Num artigo recente, assinado por Luís Miguel Queirós e Carlos Câmara Leme (Público, suplemento Mil Folhas, 29 de Março de 2003), procurava-se testar a "hipótese de estarmos a assistir, sensivelmente desde meados dos anos 90, ao aparecimento de um conjunto de poetas que, com tudo o que os distingue uns dos outros, corporizam uma geração, no sentido forte do termo". Significativamente, a quase totalidade dos poetas referenciados tinha nascido depois de 1965, tendo, na generalidade dos casos, começado a publicar apenas na segunda metade da década.
“Reencontrar o leitor” - ensaio de Rosa Maria Martelo
sobre NOVA POESIA PORTUGUESA para a revista RELÂMPAGO n.º 12. 4|2003.
O interesse pela poesia é, em
Portugal, algo da ordem do milagre, afirmou há um par de anos, numa entrevista
ao PÚBLICO, o ensaísta Eduardo Lourenço, bem colocado para traçar comparações
com o mercado editorial francês. Um fenómeno que não só não abrandou, como
parece estar a intensificar-se nestes anos inaugurais do século XXI. As
editoras publicam novos títulos a um ritmo alucinante, surgem novas colecções
de poesia, as revistas e jornais dedicam "dossiers" aos poetas mais
jovens e regressaram em força as antologias da "novíssima" lírica
portuguesa, para já não referir outros sinais exteriores igualmente
sintomáticos, como a recente querela entre críticos ou o facto de a polémica em
torno da antologia "Século de Ouro" ter chegado ao Parlamento,
episódio porventura sem precedentes na história da cultura ocidental.
Face às décadas anteriores, o que
parece distinguir o momento actual é a emergência de uma genuína nova geração
de poetas, algo que só seria possível encontrar, defendem alguns, remontando
aos anos 70, se não à década anterior. O PÚBLICO quis saber o que pensam os
críticos da hipótese de estarmos a assistir, sensivelmente desde meados dos
anos 90, ao aparecimento de um conjunto de poetas que, com tudo que os
distingue uns dos outros, corporizam uma geração, no sentido forte do termo.
Ouvidos ensaístas de idades, percursos e registos diversos, boa parte deles
também poetas, verifica-se que quase todos aceitam a tese, ainda que o consenso
comece a esboroar-se quando se trata de discutir o mérito desta nova poesia, ou
de lhe traçar as linhagens, ou ainda de assinalar quais serão os seus
protagonistas mais revelantes.
Entre os que defendem com maior
empenho a vitalidade dos anos 90, por contraste com uma década de 80
alegadamente mais pobre e incaracterística, encontram-se dois críticos que
integram, enquanto poetas, a geração em causa: Pedro Mexia e José Ricardo
Nunes. Ao passo que Mexia defende que a poesia actual "sai directamente
dos anos 70", saltando, "como um cavalo no xadrez", sobre a
década seguinte, já o segundo, mesmo aceitando que há, nos poetas de hoje,
"muita melancolia e muito hiper-realismo", defende que "os
melhores são os que fogem um bocado a esses escolhos".
Ainda assim, quando ambos apontam os
poetas de revelação recente que mais apreciam, mostram-se sintonizados no comum
apreço por dois autores: Rui Pires Cabral (n. 1967), que se estreou em 1994 com
"Pensão Bellinzona & Outros Poemas" e cujo último livro,
"Música Antológica & 11 Cidades" (Presença), data de 1997, e
Carlos Luís Bessa (n. 1967), cujo primeiro título a solo é "Legenda",
de 1995, e que publicou ainda "Termómetro. Diário" (1998) e
"Lançam-se os Músculos em Brutal Oficina" (&etc., 2000). Ambos
aparecem também na recém-lançada antologia "Poetas sem Qualidades"
(Averno, 2002), organizada pelo poeta e crítico Manuel de Freitas.
O nome de que Mexia se sente
"mais próximo" é o de Luís Quintais (n. 1968), que ganhou o prémio
Aula de Poesia de Barcelona com "A Imprecisa Melancolia" (1995), e
que, desde então, publicou já mais quatro títulos, o último dos quais,
"Angst" (Cotovia), saiu em 2002. Mas refere também os primeiros
livros de José Tolentino Mendonça (n. 1965), embora ressalvando que a poesia do
autor "tem alguns perigos à espreita", designadamente "um estilo
amaneirado" que o crítico considera "tributário do lado mau de
Eugénio de Andrade". Recorde-se que o prefácio do último livro de
Tolentino Mendonça, "De Igual para Igual" (Assírio & Alvim,
2001), é assinado pelo poeta de "As Mãos e os Frutos".
José Ricardo Nunes acrescenta à breve
lista das suas afinidades electivas o próprio Pedro Mexia (n. 1973), autor de
"Duplo Império" (1999), "Em Memória" (Gótica, 2000) e
"Avalanche" (Quasi, 2001). E Mexia destaca também Jorge Gomes Miranda
(n. 1965), que editou três títulos de poesia - "O que Nos Protege"
(Pedra Formosa, 1995), "Portadas Abertas" (Presença, 1999) e
"Curtas-Metragens" (Relógio d'Água, 2002) - e é ainda autor daquela
que teria sido a primeira visão panorâmica da sua geração literária,
"Tráfico: Antologia da Nova Literatura Portuguesa", realizada por
encomenda da Porto 2001, que, inexplicavelmente, ainda não fez sair a obra.
Além de se debruçar também sobre os novos ficcionistas, dramaturgos e
ensaístas, o volume, com uma extensa introdução de cerca de uma centena de
páginas, estuda e selecciona boa parte dos poetas aqui referidos, e ainda
alguns que nenhum dos críticos ouvidos citou, como José Miguel Silva (n. 1969),
autor de "O Sino de Areia" (Gilgamesh, 1999) e "Ulisses já não
Mora aqui" (&etc., 2002).
No que Mexia e José Ricardo Nunes
estão mesmo de acordo é na convicção de que a poesia portuguesa atravessa um
momento alto. "Há de facto uma nova geração", garante o segundo,
"uma fornada com mais autores e mais qualidade do que a dos anos 80".
Mexia confirma. Os poetas mais recentes, diz, revelam um tom comum, cujo
"traço marcante tem a ver com a revalorização daquilo a que em Espanha se
chamou 'poesia da experiência'" e que resulta numa "poesia de
recuperação da banalidade, do quotidiano, da experiência urbana, de um certo
pessimismo".
Autor de um volume de ensaios
dedicado a "9 Poetas para o Século XXI", onde aborda detalhadamente a
poesia de vários dos autores aqui referidos, e ainda a de Paulo José Miranda
(n. 1965), João Luís Barreto Guimarães (n. 1967) e do precocemente desaparecido
Daniel Faria (1971-1999), José Ricardo Nunes reconhece que "a palavra
'realidade' é talvez a que mais continua a interpelar-nos, quando olhamos para
este conjunto de poetas". No entanto, nota que, se alguns deles optam por
"discursos melancólicos e crepusculares, nos quais se tem encenado o adeus
e a perda", outros recorrem a "discursos mais combativos e
desmistificadores".
O poeta e ensaísta Gastão Cruz também
acha que a poesia portuguesa mais recente aposta naquilo a que chama "um
mergulho no real" e que é devedora do modo como alguns poetas dos anos 70
procuraram romper com a sua própria geração. Mas está longe de partilhar do
entusiasmo crítico de Mexia e Nunes e receia que o programa da poesia dita da
experiência esteja a resultar, em muitos casos, "numa tendência para a
facilidade de escrita". Evitando apontar exemplos, por julgar que "é
uma coisa um bocado generalizada", Gastão Cruz crê que se está a
"descurar o esforço de transfiguração do quotidiano através da
linguagem", em prol de uma abordagem "mais imediata, que não recua
perante a pequena crónica do centro comercial, do bar ou do supermercado"
e que não oferece a possibilidade de "uma leitura menos literal".
Um juízo que a ensaísta Rosa Maria
Martelo, responsável pelo capítulo relativo à poesia dos anos 90 na
"História da Literatura Portuguesa" que a Alfa vem publicando, parece
pôr em causa, quando sugere que este "tom menor" se articula
"com a auto-apreensão de uma subjectividade que se diria procurar ainda
nas pequenas coisas uma experiência de infinitude capaz de suspender a
permanente disseminação de um mundo plural, sem centro e sem limites".
Num ensaio que aborda um grande
número de poetas e que procura demonstrar a coexistência de diversas linhas
dominantes na poesia dos anos 90 - recusando a ideia de que a temática da
melancolia funcionaria como uma espécie de mínimo denominador comum -, Rosa
Maria Martelo vê como uma das prováveis "marcas distintivas da poesia
portuguesa recente" aquilo a que, citando um artigo de Eduardo Prado
Coelho sobre Pedro Mexia, chama "o olhar que precede o discurso".
Será a passagem de uma poesia que "parecia esperar que a linguagem dotasse
o sujeito de um novo olhar" (a frase vem a propósito de um poema de Luiza
Neto Jorge) para uma nova relação entre estes mesmos termos, na qual se diria
"ser da interacção olhar/mundo que se espera ver surgir uma nova
linguagem".
Também Gastão Cruz, de resto, embora
sublinhe o que lhe parecem ser as fragilidades de muita da poesia actual,
admite que o cenário comporta excepções. Nas "gerações mais jovens"
destaca, além do já desaparecido Luís Miguel Nava, dois poetas dos anos 80,
Paulo Teixeira (n. 1962) e Fernando Pinto do Amaral (n. 1960), e outros dois da
década seguinte, Luís Quintais e Tolentino Mendonça. Recorda também a estreia
tardia de Manuel Gusmão (n. 1945), que considera "uma das grandes
revelações dos anos 90", e acrescenta: "Não podemos esquecer que
alguns dos poetas que asseguraram a melhor produção desta década são de
gerações anteriores, como Pedro Tamen, Fiama, Armando Silva Carvalho e Franco
Alexandre, ou ainda Ramos Rosa e Eugénio de Andrade, que mantêm o seu alto
nível."
Olhar não menos céptico sobre a
produção dos poetas mais recentes é o de Osvaldo Silvestre, ensaísta e co-organizador
da já referida antologia "Século de Ouro", que vê na generalidade do
que estes escrevem "alguma debilidade discursiva". O que estes
últimos anos trouxeram, segundo Silvestre, "foi a força de alguma
afirmação geracional, quase toda ela em torno da editora Quasi e com a novidade
da sustentação crítica, sobretudo de Pedro Mexia, a que haveria que somar
ultimamente Manuel de Freitas, enquanto poeta e crítico".
Com estes dois nomes, e ainda com
José Ricardo Nunes, "mas este menos publicamente empenhado", a
geração actual, defende o ensaísta, "tem os tenores que as dos anos 80 ou
90 não tiveram, já que os candidatos a esse papel, e acima de todos Fernando
Pinto do Amaral, rapidamente se deslocaram para um espaço crítico
transgeracional".
Se aprecia o que escreveram nos anos
90 autores como Fiama Hasse Pais Brandão, Armando Silva Carvalho, Manuel
António Pina, António Franco Alexandre, Vasco Graça Moura, Fernando Guerreiro
ou Adília Lopes, entre outros, já dos poetas que se estrearam nos anos 90, Silvestre
destaca apenas um nome: Daniel Faria. Está em sintonia com o poeta e ensaísta
Manuel Gusmão, que, "a partir da antologia da Quasi", afirma ter sido
este um dos poetas que o surpreendeu. Refere-se ao volume "Anos 90 e
Agora", de Jorge Reis-Sá, entre cujas "revelações mais
interessantes" Rosa Maria Martelo aponta ainda Carlos Saraiva Pinto, que,
nascido em 1952, só se deu a conhecer em 1997, com "Viajante
Transitório" (Tema), a que se seguiu "Escrever Foi Um Engano" (O
Correio dos Navios, 2000).
Manuel Gusmão aproxima-se desta
ensaísta e de José Ricardo Nunes na convicção de que nem todos os caminhos da
nova poesia portuguesa passam pela melancolia. Notando que esta menção se
tornou quase "um outro nome para o pós-modernismo", pensa que "a
melancolia ou é um chapéu de chuva demasiado largo ou demasiado estreito, e
alguns poetas ficam de fora dele". Não deixa de ser curioso que, a título
de exemplo, aponte o autor de "A Imprecisa Melancolia", Luís
Quintais.
Admirador de Joaquim Manuel Magalhães
não apenas enquanto crítico, mas também como poeta - qualidade em que o crê
subestimado -, Gusmão encara com algumas reservas o modo como muitos têm
procurado aproximar a sua obra da poesia dos autores mais novos. Lembrando que,
desde "Os Dias Pequenos Charcos" (1981), a poesia de Magalhães
associa a "um saber prosódico muito nítido" uma "vontade de
violência"; e, sublinhando que o recente "Alta Noite em Alta
Fraga" (2001) é "um livro que incomoda, um livro onde a experiência do
mundo é uma experiência violenta", Gusmão sugere que podemos estar perante
algo que é "um reverso do consenso em torno da generalizada qualidade
média da poesia portuguesa". E é justamente essa "qualidade
mediana" que lhe parece perigosa. "Não sei se é falta de exigência ou
falta de pujança."
Mais optimista mostra-se o ensaísta e
tradutor João Barrento, que, no extenso texto com que respondeu ao pedido de um
depoimento sobre a poesia portuguesa actual - espera-se que em breve o publique
na íntegra -, detecta, além de vários outros nomes "significativos",
seis autores cuja voz própria os torna "casos ímpares": Manuel
Gusmão, Paulo Teixeira, Fernando Guerreiro, Daniel Faria, Adília Lopes e Manuel
de Freitas. Este último, enquanto poeta, estreou-se já em 2000, com "Todos
Contentes e Eu Também" (Campo das Letras). Desde então publicou mais seis
títulos, sendo os últimos, todos de 2002, "Game Over" (&etc.),
"[sic]" (Assírio & Alvim) e, em edição de autor,
"Levadas".
Numa inventariação das diversas
linhagens onde "os novíssimos vão ainda beber", Barrento associa este
poeta a Herberto Helder e ao "filão, fortíssimo, da 'vocação animal' do
poema, omnívoro e violento", afirmando que Manuel de Freitas "soube,
melhor do que nenhum outro, cruzar e superar a 'lição' de Herberto (socializando-lhe
o essencialismo visceral) com a visão crua, quase apocalíptica, do real que vem
dos inícios da década de 80 e de Joaquim Manuel Magalhães".
Outros "filões" que o
ensaísta vê ainda darem fruto são o elegíaco, que "no seu melhor surge em
livros de Fernando Pinto do Amaral, José Tolentino Mendonça, ou Luís
Quintais", a "melancolia culta", que, depois de Graça Moura,
reconhece em Paulo Teixeira e "nalguma poesia de Pedro Mexia ou Fernando
Guerreiro", a "tradição intimista", que "dá alguns bons
livros de Ana Luísa Amaral, Maria do Rosário Pedreira ou Ana Marques
Gastão", e ainda o "grande campo dos enredos banais de um tempo em
ruínas", onde destaca Manuel de Freitas, mas encontra também lugar para
Paulo José Miranda - autor de três livros editados pela Cotovia: "A Voz
que Nos Trai" (1997), "A Arma do Rosto" (1998) e "Tabaco de
Deus" (2002) -, Rui Pires Cabral, Jorge Gomes Miranda, Carlos Luís Bessa e
Ana Paula Inácio (n. 1966), que publicou dois livros no ano 2000: "As
Vinhas de Meu Pai" (Quasi) e "Vago Pressentimento Azul por Cima"
(Ilhas).
Paulo José Miranda, Manuel de Freitas
e Daniel Faria são também nomes destacados por Bernardo Pinto de Almeida,
embora este poeta e crítico de poesia e de artes plásticas suspeite um tanto
das leituras geracionais. "O país de poetas está bem, obrigado, mas isso
não quer dizer nada, porque a poesia é sempre apesar disso", afirma,
aproximando-se talvez, em formulação irónica, dos receios que a celebrada
"qualidade média" dos poetas portugueses actuais inspira a Manuel
Gusmão. "Só há poetas bons e maus, não há intermédios", sustenta
Bernardo Pinto de Almeida, lembrando que, de uma geração, ficam sempre poucos
poetas e, destes, "fica um verso, às vezes um poema".
Se assim for, parece razoável esperar
que entre os autores desses exíguos vestígios que o futuro se dignará conservar
venham a constar alguns dos nomes evocados neste texto, que se faz acompanhar
de uma brevíssima escolha, que de todo não se pretende representativa, de
alguns poemas do século XXI, todos eles de poetas revelados a partir dos anos
90.
“Uma Nova Geração de
Poetas”, Luís Miguel Queirós e Carlos Câmara Leme.
Público - suplemento
Mil Folhas, 2003-03-29
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RELÂMPAGO N.º 12. 4|2003
Director deste Número: Fernando Pinto do Amaral. Conselho Editorial: Carlos Mendes de Sousa, Gastão Cruz, Paulo Teixeira.
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Gastão Cruz – “Nova poesia” e “poesia nova”
Rosa Maria Martelo – Reencontrar o leitor
Vítor Moura – O giroscópio
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