Pensar a poesia é que nos propõe Silvina Rodrigues Lopes na
série A Luz como Meio e Limite, sob orientação de Pedro Lapa, professor universitário e
director artístico do Museu Colecção Berardo.
Falar de poesia é afirmar,
postulando-o imanente ao viver humano, um exercício da linguagem que excede o
seu uso instrumental. De outro modo: é referir-se ao que no humano é acção
criadora, decidir-agir irredutível ao cálculo ou ao controle final.
Não há tempos nem
espaços destinados à poesia (ao habitar poeticamente), nem alguma vez se está
em solidão absoluta, pois os outros entram sempre nas palavras que se dizem, no
que se vê e sente. Mas não podemos deixar de distinguir diferentes espaços de
manifestação do viver, que, simplificando, constituem o espaço íntimo e o
espaço público, os quais se conectam pelo amor que, vindo do íntimo, sustenta o
mundo e a sua renovação. A filosofia, as artes, a ciência e a política existem
no espaço público, participando da habitação do mundo de distintas maneiras.
Por nelas não haver objectivos que se coloquem em primeiro plano, nem sequer os
de criação, invenção de matrizes ou prescrição de orientações, as artes
constituem excepção.
Pensar a poesia
como uma das artes implica afastar os clichés que a cercaram até à modernidade
— poesia como emanação de verdades adquiridas por contemplação ou inspiração;
poesia como fornecimento das ditas verdades através do instruir divertindo — e
os que, depois, se colocaram pretendendo ainda tornar explicáveis as formas
infinitas, isto é, intensas e irredutíveis a uma extensão, a um conjunto de
propriedades. Trata-se do exceder do fechamento das formas. Reconhece-se a
posse de méritos aos heróis, aos mestres e aos trabalhadores, mas esses méritos
nada são humanamente sem a poesia — suplemento heterogéneo, afirmação
incondicional que sustenta o axioma de igualdade dos humanos, o da
singularidade de cada um, da sua insubstituibilidade.
Na modernidade
literária, a poesia deixa de poder ser apresentada nos termos humanistas de
“farol da humanidade”. Aprende-se a entendê-la com a humildade do
sentir-pensar, nunca inteiramente luminoso ou escuro, mas em deslocação entre
os dois pólos que se desdobram em infinitas nuances, sem que nenhum deles
prevaleça. A atenção à linguagem na sua materialidade expõe-na como múltipla e
heterogénea, criadora de descontinuidades que contrariam as forças
burocratizantes e despóticas. Encontram-se razões de escrever, razões de um
certo agir: o resistir que incita a resistir à abdicação de viver. Não pela
proposta de algo exemplar, a imitar, mas pela afirmação do incomensurável —
alegria e inquietude, libertação do peso do passado colocado como sol esmagador
e luz única, invenção da memória na (com a) qual se pensa.
Ao associarmos a
casa, que para os humanos é o lugar de habitação que configura o íntimo, à
guarda do fogo como passo decisivo do fabrico de instrumentos e dispositivos
destinados à subsistência e à autoprotecção, vemos como a luz do fogo, ou o
fogo da luz (relâmpago), abre a inexorável passagem entre a autopreservação e o
exterior, que não é apenas o espaço do perigo, mas também o de forças errantes.
Casa de um viver em comum, o mundo tem virtualmente exterior, caos, memórias,
dentro de si.
Leia-se este poema
de Carlos de Oliveira:
Casa
A luz de carbureto
que ferve no gasómetro do pátio
e envolve este soneto
num cheiro de laranjas com
sulfato
(as asas pantanosas dos insectos
reflectidas nos olhos, no
olfacto,
a febre a consumir o meu retrato,
a ameaçar os tectos
da casa que também adoecia
ao contágio da lama
e enfim morria
nos alicerces como numa cama)
a pedregosa luz da poesia
que reconstrói a casa, chama a
chama.
A irrupção do caos
dá-se a partir de uma certa luz, a luz feita de pedras (carburetos) que no
pátio da casa, no átrio do poema, permite a perceptibilidade do que se
experiencia operando a sobreposição de sentidos. Ela permite a organização de
sensações desencontradas e põe à prova ideias e desejos, numa completa
abdicação de estabelecer o que quer que seja. Abdicação da palavra de ordem.
Despojamento. As linhas que o poema traça são de simbiose entre tipos de
sensações reconstruídas, inventadas, que nascem de associações virtuais —
cheiros, palavras, ideias, imagens descontínuas — desencadeadas pela pregnância
do que ferve, uma luz ficcional através da qual o poema é endereçado ao mundo.
Essa luz atravessa meios, sensações, que a tornam cintilante, descontínua,
dando a ver significação e opacidade dos significantes que guardam o fogo
(luz), enquanto pensar-sentir, fidelidade ao viver em comum.
Do fogo das pedras
à pedregosa luz da poesia, a luz escrita desencadeia um movimento
desenquadrante: ela não dá a ver com nitidez imagens de um presente passado,
mas envolve uma forma-poema, “este soneto”, “num cheiro de laranjas com
sulfato”. Por outro lado, tal como a luz do gasómetro persiste apenas na
reacção química, também a luz da poesia apenas persiste na renovação de si. Não
pedra sobre pedra, como seria a renovação da casa ficcionada, mas no fulgor das
chamas, excesso de proximidade da matéria, que o manuseador de fogo, o poeta,
equilibra na coluna breve de palavras. No poema, o rasto de luz da ficção é
cortado em versos pedregosos, separados e ligados pelos intervalos que os
iluminam. De uma palavra a outra palavra (matéria de que são feitos o poema e a
sua leitura) há a chama, o chamar da chama. É pois já indecifrável que a
palavra se entrega à decifração.
Ser afirmação, sem
enquadramento de luz, teoria ou ficção que a contenha, é a condição da poesia
(da arte), porque não há nada antes dela como relação ao outro — nada a
testemunhar, nada a declarar, nada a comunicar. Ela é instauradora de relações
outras que não as de poder, pois dirige-se a um povo que falta (como escreveu
Klee), dirige-se a novas possibilidades de viver em comum, que começam na
resistência a verdades feitas, a ficções petrificadas. A resistência à imagem
do passado como necessidade que traça o futuro é a face perceptível da
afirmação da intensidade febril da memória, da sua não comensurabilidade, que
impede que tudo se reduza ao útil e ao imitável. Frágeis e mortais, os humanos
são-no como os insectos, mas a luz da razão que lhes serve de instrumento de
sobrevivência é também a possibilidade de se protegerem do automatismo e de
olharem os outros chama a chama.
Silvina Rodrigues
Lopes é professora catedrática de Estudos Portugueses na FCSH. É
co-directora da revista Intervalo. Escreveu vários livros,
nomeadamente: A Legitimação em Literatura, Teoria da Despossessão, Aprendizagem do
Incerto, Literatura Defesa do Atrito, A Anomalia Poética, Exercícios de
Aproximação, E Se-para, Tão Simples como Isso, Sobretudo as Vozes
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