversário, dando-lhe um empurrão para fora do comboio. A prática do xadrez é igualmente referenciada no conto Jantar de amigos,7 que decorre no restaurante «Quatro ases» e onde acontece um envenenamento coletivo, sendo Guilhermino, o xadrezista, um dos envenenados.

Estes exemplos preliminares ilustram já uma característica transversal a toda a obra leiriana: a recorrente presença de jogos que metaforizam situações de relacionamentos humanos, isto é, jogos de linguagem que frequentemente são usados como veículo de comunicação e transposição entre a ficção e a realidade. […]

Em suma, a palavra adquire sentidos distintos em contextos específicos, sendo o(s) significado(s) da mesma estabelecido(s) pelo uso que lhe é dado num determinado jogo de linguagem.

A abordagem que se segue a alguns escritos leirianos centrar-se-á na análise de jogos de linguagem nos quais estão presentes três fatores essenciais: o visual, através das imagens evocadas; o auditivo, pelo ritmo e pela sonoridade; e a significação.

 

Ler mais em: O jogo na literatura de Mário-Henrique Leiria”, Marta Braga. In: O Jogo do Mundo, coord. Margarida Alpalhão, Carlos Carreto e Isabel Dias. Lisboa, IELT - NOVA FCSH, 2017, pp. 145-168.

 



SOBRE A LITERATURA SURREALISTA EM PORTUGAL


Para se avaliar a literatura surrealista não se pode nem deve desprezar a sua relação com as artes plásticas. As maiores manifestações públicas do efémero Surrealismo português passaram-se em exposições. Muitos dos autores de que falámos são também e predominantemente pintores. Ousaria até afirmar, apesar de isso sair completamente do âmbito do presente estudo, que a pintura surrealista, em Portugal, é mais sólida do que a literatura ou que, em geral, mais surrealismo nos quadros do que nos poemas e prosas de ficção.

O desfasamento espácio-temporal em relação ao movimento francês, o diferente ambiente político nos dois países (o que faz com que a um vivo posicionamento político em França, sobretudo no Second Manifeste, corresponda um certo retraimento em Portugal) e o peso da tradição literária portuguesa nos fins da década de 40 não permitiram que o surrealismo português fosse além de algumas manifestações que se concentraram principalmente em dois ou três anos. A partir daí é mais importante a influência exercida por Cesariny ou António Maria Lisboa nos poetas mais novos do que a consciência de estar a praticar uma poética surrealista.

Maria de Fátima Aires Pereira Marinho Saraiva,
O Surrealismo em Portugal e a Obra de Mário Cesariny de Vasconcelos.
Dissertação de Doutoramento apresentada à FLUP, 1986.



CARACTERÍSTICAS DA PINTURA SURREALISTA


origem do Surrealismo nos anos posteriores à 1.ª Guerra Mundial, tendo como primado a afirmação do indivíduo na sua verdade interior;

afirmação do Surrealismo com a publicação do Manifesto do Surrealismo (1924) por André Breton;

movimento que defende a liberdade individual e a exploração do inconsciente;

gosto pela representação do mistério, do inverosímil e do insólito como recursos criativos, e pela ambiguidade do significado;

reconhecimento das ideias de Freud e do método da psicanálise como meio de, a partir do inconsciente, se chegar à verdade de cada indivíduo;

utilização de uma linguagem figurativa realista em composições incongruentes e bizarras;

utilização a nível plástico de técnicas do Cubismo e do Dadaísmo, como colagem, assemblage, frottage e decalcomania;

aplicação do automatismo psíquico como criação imediata, espontânea e aleatória;

criação em estado semi-hipnótico, sob influência do álcool, da fome ou da droga;

temática inspirada no onírico e no erotismo;

preferência pelo mundo da magia;

criação de paisagens amplas, ambíguas e irreais ou de espaços vazios, habitados por figurações estranhas, com símbolos e signos diversos – astrais, animais, vegetais.

Exame Nacional de História da Cultura e das Artes, 11.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho). Critériosde classificação da prova724, 1ª fase. IAVE, 2015.


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