quinta-feira, 6 de agosto de 2015

SÉCULO DE OURO – ANTOLOGIA CRÍTICA DA POESIA PORTUGUESA DO SÉCULO XX

Século de Ouro. Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XX


DESAPRENDER (COM) A HISTÓRIA
Por Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra

[…] O livro intitula-se Século de Ouro, mas não apenas, já que a própria natureza do título (um topos retórico no domínio da periodização literária) pede o esclarecimento disponibilizado pelo subtítulo: Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XX. Comecemos por aqui: que antologia é esta que se define como «crítica»?
Para começar, trata-se de uma antologia da poesia portuguesa do século XX, a primeira produzida já fora dos limites temporais do século e seguramente a mais ambiciosa que sobre a poesia portuguesa do século passado foi até ao momento elaborada. Contudo, esta não é mais uma antologia, já que a própria forma da antologia acaba por ser «criticada» pelo programa e funcionamento da obra. De que modos? É o que passaremos a ver.
Numa descrição mínima, o livro consiste num conjunto de 73 poemas do século XX acompanhados de igual número de leituras desses poemas. O livro inclui pois, no seu resultado final, tanto os 73 poemas selecionados como os 73 ensaios escritos sobre eles4. O número 73 não recobre aqui propósitos pitagóricos. No início, aliás, o número não era esse mas 87, pois tal foi o número a que os organizadores chegaram quando elaboraram uma lista de pessoas convidadas a participar nesta obra. Significa isto que entre renúncias iniciais, desistências a meio de percurso ou (admitimo-lo) eventuais e banais problemas de comunicação, se chegou ao aleatório número de 73 colaboradores.
Neste ponto, convirá esclarecer que para participarem no projecto, os organizadores seleccionaram um vasto painel de personalidades, de acordo com os seguintes critérios: 1) pessoas com obra feita na crítica literária e, mais especificamente, na crítica da poesia portuguesa do período em causa; 2) críticos jovens, com obras emergentes, cujas vozes é curial escutar num momento de transição e, por isso também, de balanço; 3) críticos portugueses a residir e trabalhar em Portugal ou no estrangeiro, bem como lusitanistas espalhados pelo mundo; 4) poetas a quem se propôs que, momentaneamente, «passassem para o outro lado», praticando, ainda que por uma vez sem exemplo} a crítica dos textos que mais os marcaram.
Como em tudo o que tenha a ver com escolhas, os organizadores não têm dúvidas de que a sua lista de nomes seleccionados é eventualmente discutível; contudo, estão igualmente certos de que eventuais reservas ou críticas à lista de nomes não poderão ser mais do que pontuais, já que foi sua preocupação elaborar uma lista de natureza consensual. […]
Seja como for, o referido dispositivo consistiu em propor aos colaboradores que, numa primeira fase, indicassem 3 títulos do corpus da poesia portuguesa do século XX. Recebidas essas escolhas, os organizadores analisaram-nas cuidadosamente, tendo em vista alguns modestos princípios organizativos: 1) o cunho desejavelmente representativo da antologia: assim, entre concentrar as escolhas em 7 ou 8 poetas (o que, não sendo inteiramente possível dada a variedade das escolhas dos colaboradores, poderia vir a ser o modelo reconhecível na obra, já que, para dar apenas um exemplo, Fernando Pessoa, só ele, concentrou um número significativo de escolhas) e alargá-las a um panorama representativo das várias tendências do século, optou-se por esta última solução; 2) a necessidade de traduzir, de algum modo, a concentração de escolhas em certos autores, atribuindo-lhes mais do que um poema, dentro de um princípio moderadamente estatístico e razoavelmente homogéneo na sua aplicação a todos os casos; 3) a necessidade de evitar repetições de poemas, o que conduziu várias vezes os organizadores a escolher um dos 3 poemas indicados por cada colaborador, sem respeitar a hierarquia proposta por estes, possibilidade aliás prevista desde o início e comunicada aos colaboradores na carta em que o projecto lhes foi apresentado.
Atribuídos então os poemas aos colaboradores, num por vezes delicado deslindamento de cruzamentos e sobreposições, chegou-se à crucial segunda fase na qual os colaboradores deveriam elaborar um ensaio sobre o poema por eles escolhido. Esse comentário deveria ser de teor não-historicista, já que Século de Ouro foi desde o início pensado como uma obra que prescindiria das constrições nem sempre produtivas de uma perspectiva histórico-literária. […]
Muito diversamente, com Século de Ouro. Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XX pretendeu-se produzir um livro em que a poesia acontece no cruzamento do texto e da sua exegese. A indiscutível riqueza e pluralidade das poéticas do século oficialmente encerrado é concomitante a um também multifacetado modo de olhar - de constituir, de usar - o objecto cultural que é um poema. Daí as regras do jogo propostas: predomínio da close reading, redução drástica do aparato erudito, leitura breve e (desejavelmente) intensa. Por outras palavras, apropriação: o próprio texto, o texto próprio, eu (?) próprio. […]
A funcionalidade e o uso dos diferentes índices em Século de Ouro não são, ao contrário dos index paratextuais de outros livros, a garantia de que o leitor leu o volume todo. Ocupando o início e o fim do livro – respectivamente o «Índice Geral», por um lado, e o «Índice de poetas», o «Índice de ensaístas», o «Índice de poemas» por outro ‑ não suplementam o seu início ou fim. O «Índice Geral», sendo aquele que decalca a concatenação aleatória, é antes o reforço de um começo sempre adiado ou já irremediavelmente consumado. Quanto aos índices colocados no fim material do livro, não mimetizando a série antológica, funcionam como diferentes módulos de outras potenciais entradas aleatórias no livro. […]

Ler mais: “Introdução”, “Biobibliografias” e “Índices”, Século de ouro – antologia crítica da poesia portuguesa do século XX, organização de Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra. Braga; Coimbra; Lisboa: Angelus Novus & Cotovia, 2002.
__________________
(4) Estes 73 ensaios correspondem a 47 poetas antologiados (49, se desdobrarmos Pessoa em Pessoa himself, Álvaro de Campos e Ricardo Reis).


DEDUÇÃO CRONOLÓGICA DOS POEMAS:
POETAS
CRÍTICOS
1900: [Pára-me de repente o Pensamento…]
Ângelo de Lima
Yara Frateschi Vieira
1906: Elegia do Amor
Teixeira de Pascoaes
António Cândido Franco
1913: VI. Dispersão
Mário de Sá-Carneiro
Antonio Sáez Delgado
1915: Manucure
Mário de Sá-Carneiro
Ana Luísa Amaral
1920: Ao longe os barcos de flores
Camilo Pessanha
José Carlos Seabra Pereira
1920: Fonógrafo
Camilo Pessanha
Abel Barros Baptista
1920: [Ó cores virtuais que jazeis subterrâneas]
Camilo Pessanha
Paulo Franchetti
1922: Soneto já antigo
Álvaro de Campos
Miguel Tamen
1924: [A flor que és, não a que dás, eu quero]
Ricardo Reis
António M. Feijó
1924: [Ela canta, pobre ceifeira]
Fernando Pessoa
Arnaldo Saraiva
1924: Xácara do Infinito
Mário Saa
Nuno Júdice
1925: Libertação
José Régio
Eunice Ribeiro
1932: Autopsicografia
Fernando Pessoa
Victor Mendes
1933: Tabacaria
Alvaro de Campos
Luís Quintaú
1934: O dos castelos
Fernando Pessoa
António Apolinário Lourenço
1935: Apelo à poesia
Carlos Queirós
F. J. Vieira Pimentel
1936: Outro dia
Irene Lisboa
Paula Morão
1938: O canário de oiro
Vitorino Nemésio
Rosa Maria Goulart
1944: [Esta velha angústia]
Álvaro de Campos
Ettore Finazzi-Agrà
1944: [Grandes são os desertos e tudo é deserto]
Álvaro de Campos
Silvina Rodrigues Lopes
1944: Magnificat
Álvaro de Campos
Robert Bréchon
1951: Requiem (ao menino morto, eu próprio)
Cristovam Pavia
Fernando J. B. Martinho
1952: Rêve Oublié
António Maria Lisboa
Carlos Veloso
1954: Soneto de Eurydice
Sophia de Mello Breyner Andresen
Clara Rocha
1955: [Ao desconcerto humanamente aberto]
Jorge de Sena
Maria Fernanda Alvito P. de S. Oliveira
1957: You Are Welcome to Elsinore
Mário Cesariny
Perfecto E. Cuadrado Fernández
1958: As palavras
Eugénio de Andrade
Carlos Reis
1958: Um adeus português
Alexandre O’Neill
Luciana Stegagno Picchio
1959: Quase 3 discursos quase veementes
António José Forte
Ruy Duarte de Carvalho
1960: Fóssil
Carlos de Oliveira
Gustavo Rubim
1960: Regresso de parte alguma
Reinaldo Ferreira
Eugénio Lisboa
1961: Fonte
Herberto Helder
António Ladeira
1962: Pátria
Sophia de Mello Breyner Andresen
Roberto Vecchi
1962: VIII. A mão no arado
Ruy Belo
Luís Mourão
1963: A morte, o espaço, a eternidade
Jorge de Sena
Luís Adriano Carlos
1963: Poema de amor
Edmundo de Bettencourt
Maria Alzira Seixo
1964: Todas pálidas, as redes metidas na voz.
Herberto Helder
Pedro Schachtt Pereira
1964: [A menstruação quando na cidade passava]
Herberto Helder
Pedro Eiras
1964: Um quadro de Brauner
Luiza Neto Jorge
Ana Sofia Ganho
1965: [O navio de espelhos]
Mário Cesariny
José Ricardo Nunes
1966: Ácidos e óxidos
Ruy Belo
Manuel António Pina
1966: Morte ao meio-dia
Ruy Belo
Vítor Manuel de Aguiar e Silva
1966: Poema de uma viagem ao Porto e de uma partida para a Bélgica
Vitorino Nemésio
Rita Patrício
1967: A casa do mundo
Luiza Neto Jorge
Maria Andresen de Sousa Tavares
1967: Primeiro septeto
Ruy Cinatti
Joana Matos Frias
1968: Árvore
Carlos de Oliveira
Rosa Maria Martelo
1969: Em Creta, com o Minotauro
Jorge de Sena
K. David Jackson
1969: O preto no branco
Rui Knopfli
Eduardo Pitta
1969: Os ovos d' oiro
Armando Silva Carvalho
Pedro Serra
1970: Canção cuneiforme (antes e depois de lhe dar o bicho)
Alberto Pimenta
Marta Irene Ramalho
1973: Sextina III ou Canção do próprio canto
David Mourão-Ferreira
Marcia Arruda Franco
1976: Em louvor do vento
Ruy Belo
Eduardo Lourenço
1976: Leitura
Carlos de Oliveira
Manuel Gusmão
1977: A imagem que conduz ao corpo
António Ramos Rosa
Rui Magalhães
1977: Sobre esta praia I
Jorge de Sena
Jorge Fazenda Lourenço
1978: [De luas ou de trigos busco o nome]
Pedro Tamen
Patrick Quillier
1978: [Quando eu vir vaguear por dentro da casa]
Fiama Hasse Pais Brandão
Gastão Cruz
1978: Tat Tam Asi
Manuel António Pina
Américo António Lindeza Diogo
1982: Ignição
António Osório
Pedro Mexia
1987: Canção do ano 86
Fernando Assis Pacheco
Fernando Pinto do Amaral
1989: Matadouro
Luís Miguel Nava
Carlos Mendes de Sousa
1993: Aconteceu-me
Almada Negreiros
Fernando Cabral Martins
1993: Poema 16 [de Dos Jogos de Inverno]
António Franco Alexandre
João Barrento
1997: Trabalho de casa
Nuno Júdice
Margarida Braga Neves
1998: O excesso mais perfeito
Ana Luísa Amaral
Fátima Freitas Morna
1999: a viagem de verão
Vasco Graça Moura
Fernando Matos Oliveira
1999: Dois ciprestes
Adília Lopes
Fernando Guerreiro
1999: Mulher com filho ao colo, em Dezembro
A. M. Pires Cabral
M. Corbo Alvarez
2000: [Escrevo do lado mais invisível das imagens]
Daniel Faria
Alcir Pécora
2000: Árvores
Gastão Cruz
Osvaldo Manuel Silvestre
2000: As cinzas de Lenine
Fernando Guerreiro
Peter Sanmartinho
2000: Sumário Lírico
Fiama Hasse Pais Brandão
Jorge Fernandes da Silveira
2001: «A Perfeição das Coisas» ‑
Manuel Gusmão
Helena Buescu




editora angelus novus
Entrevista com Osvaldo M. Silvestre e Pedro Serra sobre Século de Ouro
P. A «vossa» antologia parte duma tese, acolhida no próprio título, segundo a qual o século XX português foi um período áureo. Essa tese, como lembram na «Introdução», vem sendo defendida por pessoas como Eugénio de Andrade, Óscar Lopes ou Vítor M. de Aguiar e Silva. Curiosamente, o livro não discute esta tese, no local onde seria curial fazê-lo: a «Introdução». Estão assim tão certos dela que dispensem debatê-la? A não ser essa a razão do vosso silêncio, qual é ela?
R. O que Século de Ouro propõe é justamente que discutir é produtivo, não pela sua tematização desde quaisquer mansardas — por exemplo, lugares como «introduções» —, mas sim na prática da leitura. Todo e cada um dos poemas e ensaios incluídos é bastante discussão do «século de ouro». Dito de outro modo, o sintagma — muito instável e contingente — constituído pelos pares poema/ensaio é a versão «retórica» dessa tese. O que o volume propõe é fazer dessa discussão uma discussão a haver. O importante é ter presente que a massa textual que foi deixando rasto material durante esse intervalo de tempo a que podemos chamar «século XX», tem vindo a galopar para um amorfo indiferenciado, e enquanto tal sem valor. O verdadeiro «século de ouro» é o futuro contido nessa massa (admitimos que ela o contenha, e isso nos parece bastante), cujo resgate é o imperativo que se nos coloca.
Século de Ouro existe como solicitação de um futuro de diferenciações e discriminações, ou de uma escatologia arqueológica: uma escatologia que assumisse todas as consequências interpretativas de um tempo (que são vários tempos: o da poesia, o da crítica, o da leitura, mas sobretudo o da desleitura) inevitavelmente, mas também programadamente, fora dos eixos. Por outras palavras, este é um livro habitado por muitos livros e debates, na medida em que propõe e vive de uma discrepância entre o «século XX» (os vários séculos XX) e o século de ouro que vai lendo, como um telecomando em zapping, aquele menu que nem sempre, aliás, se acomoda ao telecomando.
P. Um outro aspecto inesperado é a ausência, que supomos deliberada, de um «tratamento estatístico» dos dados obtidos, no que toca quer às presenças (o «Top of the Pops») quer às ausências. Por exemplo, será pertinente não dedicar sequer uma palavra a ausências tão flagrantes como as de Miguel Torga (o primeiro Prémio Camões, relembre-se), Saúl Dias, Raul de Carvalho, Nuno Guimarães, Joaquim Manuel Magalhães (o poeta) e João Miguel Fernandes Jorge, etc.? Ou para as ausências de críticos como Eduardo Prado Coelho e Joaquim Manuel Magalhães? Ou para a derrota histórica do neo-realismo, não redimida pela presença firme de Carlos de Oliveira? Ou para a correlata vitória histórica do surrealismo?
R. As regras do jogo não consideravam que houvesse, a priori, lugares cativos. É claro que se pedia «ouro» do «século» que, não sendo absolutamente abundante — de outro modo deixaria o ouro de ter valor —, determinava a inevitável presença de alguns indiscutíveis. Seja como for, o modelo antológico proposto retira ansiedade às ausências, já que desresponsabiliza escolhas e escolhedores (estes fizeram o que puderam com o pouco alcance do seu naipe de decisões) e mais ainda organizadores, que naqueles delegaram inteiramente as escolhas. De resto, elas são inevitavelmente significativas. Há notoriamente poetas pouco lidos e que urge ler mais, por exemplo. Por outro lado, pediu-se aos colaboradores que escolhessem poemas e não poetas. Isto significa que a questão a colocar é também a de saber se o poeta X ou Y se acha bem representado. Nos casos em que não estejam — se é que os há —, talvez se possa dizer que era melhor não terem sido representados de todo. Século de Ouro propõe-se «antologia» pouco apocalíptica (daí a ideia antes referida de uma «escatologia arqueológica»). O aleatório que variamente o «estrutura» não permite aliás dramatizar aquilo que não é senão um jogar de dados.
Isto significa que ausências/presenças devem ser tomadas por aquilo que são: resultado da pura contingência (imperativo daquilo que «serve», que sempre pressupõe algo de «servil»). Quanto aos críticos mencionados, a sua não-presença foi determinada pelos próprios críticos, logo não se trata de ausências. Vitórias e derrotas «históricas» não chega também a haver, pois um tal saldo só seria contabilizável se, justamente, nos situássemos no fim dos tempos de um juízo final. Como é inevitável, a este outros se sucederão, pelo que é cedo (é sempre cedo) para decidir de vencedores ou perdedores. Este não é um jogo de 90 minutos, nem mesmo de um século. Mais do que isso, é um jogo em que o objectivo não é ganhar — ou então é apenas «ganhar tempo» para novos jogos.
P. Esta «Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XX» é um trabalho que assume declaradamente a ruína da historiografia literária moderna, para se propor como a antologia possível numa era de contingência pós-histórica. Sendo assim, que papel crítico poderá ser o da crítica que lhe dá título? 
R. A «crítica» que Século de Ouro propõe não visa imediatamente a representatividade. Assim, pelo modo como se configura, ela parte do pouco representativas que a poesia e a crítica de poesia são nos dias de hoje. O que cada letra impressa no livro vai solicitando é que se interrogue a sua necessidade: sem tal iminência de crise não teria sentido. Isto pode querer significar — sujeitemos esta possibilidade a uma futura discussão — que a «crítica» implicada pelo subtítulo se levanta não sobre um modelo «narrativo» da crítica (o da Modernidade), mas sim sobre um modelo «poético». Ou então sob o signo da «constelação»: uma série não coincidente, e de coalescência problemática, de práticas (críticas) que nem sempre são rumos, ou são-no segundo uma (pro)pulsão caótica, e pelo menos babélica. Contudo, esta constelação que «critica» — decerto involuntariamente — a narrativa heróica da crítica moderna, assume-se ainda como moderna o bastante, já que parte de uma posição (aliás imposta previamente) de emancipação dos materiais em relação a qualquer determinação historicista ou humanista: os críticos que na obra colaboram não questionam (a não ser pontualmente) a orientação para a close reading, e praticam-na com a naturalidade de quem reconhece na linguagem um universo, e um problema, suficientemente mobilizador.
O ponto crítico da obra reside talvez na constelação de exercícios de leitura que, à primeira vista esvaziados de historicidade pela imposição da close reading, se volvem, na sua disposição desprogramada, uma poderosa crítica das ilusões do historicismo, na medida em que somam à História da Poesia Portuguesa do século XX um conjunto, talvez finito mas alargado, de novas histórias por contar. Esta soma, contudo, desacrescenta, já que vai justapondo possibilidades de conflito. Uma espécie de versão crítica de um livro do desassossego, se nos é permitida a pretensão.
P. O clima que promoveu a «suspensão deliberada de categorias históricas» referida pelos editores, tem vindo a produzir objectos novos no território antes ocupado pela História da Literatura. São movimentações diversamente visíveis, por exemplo, na lógica fragmentada De la littérature française, de Denis Hollier ou no citado H. U. Gumbrecht de 1926. Poderá (ou desejará) a presente «Antologia» patrocinar ente nós uma tal alteração epistémica no âmbito dos estudos literários?
R. O logos fragmentário do Século de Ouro — sobretudo o assumi-lo em consciência — é produtivo, gera um objecto que, pensamos, de modo bastante razoável põe a circular uma imagem do século XX. Não uma suma ou uma solução do século mas, digamos, um seu fantasma (um seu inconsciente). A questão dessa produtividade é a de que não aspirar à representação de si é uma opção eficaz de representação (talvez pós-moderna). Neste sentido, tal coisa como um «patrocínio» de si no panorama dos estudos literários, sendo uma possibilidade, não é um desiderato. O que Século de Ouro assume plenamente, e desde os seus próprios fundamentos, é a contingência de uma eventual autoridade. Significa isto que a «exemplaridade» desta obra, a haver, será talvez da ordem do único e do aberrante, obviamente não reivindicados.
Uma obra como Século de Ouro não contém nem poderia pois conter em si um programa gerativo ou software para «mutações epistémicas», já que se trata de uma obra a vários títulos excepcional e fruto de um conjunto de circunstâncias felizes, provavelmente irrepetíveis. Não nos seduz a sugestão romântica de um cânone de únicos; e menos ainda a de patrocinar «mutações epistémicas» numa disciplina em que, decisivamente, «epistemologia» é nome de um género literário (um tanto como «filosofia», na versão de Rorty). Quanto a eventuais consequências, «Depois verá-se», como dizia um catedrático de uma das nossas universidades.
P. Século de Ouro propõe uma intensa reflexão sobre o genus antológico que é chamado a revitalizar o olhar historicizante sobre a poesia portuguesa do século XX. Muito descrendo no modelo de «história» tradicional, essa como que necessária antologização do passado — o gesto intrinsecamente crítico proposto — faz-se de modo a fazer desse passado uma história que, como a verdade para Lessing, seja mais «filantrópica»? Isto é, mais humana, ou mais à escala das vidas humanas? Por outro lado, de que húmus parte esse imperativo de uma história crítica: de um peso cultural excessivo daquela «história» tradicional, da sua desfundamentação ou, talvez, da sua inexistência no que toca ao intervalo e género (poético) em causa?
R. O modo antológico opera por selecção. O que vemos na poesia portuguesa do século XX é que ela própria foi vivendo mesmerizada pela sua própria História (de modo mais ou menos explícito). A história que foi, deste modo, perfazendo não é absolutamente aproveitável. É o excesso de Musas que a sobre-vivência das Musas tem que gerir politicamente. A obsolescência deste ou daquele poeta não significa que não tenha acertado o alvo de vez em quando. É uma história desses acertos que nos pode servir. E o mesmo vale, evidentemente, para os modos da crítica e dos críticos. Será necessário todo o Pessoa para fazer dele a necessária interpelação em nós? Este modo antológico que faça história e faça cânone é um problema, ou justamente pretende argumentar que não haver interpelação é não haver problema. Em tempos, Almada Negreiros, entrando numa biblioteca, ironizava sobre a impossibilidade de ler todos os livros nela contidos. Essa ansiedade do todo não é crítica, nem humana. É bem mais «filantrópica» a moderada confiança de que não é necessária toda a biblioteca de poetas portugueses do século XX, nem toda a obra de cada um deles. O horizonte de um indivíduo ou uma comunidade que fizessem consciência dessa soma total é um belo tropo da Morte (ou de Deus…). Por outras palavras, uma antologia «lê-se», na exacta medida em que «dá a ler». Essa medida, contudo, é de exactidão problemática, já que a antologia pode tender ao monstruoso de um século, um milénio, uma cultura (um tema) ou uma geografia.
É nossa convicção que Século de Ouro, porque dá a ler, e porque desiste à partida do Todo que a antologia não pode ser (mas por que tantas vezes anseia), é uma obra que se lê, no sentido duplo e infindável da expressão. Nesse sentido em que, justamente, o século de ouro vive da ponderação crítica do seu peso (em ouro), ponderação essa a realizar pelos leitores após o exercício inicial delegado nos críticos. Este exercício de reduplicação da prática antológica não tem talvez fim, mas opera fatalmente por estreitamento, na lógica do programa do título: uma decantação de que resulta um punhado de grãos de ouro — alguns poemas portugueses do século XX, talvez não todos os aqui antologiados, talvez (sigamos o devir da antologia) nem estes aqui antologiados.
 

https://angnovus.wordpress.com/ligacoes/entrevistas/entrevistas-6/


     Poderá também gostar de ler:

     «Críticas a “Século de Ouro" "revelam pulsões censórias"», Luís Miguel Queirós. Público, 2003-02-01.



    

Homenagem a Ana Hatherly (1929-2015)




Rolam tumultuosas mas lentamente
as letras para sua própria ordem
por imposição incendiária de montanhas
de rios e de cidades.







Postal de Ana Hatherly para José Maria de Aguiar Carreiro, 2005.



quarta-feira, 5 de agosto de 2015

PALAVRAS PARA QUÊ? (manifestos em 1992)


Palavras Para Quê?, Lisboa, Galeria São Bento 34, 1992.
Organização de Nuno Artur Silva.

































































terça-feira, 4 de agosto de 2015

A pedregosa luz da poesia (Silvina Rodrigues Lopes)


Pensar a poesia é que nos propõe Silvina Rodrigues Lopes na série A Luz como Meio e Limite, sob orientação de Pedro Lapa, professor universitário e director artístico do Museu Colecção Berardo.
Falar de poesia é afirmar, postulando-o imanente ao viver humano, um exercício da linguagem que excede o seu uso instrumental. De outro modo: é referir-se ao que no humano é acção criadora, decidir-agir irredutível ao cálculo ou ao controle final.
Não há tempos nem espaços destinados à poesia (ao habitar poeticamente), nem alguma vez se está em solidão absoluta, pois os outros entram sempre nas palavras que se dizem, no que se vê e sente. Mas não podemos deixar de distinguir diferentes espaços de manifestação do viver, que, simplificando, constituem o espaço íntimo e o espaço público, os quais se conectam pelo amor que, vindo do íntimo, sustenta o mundo e a sua renovação. A filosofia, as artes, a ciência e a política existem no espaço público, participando da habitação do mundo de distintas maneiras. Por nelas não haver objectivos que se coloquem em primeiro plano, nem sequer os de criação, invenção de matrizes ou prescrição de orientações, as artes constituem excepção.
Pensar a poesia como uma das artes implica afastar os clichés que a cercaram até à modernidade — poesia como emanação de verdades adquiridas por contemplação ou inspiração; poesia como fornecimento das ditas verdades através do instruir divertindo — e os que, depois, se colocaram pretendendo ainda tornar explicáveis as formas infinitas, isto é, intensas e irredutíveis a uma extensão, a um conjunto de propriedades. Trata-se do exceder do fechamento das formas. Reconhece-se a posse de méritos aos heróis, aos mestres e aos trabalhadores, mas esses méritos nada são humanamente sem a poesia — suplemento heterogéneo, afirmação incondicional que sustenta o axioma de igualdade dos humanos, o da singularidade de cada um, da sua insubstituibilidade.
Na modernidade literária, a poesia deixa de poder ser apresentada nos termos humanistas de “farol da humanidade”. Aprende-se a entendê-la com a humildade do sentir-pensar, nunca inteiramente luminoso ou escuro, mas em deslocação entre os dois pólos que se desdobram em infinitas nuances, sem que nenhum deles prevaleça. A atenção à linguagem na sua materialidade expõe-na como múltipla e heterogénea, criadora de descontinuidades que contrariam as forças burocratizantes e despóticas. Encontram-se razões de escrever, razões de um certo agir: o resistir que incita a resistir à abdicação de viver. Não pela proposta de algo exemplar, a imitar, mas pela afirmação do incomensurável — alegria e inquietude, libertação do peso do passado colocado como sol esmagador e luz única, invenção da memória na (com a) qual se pensa.
Ao associarmos a casa, que para os humanos é o lugar de habitação que configura o íntimo, à guarda do fogo como passo decisivo do fabrico de instrumentos e dispositivos destinados à subsistência e à autoprotecção, vemos como a luz do fogo, ou o fogo da luz (relâmpago), abre a inexorável passagem entre a autopreservação e o exterior, que não é apenas o espaço do perigo, mas também o de forças errantes. Casa de um viver em comum, o mundo tem virtualmente exterior, caos, memórias, dentro de si.
Leia-se este poema de Carlos de Oliveira:
Casa
A luz de carbureto
que ferve no gasómetro do pátio
e envolve este soneto
num cheiro de laranjas com sulfato
(as asas pantanosas dos insectos
reflectidas nos olhos, no olfacto,
a febre a consumir o meu retrato,
a ameaçar os tectos
da casa que também adoecia
ao contágio da lama
e enfim morria
nos alicerces como numa cama)
a pedregosa luz da poesia
que reconstrói a casa, chama a chama.

A irrupção do caos dá-se a partir de uma certa luz, a luz feita de pedras (carburetos) que no pátio da casa, no átrio do poema, permite a perceptibilidade do que se experiencia operando a sobreposição de sentidos. Ela permite a organização de sensações desencontradas e põe à prova ideias e desejos, numa completa abdicação de estabelecer o que quer que seja. Abdicação da palavra de ordem. Despojamento. As linhas que o poema traça são de simbiose entre tipos de sensações reconstruídas, inventadas, que nascem de associações virtuais — cheiros, palavras, ideias, imagens descontínuas — desencadeadas pela pregnância do que ferve, uma luz ficcional através da qual o poema é endereçado ao mundo. Essa luz atravessa meios, sensações, que a tornam cintilante, descontínua, dando a ver significação e opacidade dos significantes que guardam o fogo (luz), enquanto pensar-sentir, fidelidade ao viver em comum.
Do fogo das pedras à pedregosa luz da poesia, a luz escrita desencadeia um movimento desenquadrante: ela não dá a ver com nitidez imagens de um presente passado, mas envolve uma forma-poema, “este soneto”, “num cheiro de laranjas com sulfato”. Por outro lado, tal como a luz do gasómetro persiste apenas na reacção química, também a luz da poesia apenas persiste na renovação de si. Não pedra sobre pedra, como seria a renovação da casa ficcionada, mas no fulgor das chamas, excesso de proximidade da matéria, que o manuseador de fogo, o poeta, equilibra na coluna breve de palavras. No poema, o rasto de luz da ficção é cortado em versos pedregosos, separados e ligados pelos intervalos que os iluminam. De uma palavra a outra palavra (matéria de que são feitos o poema e a sua leitura) há a chama, o chamar da chama. É pois já indecifrável que a palavra se entrega à decifração.
Ser afirmação, sem enquadramento de luz, teoria ou ficção que a contenha, é a condição da poesia (da arte), porque não há nada antes dela como relação ao outro — nada a testemunhar, nada a declarar, nada a comunicar. Ela é instauradora de relações outras que não as de poder, pois dirige-se a um povo que falta (como escreveu Klee), dirige-se a novas possibilidades de viver em comum, que começam na resistência a verdades feitas, a ficções petrificadas. A resistência à imagem do passado como necessidade que traça o futuro é a face perceptível da afirmação da intensidade febril da memória, da sua não comensurabilidade, que impede que tudo se reduza ao útil e ao imitável. Frágeis e mortais, os humanos são-no como os insectos, mas a luz da razão que lhes serve de instrumento de sobrevivência é também a possibilidade de se protegerem do automatismo e de olharem os outros chama a chama.
Silvina Rodrigues Lopes é professora catedrática de Estudos Portugueses na FCSH. É co-directora da revista Intervalo. Escreveu vários livros, nomeadamente: A Legitimação em Literatura, Teoria da Despossessão, Aprendizagem do Incerto, Literatura Defesa do Atrito, A Anomalia Poética, Exercícios de Aproximação, E Se-para, Tão Simples como Isso, Sobretudo as Vozes



segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Uma Nova Geração de Poetas




Num artigo recente, assinado por Luís Miguel Queirós e Carlos Câmara Leme (Público, suplemento Mil Folhas, 29 de Março de 2003), procurava-se testar a "hipótese de estarmos a assistir, sensivelmente desde meados dos anos 90, ao aparecimento de um conjunto de poetas que, com tudo o que os distingue uns dos outros, corporizam uma geração, no sentido forte do termo". Significativamente, a quase totalidade dos poetas referenciados tinha nascido depois de 1965, tendo, na generalidade dos casos, começado a publicar apenas na segunda metade da década.

“Reencontrar o leitor” - ensaio de Rosa Maria Martelo sobre NOVA POESIA PORTUGUESA para a revista RELÂMPAGO n.º 12.  4|2003.






O interesse pela poesia é, em Portugal, algo da ordem do milagre, afirmou há um par de anos, numa entrevista ao PÚBLICO, o ensaísta Eduardo Lourenço, bem colocado para traçar comparações com o mercado editorial francês. Um fenómeno que não só não abrandou, como parece estar a intensificar-se nestes anos inaugurais do século XXI. As editoras publicam novos títulos a um ritmo alucinante, surgem novas colecções de poesia, as revistas e jornais dedicam "dossiers" aos poetas mais jovens e regressaram em força as antologias da "novíssima" lírica portuguesa, para já não referir outros sinais exteriores igualmente sintomáticos, como a recente querela entre críticos ou o facto de a polémica em torno da antologia "Século de Ouro" ter chegado ao Parlamento, episódio porventura sem precedentes na história da cultura ocidental. 
Face às décadas anteriores, o que parece distinguir o momento actual é a emergência de uma genuína nova geração de poetas, algo que só seria possível encontrar, defendem alguns, remontando aos anos 70, se não à década anterior. O PÚBLICO quis saber o que pensam os críticos da hipótese de estarmos a assistir, sensivelmente desde meados dos anos 90, ao aparecimento de um conjunto de poetas que, com tudo que os distingue uns dos outros, corporizam uma geração, no sentido forte do termo. Ouvidos ensaístas de idades, percursos e registos diversos, boa parte deles também poetas, verifica-se que quase todos aceitam a tese, ainda que o consenso comece a esboroar-se quando se trata de discutir o mérito desta nova poesia, ou de lhe traçar as linhagens, ou ainda de assinalar quais serão os seus protagonistas mais revelantes. 
Entre os que defendem com maior empenho a vitalidade dos anos 90, por contraste com uma década de 80 alegadamente mais pobre e incaracterística, encontram-se dois críticos que integram, enquanto poetas, a geração em causa: Pedro Mexia e José Ricardo Nunes. Ao passo que Mexia defende que a poesia actual "sai directamente dos anos 70", saltando, "como um cavalo no xadrez", sobre a década seguinte, já o segundo, mesmo aceitando que há, nos poetas de hoje, "muita melancolia e muito hiper-realismo", defende que "os melhores são os que fogem um bocado a esses escolhos". 
Ainda assim, quando ambos apontam os poetas de revelação recente que mais apreciam, mostram-se sintonizados no comum apreço por dois autores: Rui Pires Cabral (n. 1967), que se estreou em 1994 com "Pensão Bellinzona & Outros Poemas" e cujo último livro, "Música Antológica & 11 Cidades" (Presença), data de 1997, e Carlos Luís Bessa (n. 1967), cujo primeiro título a solo é "Legenda", de 1995, e que publicou ainda "Termómetro. Diário" (1998) e "Lançam-se os Músculos em Brutal Oficina" (&etc., 2000). Ambos aparecem também na recém-lançada antologia "Poetas sem Qualidades" (Averno, 2002), organizada pelo poeta e crítico Manuel de Freitas. 
O nome de que Mexia se sente "mais próximo" é o de Luís Quintais (n. 1968), que ganhou o prémio Aula de Poesia de Barcelona com "A Imprecisa Melancolia" (1995), e que, desde então, publicou já mais quatro títulos, o último dos quais, "Angst" (Cotovia), saiu em 2002. Mas refere também os primeiros livros de José Tolentino Mendonça (n. 1965), embora ressalvando que a poesia do autor "tem alguns perigos à espreita", designadamente "um estilo amaneirado" que o crítico considera "tributário do lado mau de Eugénio de Andrade". Recorde-se que o prefácio do último livro de Tolentino Mendonça, "De Igual para Igual" (Assírio & Alvim, 2001), é assinado pelo poeta de "As Mãos e os Frutos". 
José Ricardo Nunes acrescenta à breve lista das suas afinidades electivas o próprio Pedro Mexia (n. 1973), autor de "Duplo Império" (1999), "Em Memória" (Gótica, 2000) e "Avalanche" (Quasi, 2001). E Mexia destaca também Jorge Gomes Miranda (n. 1965), que editou três títulos de poesia - "O que Nos Protege" (Pedra Formosa, 1995), "Portadas Abertas" (Presença, 1999) e "Curtas-Metragens" (Relógio d'Água, 2002) - e é ainda autor daquela que teria sido a primeira visão panorâmica da sua geração literária, "Tráfico: Antologia da Nova Literatura Portuguesa", realizada por encomenda da Porto 2001, que, inexplicavelmente, ainda não fez sair a obra. Além de se debruçar também sobre os novos ficcionistas, dramaturgos e ensaístas, o volume, com uma extensa introdução de cerca de uma centena de páginas, estuda e selecciona boa parte dos poetas aqui referidos, e ainda alguns que nenhum dos críticos ouvidos citou, como José Miguel Silva (n. 1969), autor de "O Sino de Areia" (Gilgamesh, 1999) e "Ulisses já não Mora aqui" (&etc., 2002). 
No que Mexia e José Ricardo Nunes estão mesmo de acordo é na convicção de que a poesia portuguesa atravessa um momento alto. "Há de facto uma nova geração", garante o segundo, "uma fornada com mais autores e mais qualidade do que a dos anos 80". Mexia confirma. Os poetas mais recentes, diz, revelam um tom comum, cujo "traço marcante tem a ver com a revalorização daquilo a que em Espanha se chamou 'poesia da experiência'" e que resulta numa "poesia de recuperação da banalidade, do quotidiano, da experiência urbana, de um certo pessimismo". 
Autor de um volume de ensaios dedicado a "9 Poetas para o Século XXI", onde aborda detalhadamente a poesia de vários dos autores aqui referidos, e ainda a de Paulo José Miranda (n. 1965), João Luís Barreto Guimarães (n. 1967) e do precocemente desaparecido Daniel Faria (1971-1999), José Ricardo Nunes reconhece que "a palavra 'realidade' é talvez a que mais continua a interpelar-nos, quando olhamos para este conjunto de poetas". No entanto, nota que, se alguns deles optam por "discursos melancólicos e crepusculares, nos quais se tem encenado o adeus e a perda", outros recorrem a "discursos mais combativos e desmistificadores". 
O poeta e ensaísta Gastão Cruz também acha que a poesia portuguesa mais recente aposta naquilo a que chama "um mergulho no real" e que é devedora do modo como alguns poetas dos anos 70 procuraram romper com a sua própria geração. Mas está longe de partilhar do entusiasmo crítico de Mexia e Nunes e receia que o programa da poesia dita da experiência esteja a resultar, em muitos casos, "numa tendência para a facilidade de escrita". Evitando apontar exemplos, por julgar que "é uma coisa um bocado generalizada", Gastão Cruz crê que se está a "descurar o esforço de transfiguração do quotidiano através da linguagem", em prol de uma abordagem "mais imediata, que não recua perante a pequena crónica do centro comercial, do bar ou do supermercado" e que não oferece a possibilidade de "uma leitura menos literal". 
Um juízo que a ensaísta Rosa Maria Martelo, responsável pelo capítulo relativo à poesia dos anos 90 na "História da Literatura Portuguesa" que a Alfa vem publicando, parece pôr em causa, quando sugere que este "tom menor" se articula "com a auto-apreensão de uma subjectividade que se diria procurar ainda nas pequenas coisas uma experiência de infinitude capaz de suspender a permanente disseminação de um mundo plural, sem centro e sem limites". 
Num ensaio que aborda um grande número de poetas e que procura demonstrar a coexistência de diversas linhas dominantes na poesia dos anos 90 - recusando a ideia de que a temática da melancolia funcionaria como uma espécie de mínimo denominador comum -, Rosa Maria Martelo vê como uma das prováveis "marcas distintivas da poesia portuguesa recente" aquilo a que, citando um artigo de Eduardo Prado Coelho sobre Pedro Mexia, chama "o olhar que precede o discurso". Será a passagem de uma poesia que "parecia esperar que a linguagem dotasse o sujeito de um novo olhar" (a frase vem a propósito de um poema de Luiza Neto Jorge) para uma nova relação entre estes mesmos termos, na qual se diria "ser da interacção olhar/mundo que se espera ver surgir uma nova linguagem". 
Também Gastão Cruz, de resto, embora sublinhe o que lhe parecem ser as fragilidades de muita da poesia actual, admite que o cenário comporta excepções. Nas "gerações mais jovens" destaca, além do já desaparecido Luís Miguel Nava, dois poetas dos anos 80, Paulo Teixeira (n. 1962) e Fernando Pinto do Amaral (n. 1960), e outros dois da década seguinte, Luís Quintais e Tolentino Mendonça. Recorda também a estreia tardia de Manuel Gusmão (n. 1945), que considera "uma das grandes revelações dos anos 90", e acrescenta: "Não podemos esquecer que alguns dos poetas que asseguraram a melhor produção desta década são de gerações anteriores, como Pedro Tamen, Fiama, Armando Silva Carvalho e Franco Alexandre, ou ainda Ramos Rosa e Eugénio de Andrade, que mantêm o seu alto nível." 
Olhar não menos céptico sobre a produção dos poetas mais recentes é o de Osvaldo Silvestre, ensaísta e co-organizador da já referida antologia "Século de Ouro", que vê na generalidade do que estes escrevem "alguma debilidade discursiva". O que estes últimos anos trouxeram, segundo Silvestre, "foi a força de alguma afirmação geracional, quase toda ela em torno da editora Quasi e com a novidade da sustentação crítica, sobretudo de Pedro Mexia, a que haveria que somar ultimamente Manuel de Freitas, enquanto poeta e crítico". 
Com estes dois nomes, e ainda com José Ricardo Nunes, "mas este menos publicamente empenhado", a geração actual, defende o ensaísta, "tem os tenores que as dos anos 80 ou 90 não tiveram, já que os candidatos a esse papel, e acima de todos Fernando Pinto do Amaral, rapidamente se deslocaram para um espaço crítico transgeracional". 
Se aprecia o que escreveram nos anos 90 autores como Fiama Hasse Pais Brandão, Armando Silva Carvalho, Manuel António Pina, António Franco Alexandre, Vasco Graça Moura, Fernando Guerreiro ou Adília Lopes, entre outros, já dos poetas que se estrearam nos anos 90, Silvestre destaca apenas um nome: Daniel Faria. Está em sintonia com o poeta e ensaísta Manuel Gusmão, que, "a partir da antologia da Quasi", afirma ter sido este um dos poetas que o surpreendeu. Refere-se ao volume "Anos 90 e Agora", de Jorge Reis-Sá, entre cujas "revelações mais interessantes" Rosa Maria Martelo aponta ainda Carlos Saraiva Pinto, que, nascido em 1952, só se deu a conhecer em 1997, com "Viajante Transitório" (Tema), a que se seguiu "Escrever Foi Um Engano" (O Correio dos Navios, 2000). 
Manuel Gusmão aproxima-se desta ensaísta e de José Ricardo Nunes na convicção de que nem todos os caminhos da nova poesia portuguesa passam pela melancolia. Notando que esta menção se tornou quase "um outro nome para o pós-modernismo", pensa que "a melancolia ou é um chapéu de chuva demasiado largo ou demasiado estreito, e alguns poetas ficam de fora dele". Não deixa de ser curioso que, a título de exemplo, aponte o autor de "A Imprecisa Melancolia", Luís Quintais. 
Admirador de Joaquim Manuel Magalhães não apenas enquanto crítico, mas também como poeta - qualidade em que o crê subestimado -, Gusmão encara com algumas reservas o modo como muitos têm procurado aproximar a sua obra da poesia dos autores mais novos. Lembrando que, desde "Os Dias Pequenos Charcos" (1981), a poesia de Magalhães associa a "um saber prosódico muito nítido" uma "vontade de violência"; e, sublinhando que o recente "Alta Noite em Alta Fraga" (2001) é "um livro que incomoda, um livro onde a experiência do mundo é uma experiência violenta", Gusmão sugere que podemos estar perante algo que é "um reverso do consenso em torno da generalizada qualidade média da poesia portuguesa". E é justamente essa "qualidade mediana" que lhe parece perigosa. "Não sei se é falta de exigência ou falta de pujança." 
Mais optimista mostra-se o ensaísta e tradutor João Barrento, que, no extenso texto com que respondeu ao pedido de um depoimento sobre a poesia portuguesa actual - espera-se que em breve o publique na íntegra -, detecta, além de vários outros nomes "significativos", seis autores cuja voz própria os torna "casos ímpares": Manuel Gusmão, Paulo Teixeira, Fernando Guerreiro, Daniel Faria, Adília Lopes e Manuel de Freitas. Este último, enquanto poeta, estreou-se já em 2000, com "Todos Contentes e Eu Também" (Campo das Letras). Desde então publicou mais seis títulos, sendo os últimos, todos de 2002, "Game Over" (&etc.), "[sic]" (Assírio & Alvim) e, em edição de autor, "Levadas". 
Numa inventariação das diversas linhagens onde "os novíssimos vão ainda beber", Barrento associa este poeta a Herberto Helder e ao "filão, fortíssimo, da 'vocação animal' do poema, omnívoro e violento", afirmando que Manuel de Freitas "soube, melhor do que nenhum outro, cruzar e superar a 'lição' de Herberto (socializando-lhe o essencialismo visceral) com a visão crua, quase apocalíptica, do real que vem dos inícios da década de 80 e de Joaquim Manuel Magalhães". 
Outros "filões" que o ensaísta vê ainda darem fruto são o elegíaco, que "no seu melhor surge em livros de Fernando Pinto do Amaral, José Tolentino Mendonça, ou Luís Quintais", a "melancolia culta", que, depois de Graça Moura, reconhece em Paulo Teixeira e "nalguma poesia de Pedro Mexia ou Fernando Guerreiro", a "tradição intimista", que "dá alguns bons livros de Ana Luísa Amaral, Maria do Rosário Pedreira ou Ana Marques Gastão", e ainda o "grande campo dos enredos banais de um tempo em ruínas", onde destaca Manuel de Freitas, mas encontra também lugar para Paulo José Miranda - autor de três livros editados pela Cotovia: "A Voz que Nos Trai" (1997), "A Arma do Rosto" (1998) e "Tabaco de Deus" (2002) -, Rui Pires Cabral, Jorge Gomes Miranda, Carlos Luís Bessa e Ana Paula Inácio (n. 1966), que publicou dois livros no ano 2000: "As Vinhas de Meu Pai" (Quasi) e "Vago Pressentimento Azul por Cima" (Ilhas). 
Paulo José Miranda, Manuel de Freitas e Daniel Faria são também nomes destacados por Bernardo Pinto de Almeida, embora este poeta e crítico de poesia e de artes plásticas suspeite um tanto das leituras geracionais. "O país de poetas está bem, obrigado, mas isso não quer dizer nada, porque a poesia é sempre apesar disso", afirma, aproximando-se talvez, em formulação irónica, dos receios que a celebrada "qualidade média" dos poetas portugueses actuais inspira a Manuel Gusmão. "Só há poetas bons e maus, não há intermédios", sustenta Bernardo Pinto de Almeida, lembrando que, de uma geração, ficam sempre poucos poetas e, destes, "fica um verso, às vezes um poema". 
Se assim for, parece razoável esperar que entre os autores desses exíguos vestígios que o futuro se dignará conservar venham a constar alguns dos nomes evocados neste texto, que se faz acompanhar de uma brevíssima escolha, que de todo não se pretende representativa, de alguns poemas do século XXI, todos eles de poetas revelados a partir dos anos 90. 

“Uma Nova Geração de Poetas”, Luís Miguel Queirós e Carlos Câmara Leme.
Público - suplemento Mil Folhas, 2003-03-29


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RELÂMPAGO N.º 12.  4|2003
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