Na próxima terça-feira, dia 27, pelas
19h30, vai decorrer na livraria Solmar uma sessão de apresentação de um livro que
tem por tema aquele que, histórica e factualmente, é o primeiro livro de Daniel de Sá – Em Nome do Povo. Amem. O
livro a apresentar tem como título Prós sem Contra traduzindo, de
alguma forma, com cambiantes várias, o pensamento expresso nos textos de três
autores diferentes que dão a sua opinião sobre o livro - Luiz Fagundes Duarte,
Sidónio Bettencourt e quem assina estas linhas.
Em relação ao livro do Daniel – Em Nome do Povo. Amem – as considerações
de maior interesse com que se pode abordar este livro podem reduzir-se a três.
Em primeiro lugar, não é, não
pretendeu ser nunca, um livro de poesia, mas de antipoesia. O seu subtítulo
di-lo expressamente –Antipoemas e outras palavras. E
coerentemente com isto, em todo o livro, Daniel só usará por duas vezes a
palavra poesia, mas sempre no sentido de a menorizar. Numa das vezes, para
contrapô-la à prosa nos seguintes termos: “Porque a prosa é a arquitectura e a
poesia é o ornato”. E carregará na minimização apodando-a do “belo superficial
das coisas essenciais”. Doutra vez, para ironizar com os chavões desse simples
ornato que é a poesia. Dirá num parêntese, que isolará o termo do restante
texto, como para não o contaminar:
(Na poesia, quando há
olhos
E alma,
Há quase sempre abrolhos
E calma).
É de salientar que esta consideração pejorativa
desse artifício verbal, deste convencional e estereotipado jogo de consonâncias
e rimas será precisamente um dos aspectos fulcrais realçado pela corrente da
Antipoesia, nomeadamente do seu principal corifeu – o chileno Nicanor Parra.
Ainda com a mesma coerência, o livro
não se compõe de poemas, mas de “Textos” que Daniel cataloga com a aridez pouco
poética do número, contabilizando-os tabelionicamente de I a XXV.
A segunda observação a fazer deriva da
anterior. Esta detinha-se na forma que assumia nos seus cultores a poesia tradicional.
A poesia, segundo Parra tinha de libertar-se dos formalismos useiros e vezeiros
da poética tradicional, porque ela já não correspondia às exigências de um
mundo, em que a relação com a natureza, como objecto de contemplação, mais ou
menos lírico, e a relação com a sociedade se transformara de um mundo de
certeza e certezas e de ordem, num mundo de inquietação, dúvida e angústia . E
esse mundo, nesta nova desarmonia, reclamava não o lirismo subjectivista, mas o
pessimismo, o cepticismo e a crítica sarcástica. Em resumo, a alteração formal
pretendia responder às novas exigências de uma alteração de fundo. Este
fenómeno de rotura e mudança radical, no caso do Em Nome do Povo. Amem, não
será ao nível da relação com a natureza, mas com a história e os acontecimentos
dos tempos de então que Daniel vivia no seu quotidiano e revivia nos seus
“textos”. A rotura será o abalo social e político do “25 de Abril” que exigia
também outras formas de abordagem da sociedade e dos acontecimentos. Com este
livro, Daniel traduz as etapas de uma ruptura social e política que assumiu,
inicialmente, a magia de todas as mudanças radicais num contexto adverso e
contraditório. Penso que poucos autores, em Portugal, terão traduzido como
Daniel com vestes de antipoesia, ou mesmo de poesia, as vicissitudes, as contingências,
a ambivalência, os avanços e recuos do chamado “PREC” e de todas as transformações
ansiadas e sonhadas no 25 de Abril.
Todo o livro capta em cheio este
sinuoso contexto e percurso sequente ao 25 de Abril de 74.
Apenas um exemplo a ilustrar o que fica
dito:
“Achou-se que era velho
demais um velho Estado Novo
E descobriu-se que um estado é a voz do povo.
E houve a sublime certeza
De que é o povo quem manda,
Sem clero nem nobreza.
Mas é com estes ainda que tudo anda”.
Finalmente, o terceiro aspecto.
Trata-se de um livro que o Daniel retirou da sua bibliografia. Não creio que o tenha
renegado, mas sem dúvida que o enjeitou.
Que alcance e significado se deve retirar
desse facto? Em primeiro lugar, enquadrá-lo nos numerosíssimos exemplos de
rejeições das suas Juvenílias ou
primeiras obras por muitos autores. Desde Virgílio, que tentou queimar a Eneida por duas vezes, até autores que,
em alguns casos, já depois de publicada a obra, tentarão fazê-la desaparecer, como
Nathaniel Hawthorne, celebrado autor do século XIX com a sua Letra Escarlate, ou ainda como Vitorino
Nemésio que “enjeitou” a sua obra de estreia. Em segundo lugar, que, na sua
maturidade, e depois da sua evolução até à plena posse de todos os seus recursos
de conteúdo e expressão, muitos autores tendem a condenar ao limbo obras de
estreia que a seus olhos apenas sobressaem pelas insuficiências ou
imperfeições.
Dionísio Sousa, 22.10.2015 (23h41).
“Daniel de Sá - o único grande nome da antipoesia na literatura açoriana”, Correio dos Açores, Ano 96, n.º
30766, 2015-10-24
Ilustrações
de Paula Rego para Sopa de Pedra, Texto de
Cas Willing. Porto Editora, 2015
SOPA DE PEDRA
Um
escrevia o nome da mulher amada com letras de macarrão Enquanto a sopa esfriava no prato. Outro era metade solidão e metade multidão. Estou de olho neles. Um andava com a espada sangrenta na mão. Outro fingia que sentia o que de verdade sentia. Este dizia que não cabe no poema o preço do feijão. Estou de olho neles. Este vê a vida como origem da sua inspiração, A vida que é comer, defecar e morrer. Todo poeta é maluco. Estou de olho neles. E também tem que ser maluco o pintor E o músico e o prosador. A loucura é muito boa Para todo o criador. Mesmo para os cozinheiros Ou qualquer inventor. Estou de olho neles. É melhor ser capenga do que cego. A poesia é uma sopa de pedra. Cabe tudo dentro dela.
Rubem
Fonseca, Amálgama.
Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2013.
O CALDO DE PEDRA
Um frade andava ao peditório; chegou à
porta de um lavrador, mas não lhe quiseram aí dar nada. O frade estava a cair
com fome, e disse:
– Vou ver se faço um caldinho de pedra.
E pegou numa pedra do chão, sacudiu‑lhe a terra e pôs‑se
a olhar para ela para ver se era boa para fazer um caldo. A gente da casa pôs‑se
a rir do frade e daquela lembrança. Diz o frade:
– Então nunca comeram caldo de pedra? Só
lhes digo que é uma coisa muito boa.
Responderam‑lhe:
– Sempre queremos ver isso.
Foi o que o frade quis ouvir. Depois de
ter lavado a pedra, disse:
– Se me emprestassem aí um pucarinho…
Deram‑lhe uma panela de barro.
Ele encheu‑a de água e deitou‑lhe
a pedra dentro.
– Agora se me deixassem estar a
panelinha aí ao pé das brasas…
Deixaram. Assim que a panela começou a
chiar, disse ele:
– Com um bocadinho de unto é que o caldo
ficava de primor…
Foram‑lhe buscar um pedaço
de unto. Ferveu, ferveu, e a gente da casa pasmada para o que via. Diz o frade,
provando o caldo:
– Está um bocadinho insonso, bem precisa
de uma pedrinha de sal.
Também lhe deram o sal. Temperou, provou,
e disse:
– Agora é que com uns olhinhos de couve
ficava que os anjos o comeriam.
A dona da casa foi à horta e trouxe‑lhe
duas couves tenras. O frade limpou‑as e ripou‑as
com os dedos, deitando as folhas na panela.
Quando os olhos já estavam aferventados,
disse o frade:
– Ai, um naquinho de chouriço é que lhe
dava uma graça…
Trouxeram‑lhe um pedaço
de chouriço; ele botou‑o na panela, e enquanto
se cozia, tirou do alforge pão, e arranjou‑se para comer com vagar.
O caldo cheirava que era um regalo. Comeu e lambeu o beiço; depois de despejada
a panela, ficou a pedra no fundo; a gente da casa, que estava com os olhos
nele, perguntou‑lhe:
– Oh senhor frade, então a pedra?
Respondeu o frade:
– A pedra, lavo‑a e levo‑a
comigo para outra vez.
E assim comeu onde não lhe queriam dar
nada.
BRAGA, Teófilo – “O caldo
de pedra”. In Contos Tradicionais do Povo Português (uma seleção), Porto
Editora, 2015, pp. 45‑46.
UMA SOPINHA PARA O CAMINHO
Se o frade alguma vez existiu por aqui, ninguém sabe.
Mas a história da sopa da pedra era boa e vinha mesmo a calhar para a sopa que
José Manuel "Toucinho" inventou nos anos 60. Hoje a sopa faz mexer a
economia de Almeirim.
Na realidade esta sopa da pedra tem duas histórias - a
lenda, e a história real. A lenda é conhecida de todos. Havia um frade
espertalhão que para conseguir comida chegava a casa dos aldeões e garantia que
conseguia fazer uma sopa deliciosa só com uma pedra. Os que o recebiam,
ansiosos por perceber como é que isso era possível, iam acedendo aos pedidos
dele - "Se agora me dessem só um dentezinho de alho é que isto ficava
delicioso", "Está quase pronta, mas com um bocadinho de
toucinho...", "E umas folhitas de couve." E por aí fora, até a
panela estar cheia de coisas boas e a sopa estar deliciosa, com a pedra no
fundo e tudo o resto que o frade tinha conseguido que lhe dessem.
A outra história, a real, nasce aqui neste
restaurante, que começou por ser uma mercearia, fundada por José Manuel
"Toucinho" e pela mulher, Maria Manuela Aranha. "Para receber os
viajantes, e para ser mais rápido dar o jantar, os proprietários faziam esta
sopa", conta João Paulo Simões. "E o número de viajantes foi
aumentando." A fama da sopa começava a espalhar-se. "Alguém terá dito
que era tão pesada que parecia as pedras da calçada." Foi então que se
lembraram da lenda do frade e começaram a chamar-lhe "sopa da pedra".
Ilustrações de Paula Rego para Sopa de Pedra, Texto de Cas Willing. Porto Editora, 2015
A pintora portuguesa de 80 anos juntou-se à sua
filha Cas Willing e reinventaram este conto popular
A
história corria mais ou menos assim: era uma vez um frade que andava a pedir
esmola para poder ter alguma coisinha para comer. Os aldeões eram todos uns mãos-de-vaca
e ninguém lhe dava tostão. O frade espertalhão pegou numa pedra e, perante os
olhares curiosos, preparou-se para ferver água só com o seixo lá dentro. “Bom,
bom era com um bocado de sal.” E trouxeram-lhe sal. “Bom, bom era com um bocado
de azeite.” E trouxeram-lhe azeite.
A lengalenga segue por aí fora até
haver no tacho do frade cebolas, cenouras e até um chouriço. No fim do repasto,
com a panela vazia, a pedra é lavada e guardada no bolso do religioso. Como
assim?, perguntam os aldeões, indignados. “Guardo-a para a próxima vez que
tiver fome.”
Com mais ou menos ponto acrescentado
por quem conta este conto, esta história popular portuguesa tem seguido sempre
pelo mesmo caminho. Até chegar às mãos da família de Paula Rego. A pintora de
80 anos que vive em Londres juntou-se à sua filha, Cas Willing, e juntas deram
nova roupagem à história.
Em vez do frade, a protagonista passa
a ser agora uma rapariga de vestido vermelho e os aldeões conseguem ser ainda
mais vis do que no conto tradicional. Também há um pai que acaba por (spoiler
alert) morrer de fome e, uma vez na cozinha, a miúda de vestido vermelho, para
além da sopa, também sabe fazer o melhor arroz de pedra do reino. E pelo
estômago conquista os sacanas da aldeia. Se a filha Cas tornou as esquinas da
história mais contemporâneas, a mãe juntou-lhe o seu traço inconfundível e
criou 14 pinturas inéditas que, por si só, já são uma narrativa. Tudo junto, o
livro torna-se uma pequena obra de arte, capaz de distrair miúdos na hora de ir
para a cama, mas igualmente capaz de enriquecer a prateleira de um
coleccionador de livros de arte.
QUEM SAI AOS SEUSSobre Paula Rego, há pouco de novo a
dizer, já que é um dos nomes grandes da arte europeia e a sua obra já
ultrapassou há muito as fronteiras de Portugal. Mas Cas Willing é outra
história e o exemplo vivo de que filho de peixe sabe nadar.
Cas, hoje casada e com duas filhas,
nasceu em Londres, fruto do casamento de Paula Rego com o pintor britânico
Victor Willing. A escrita para crianças não é novidade para si, tendo já
trabalhado em vários argumentos e produzido histórias infantis para a
televisão. Uma das séries mais emblemáticas em que participou, “Little
Princess”, continua no ar no Reino Unido, no Channel 5, nove anos depois da
estreia. Antes disso, e já com um mestrado em Artes no Royal College of Art,
trabalhou na indústria cinematográfica como designer e marionetista. No filme
“O Cristal Encantado”, de Jim Henson (o criador dos Marretas), Cas fez parte da
equipa que criou e produziu os skeksis, a raça de vilões da película. E em
“Sonhos de Criança”, o filme que retrata a relação de Lewis Carroll (“Alice no
País das Maravilhas”) com Alice Liddell, fez parte da equipa que controlava os
cabos que davam vida ao Chapeleiro Louco e às outras personagens do conto
infantil.
Paula Rego: os contos tradicionais “mostram a natureza humana como ela”
Numa entrevista à agência Lusa, Paula Rego e a filha, Cas Willing, explicaram como foi o processo de recriar a história "Sopa da Pedra", que as duas publicaram em conjunto.
REMY-PIERRE RIBIERE/LUSA
A pintora Paula Rego acredita que as histórias tradicionais são muito importantes para descobrir o mundo e quem somos, e coloca as fábulas portuguesas entre as “melhores de todas”, porque “mostram a natureza humana como ela é”.
“Sopa de Pedra” foi uma dessas histórias tradicionais que recentemente fascinou a pintora, levando-a a criar ilustrações e a pedir a colaboração da filha, Cas Willing, para escrever o texto do livro lançado este mês em Portugal pela Porto Editora.
Numa entrevista à agência Lusa, por correio eletrónico, a pintora e a filha explicaram como foi o processo de recriar uma história – da qual existem versões em vários países – que mantém o enredo principal, mas muda o protagonista.
Na versão tradicional portuguesa, um frade consegue convencer um camponês de que é capaz de fazer uma sopa apenas com uma pedra, mas vai-lhe pedindo ingredientes para dar mais sabor ao caldo.
“‘A Sopa de Pedra’ é uma história universal. Há muitas versões. Em Portugal, o trapaceiro é um frade, mas, em França, é um grupo de soldados e, na Escandinávia, é um mendigo”, observou Paula Rego, artista portuguesa radicada em Londres desde os anos 1970.
Nesta versão ilustrada pela pintora, o frade é substituído por uma jovem que tem de ser muito persistente e perspicaz para sobreviver em tempos difíceis.
Escolher uma jovem para o centro da história tem razões óbvias para Paula Rego: “O mais importante é que o protagonista tem muita fome. Não são só os homens que têm muita fome, as mulheres também. E uma jovem sozinha é muito mais vulnerável”.
Cas Willing – filha de Paula Rego e do artista britânico Victor Willing (1928-1988) — acompanha sobretudo a área da gestão e questões empresariais do trabalho da mãe, assim como a atividade da Casa das Histórias, em Cascais, inaugurada em 2009.
Pela primeira vez, com este livro, fizeram algo juntas ao nível criativo: “Quando tinha nove anos, bordei uma cabeça numa tapeçaria da minha mãe. Acho que foi a última vez que a ajudei num trabalho. Eu nem sequer faço de modelo para as pinturas dela”, disse à Lusa.
Para criar “Sopa de Pedra”, Cas explicou que se sentiu uma espécie de “detetive”. Paula Rego – que completou 80 anos em janeiro – mostrou à filha uns desenhos que dizia serem basicamente a história da sopa de pedra e precisava de um texto para acompanhar, na esperança de que fosse publicada.
“Ela foi muito persuasora e persistente, e, finalmente, eu disse que tentaria. Mas se não conseguisse um resultado ao fim de uma semana, ela teria de procurar outra pessoa”, relatou à Lusa a autora, que tem criado argumentos e produção de programas infantis para a televisão, entre eles “Little Princess”, série exibida no Reino Unido.
A primeira vez que olhou para os desenhos sentiu-se um pouco perdida: “Não percebi do que se tratava. Vi burros alados, casais a discutir e uma rapariga a cozinhar algo numa panela”.
“Espalhei os desenhos no chão e olhei para as imagens como se fossem um ‘story board’ para um filme ou um livro de banda desenhada. Reordenei-os, até sentir que tinha criado uma história visual com um início, meio e fim”, descreveu.
Através da leitura das imagens, e tendo como referência a “Sopa de Pedra”, a autora foi imaginando uma narrativa: um homem que parecia doente passou a ser o pai impossibilitado de sustentar a família; a jovem que, por vezes, aparecia com um vestido vermelho demasiado largo, passou a ser a protagonista, que usava as roupas da mãe já falecida.
Nesta construção – que diz ter sido um processo “interessante e divertido” – também incluiu memórias mútuas em Portugal, da vida de camponeses, em aldeias junto ao mar, e da história da própria família, como o pai doente, e decidiu ainda incluir questões ligadas às mulheres, por a protagonista ser uma rapariga.
“Não basta ter um sorriso doce e ser bonita. É preciso ser-se bom a fazer alguma coisa e ser persistente. Não há um príncipe que apareça para a salvar. Ela vai ter de continuar a trabalhar para ter comida”, salienta a autora.
Para Cas Willing, em resposta às questões colocadas pela Lusa, esta história da sopa de pedra “não acaba com uma moral, mas com a ideia de que a partilha beneficia todos”.
Para Paula Rego, é enorme a importância dos contos tradicionais, sobretudo os mais antigos, porque são “os mais verdadeiros”.
“Mostram a natureza humana como ela é, sem terem sido corrompidos com a ideia de ‘como deve ser’ ou qualquer sentimentalismo. As pessoas acham que as crianças devem ser protegidas da crueldade que há nestas histórias, mas elas não se importam. Gostam porque as compreendem muito bem”, sustenta a pintora.
“Por isso dei ao museu de Cascais o nome Casa das Histórias”.
José Augusto da Costa
Resende,Rimas Humoristicas e Satiricas.
Ponta Delgada, Edição do autor, 1892.
José
Augusto da Costa Rezende (1849-1896), jornalista, poeta satírico, natural de
Ponta Delgada, aí residiu, trabalhou e veio a falecer. Teve como pseudónimo:
Aníbal Metralha.
Natália Correia: Figura emblemática da cultura e da
afirmação da identidade açoriana
Por: António
Valdemar
A primeira fase da vida e obra de Natália Correia – decorreu dos
anos 40, ao início dos anos 50. Concilia o jornalismo, a literatura e a
política...
Natália
Correia pertenceu ao reduzido número de mulheres que basta só dizer o primeiro
nome para as identificar na amplitude da sua criação artística e literária e na
singularidade da sua dimensão humana – Natália, Sophia, Agustina, Amália.
Nasceu
nos Açores, na ilha de São Miguel, na Fajã de Baixo. Viveu com a mãe e a irmã
Carmem, ora na Fajã de Baixo, ora em Ponta Delgada. Pai e mãe entraram em
rutura quando Natália tinha alguns meses. O pai emigrou para o Brasil.
A
mãe de Natália, Maria José Oliveira professora primária, mulher formada nos
valores cívicos e culturais da Iª Republica, com formação laica e tendências
libertárias – o que era raro na época - além do exercício do magistério,
colaborou em jornais e revistas, frequentou tertúlias, publicou dois romances
mas, desde sempre, preocupou-se com a educação das filhas incutindo-lhes os princípios
da democracia e a aproximação com a modernidade.
Em
1934 a família instalou-se, definitivamente, em Lisboa. Maria José Oliveira
quis dar às filhas outros horizontes. Recordou Natália: “Sendo uma intelectual
que se não pode realizar, inteiramente, devido ao meio e às circunstâncias
procurou preparar-nos». Entendia que «o desenvolvimento espiritual da mulher
corresponde a uma atitude social». A permanência em S. Miguel, mesmo na cidade
de Ponta Delgada, não reunia condições «para nos desenvolver espiritualmente».
Era «um meio muito exíguo».
Natália
Correia ainda passou pelo Liceu de Ponta Delgada; frequentou em Lisboa, o Liceu
Filipa de Lencastre, mas sem qualquer aproveitamento. Mostrou-se refratária aos
métodos de ensino. Ela própria o declarou: «Havia uma situação de disciplina,
de imposição e de opressão incompatível com a minha maneira de ser. Nessa
altura, julgava eu que tal atitude era determinada por preguiça ou relutância
aos estudos. Agora sei que as minhas razões eram outras. Descobri, mais tarde, particularmente
em trabalhos para que se exigiam disciplina e estrutura, que não podia
vergar-me a regras que me fossem impostas de fora. Eu é que as tinha de criar».
Resultou,
portanto, num «fracasso total» «a razão imediata da vinda para estudar em
Lisboa». A passagem de Natália pelo liceu foi, segundo as suas palavras, de
«ave migratória». O problema não se colocava só em São Miguel. Em Lisboa o rumo
era o mesmo deparou com os mesmos métodos. A escola não era um espaço de
formação e transformação coletiva; nem um lugar de esperança e de procura, de
encontro aberto à pluralidade do saber e à difusão do conhecimento.
Natália
Correia tem uma formação autodidata. Também aprendeu francês e inglês que
falava e escrevia com desembaraço.
Apesar
de pertencer a uma família muito católica e muito tradicional Maria José
Oliveira ultrapassou a rotina que se circunscrevia ao exercício burocrático do
magistério. O ensino era um ato de participação e de cidadania, a fim de pensar
e interrogar o mundo.
Teve
relações pessoais e literárias com figuras da oposição democrática, entre as
quais o jornalista Carvalhão Duarte que viria a ser diretor d’A República. Desde muito jovem, Natália
conviveu, com estas personalidades e através delas privou com muitas outras que
contribuíram para a sua afirmação pessoal, literária e política.
A
partir de meados dos anos 40, tornou-se uma figura de Lisboa ligada aos
principais acontecimentos literários e políticos que marcaram, decisivamente, a
segunda metade do século XX.
Está
perpetuada na toponímia de Lisboa, da Grande Lisboa, da ilha de São Miguel e de
outras ilhas dos Açores. O seu nome também se encontra inscrito e com todo o
relevo na Fajã de Baixo. E ainda em diversas outras bibliotecas, como é o caso
de Carnide e de Odivelas. Tem sido homenageada por universidades públicas e
privadas. Foram assinalados, em 2013, com numerosas manifestações o 20º
aniversário da morte e os 90 anos do nascimento de Natália Correia. Assumiram, contudo,
especial relevo as comemorações que se efetuaram nos Açores promovidas pela
Secretaria Regional da Educação, Ciência e Cultura, desde a ilha de Santa Maria
até à ilha do Corvo.
Natália
colocou, no local mais íntimo de trabalho da sua casa de Lisboa, o mítico 52,
5º da rua Rodrigues Sampaio, entre a rua de Santa Marta e a Avenida da
Liberdade e onde viveu 40 anos, as imagens tutelares de Antero, de Pessoa e de outros
mestres de quem recebera ensinamentos, conselhos e advertências: António Sérgio
e Almada Negreiros. Entre eles destacava-se a mãe e um amigo da mãe, Cardoso
Martha, que lhe deu explicações de português, francês e história. Antigo seminarista,
com profundo conhecimento das humanidades clássicas, da literatura portuguesa e
das várias literaturas de expressão românica, Manuel Cardoso Martha (1882 –
1958) era um erudito, um bibliógrafo, um bibliófilo, um colecionador de
manuscritos e de livros que adquiriu de muitos modos, sem excluir apropriações
ilícitas, em livrarias, em alfarrabistas e até em casas de amigos que visitava
e lhe davam almoço ou jantar a troco de pilhérias que era exímio em narrar à sobremesa.
Na sua maioria integram grande parte da «Antologia da Poesia Erótica e
Satírica» que Natália publicou, nos anos 60, com êxito retumbante e foi
apreendida pela PIDE e pela Censura.
Natália,
em matéria de formação intelectual reconhecia, no entanto, que ficara a dever à
mãe, na infância e na adolescência, os conhecimentos fundamentais para entender
a vida e aceder à cultura. Lembrava, com frequência, que a mãe fizera despertar
nas filhas o amor pelos livros e pela leitura, para ajudar a ver o mundo com
outros olhos e de vários prismas; e, ainda, o sentimento da música, a história
grega e romana, a explicação das fábulas, a decifração das figuras mitológicas e
reais.
Se
a identificação de Natália Correia com Lisboa foi muito intensa, a relação com
os Açores foi igualmente profunda. Jamais esqueceu o famoso cozido das Furnas,
os inhames e maçarocas de milho «cozidos na terra fervente e mole à beira da
Lagoa e que depois comemos numa mesa de pedra sob as plumas dos fetos; por
entre colinas de pedra-pomes, líquenes, musgos, mantos verdes que pendem dos
ribanceiros onde se abrem as alas rosadas e azuis das hortênsias».
Uma
coisa foi sempre evidente: Natália nunca se desligou das raízes. O seu percurso
de quase sete décadas, cabe nestes versos: «Para Lisboa me trouxeram/ não de
uma vez e embarcada:/ minha longa matéria foi/ pouco a pouco transportada./ Recém-vinda
de ficada/em morosa maravilha, / sempre a chegar a Lisboa/ e sempre a ficar na ilha».
A
primeira fase da vida e obra de Natália Correia decorreu dos anos 40, ao início
dos anos 50. Concilia o jornalismo, a literatura e a política. Frequentou os
meios políticos da oposição; colaborou no Rádio Clube Português. Teve o
estímulo de dois intelectuais micaelenses radicados em Lisboa: Rebelo de
Bettencourt e, sobretudo, do Padre Diniz da Luz que já tinha grande evidência no
jornalismo.
Assinou,
em 1945, as listas do MUD. Todavia, ao contrário da maioria dos intelectuais e
políticos da sua geração – por exemplo Mário Soares, Aboim Inglês, Salgado
Zenha - não ingressou no MUD Juvenil, dominado pelo Partido Comunista.
Escreveu
no semanário O Sol fundado e dirigido por Alberto Lelo Portela, militar de
prestígio que fez parte dos primórdios da aviação e que se destacou nas lutas
da oposição ao salazarismo. A chefia da redação era assegurada por Alves
Morgado (1901 - 1980) um jornalista profissional, conhecedor das regras do
ofício na elaboração do noticiário, nos contatos com a tipografia, na revisão de
textos de jovens colaboradores. Reunia, porém, a colaboração de grandes nomes.
António Sérgio foi um deles e exerceu logo influência intelectual em Natália
Correia.
Natália
escreveu sobre política nacional e internacional: analisou a influência da
guerra de 1939 a 1945, em vários setores; condenou a orientação de Hitler, os
efeitos do nazismo, os fundamentos do Reich, as extensões do fascismo na
Europa, a sua disseminação em Portugal, na classe politica, militar, na
literatura e na arte.
Teve
acesso aos preparativos da candidatura de Norton de Matos à Presidência da
República que se apresentará um ano depois. Para o jornal o SOL entrevistou o
general na sua casa em Ponte de Lima. Mais tarde, em 1958, participou na
candidatura de Humberto Delgado à Presidência da República. Em 1969 esteve com
Mário Soares e Salgado Zenha na CEUD Apoiou muitos outros movimentos, entre os
quais o assalto ao Santa Maria comandado por Henrique Galvão e que deu lugar a
um dos seus livros Canto do País Emerso, logo apreendido pela Pide e
pela Censura.
Tem
neste poema um dos mais vibrantes ímpetos de reivindicação das suas origens:
Não sou daqui. Mamei em peitos oceânicos/ minha mãe era ninfa, meu pai chuva de
lava/ mestiça de onda e de enxofres vulcânicos/ sou de mim mesma pomba húmida e
brava. (….) «Não sou daqui. A minha pátria não é esta/ bússola quebrada dos impulsos./
Sou rápida, sou solta, talvez nuvem/ nuvens minhas irmãs que me argolais os
pulsos/ tomai os meus cabelos! Levai-os para a floresta.
Natália
integrou o Canto do País Emerso no «desafogo de uma tendência que se
acentua nas minhas últimas produções, que é a compreensão de que a poesia se
encontra ligada aos momentos mais importantes da vida coletiva e individual» e,
por outro lado, «numa temática portuguesa compreendida entre a Peregrinação de
Fernão Mendes Pinto e a Ode Marítima de Fernando Pessoa/ Álvaro de
Campos».
Os primórdios literários de
Natália Correia
acusam a influência do neorrealismo...
Os
primórdios literários de Natália Correia acusam a influência do neorrealismo.
Desta fase avulta, nomeadamente, o romance Anoiteceu no Bairro. Demarcou-se,
todavia, deste movimento literário e político, no início dos anos 50. Sem
profissão de fé declarada ficou próxima do surrealismo. Classificou «uma etapa
importante senão fundamental da poesia» do século XX. Luís Pacheco editor dos
surrealistas publicou os seus livros Dimensão
Encontrada (1957), Passaporte (1958), Comunicação (1959) e Canto do País Emerso
(1961). Com Mário Cesariny, Cruzeiro Seixas, Alexandre O’ Neil, Manuel
de Lima, Mário Henrique Leiria manteve relações pessoais literárias e
artísticas.
Os
vínculos são visíveis, nunca os negou, mas costumava dar esta explicação: «se
existe qualquer relação entre a minha poesia e o surrealismo é francamente a
posteriori, isto é para os que quiserem vê-la. Quanto a procurarem-me
antecedentes, também temos por cá outros mais à mão que foram surrealistas sem pensar
nisso: Gomes Leal e Sá Carneiro».
Os
momentos altos da obra de Natália – que não é regular e daí a sua autenticidade
e a sua força desmedida – multiplicam-se a partir de Dimensão
Encontrada (1957), Passaporte (1958), Comunicação (1959), editadas
por Luis Pacheco nas edições Contraponto.
Entre
as numerosas controvérsias que Natália Correia desencadeou, antes e depois do
25 de Abril, destacam-se a publicação, no final do salazarismo do já referido Canto
do Pais Emerso e da Antologia da Poesia
Erótica e Satírica (1965) e, na «primavera marcelista» a
responsabilidade editorial das Novas Cartas
Portuguesas da autoria de Maria Velho da Costa,
Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno. Ambas apreendidas pela PIDE e pela
Censura e ambas julgadas no Tribunal Plenário de Lisboa.
Embora
nunca se tivesse submetido à disciplina de escolas, de grupos e de partidos,
Natália Correia foi uma das personalidades da sua geração que, (salvaguardadas
as diferenças de opinião e de temperamento), era reconhecida em todos os
setores.
Natália
Correia celebrou a vida, como expressão de euforia, de afirmação de coragem, de
libelo acusatório. A sua poesia é dominada pelo arrebatamento lírico, o ímpeto
romântico, a exuberância barroca, que se cruzam com a força dos símbolos e a
profusão das metáforas.
Contudo,
também na linhagem das Cantigas de Escarnio e
Maldizer, Natália Correia disseca o poder. Não poupa a aristocracia
decadente e com prosápias; a vulgaridade burguesa, os vícios e as vilezas dos
novos e novíssimos ricos, os políticos arrivistas e corruptos, as manifestações
de ignorância e fanatismo. Assim criou as Cantigas
de Risadilha.
Juntamente
com as irreprimíveis manifestações de açorianidade, Natália Correia estabeleceu
uma relação profunda com Lisboa e a grande Lisboa. Em 1971, com a escultora e
poetisa Isabel Meireles criou uma sociedade para instalar um bar, restaurante/
café concerto, no largo da Graça, no rés-do-chão da Vila Souza, um edifício
histórico do bairro e da própria cidade. Ficou a chamar-se o Botequim,
um nome com forte carga literária, politica e boémia, que remontava aos
primeiros cafés de Lisboa, do século XVIII, ao tempo de Bocage, de José Agostinho
e outros representantes das Arcádias, do pré-romantismo, dos antecedentes
culturais e políticos da revolução liberal.
Para
o Botequim – e o escritor e
jornalista Fernando Dacosta analisou todos estes aspetos num livro notável,
acerca da vida e da obra de Natália Correia - se transferiram surrealistas, e
poetas e escritores de muitas outras tendências. Políticos de todos os
quadrantes. Deputados, ministros, atuais ou futuros presidentes da República.
Representantes do movimento da independência dos Açores. Convergiram no Botequim,
devido à personalidade magnética de Natália, as sucessivas fases do processo
revolucionário e contra revolucionário que surgiu com o 25 de Abril. A presença
diária de Natália irradiou no Botequim durante
mais de 20 anos, em noites memoráveis.
Em
1980 ingressou com Francisco Sá Carneiro, na Aliança Democrática. Foi,
entretanto, deputada e assumiu posições polémicas, nomeadamente a favor do
aborto, que não se identificavam com a linha de orientação estatutária e religiosa
do PSD e o CDS. A sua trajetória partidária terminou no PRD, o grupo política
que se constituiu sob a égide de Ramalho Eanes.
Ficaram
célebres os versos, de Natália Correia ao comentar o deputado do CDS, João
Morgado por ter proferido, auge do debate parlamentar da legislação sobre o
aborto, afirmações que deram brado na época, nomeadamente: «o ato sexual é para
fazer filhos». Natália não se conteve e escreveu, de jato um poema que
circulou, em todo o País, até porque sairia, no dia seguinte, no Diário
de Lisboa: «Já que o coito – diz Morgado -/tem
como fim cristalino,/preciso e imaculado/fazer menina ou menino;/e cada vez que
o varão/sexual petisco manduca,/temos na procriação/prova de que houve truca –
truca./ Sendo pai só de um rebento, /lógica é a conclusão/ de que o viril
instrumento/ só usou – parca ração!-/uma vez. E se a função/faz o órgão- diz o
ditado-/consumada essa exceção,/ ficou capado o Morgado!»
Este
episódio - que passou a fazer parte do folclore satírico de São Bento –
constituiu uma das posições de rebeldia e contestação que assumiu perante a
classe política, fosse qual fosse o partido, umas vezes fustigada com a energia
do protesto, outras objeto de ironia e sarcasmo. Com a morte de Natália morreu
o Botequim. Natália Correia
estabeleceu sempre uma identificação profunda entre a vida e a poesia e que a destaca
como uma das mais notáveis personalidades do século XX em Portugal.
Aliança da criação literária com a coragem na intervenção política.
Presença vigorosa na sociedade
portuguesa, da segunda metade do século XX, Natália Correia (1923-1993)
afirmou-se pela singularidade da criação literária e pela determinação e
coragem na intervenção política. Justifica a homenagem, hoje em Lisboa (às
18h), na Fundação Mário Soares – presidida pelo próprio Mário Soares, seu amigo
e admirador de sempre – e integrada na série “Vidas com Sentido”, para
distinguir figuras que prestigiaram a cultura e honraram a cidadania.
Tal como muitos outros intelectuais e
artistas da sua geração, Natália Correia participou em grandes acontecimentos
da oposição democrática– a fundação do MUD, as campanhas para a
Presidência da República de Norton de Matos e Humberto Delgado. Apoiou outras
comissões eleitorais, entre as quais a CEUD (1969) liderada por Mário Soares e
que se encontra na génese do Partido Socialista. Associou-se aos protestos
contra o assassinato de Humberto Delgado; insurgiu-se perante a reabertura do
Tarrafal e com a perversa denominação Campo do Chão Bom, exarada noDiário do Governo; e
contra o encerramento da Sociedade Portuguesa de Escritores por ter premiado a
obra de Ludovino Vieira, preso no Tarrafal. Subscreveu documentos de
solidariedade a presos políticos e às greves universitárias.
Teve livros proibidos pela censura
como, por exemplo,Canto do País Emerso,
a propósito da ocupação do paqueteSanta Mariacomandada
por Henrique Galvão; a tragédia jocosaHomúnculo;
e aAntologia da Poesia Erótica e
Satíricaque
organizou e prefaciou, apreendida pela PIDE, e objeto de processo-crime e
julgamento no Tribunal Plenário que a condenou a três anos de prisão, com pena
suspensa.
Logo a seguir ao 25 de Abril, numa
entrevista aoExpresso, Natália
Correia revelou a disponibilidade para a ação política. No âmbito da Aliança
Democrática presidida por Francisco Sá Carneiro e através do PRD foi eleita
deputada. Proferiu intervenções memoráveis. A defesa da língua portuguesa, a
valorização do património cultural, a defesa dos direitos humanos, os direitos
das mulheres, o debate sobre o aborto assinalaram, entre outros temas, a sua
passagem pelo hemiciclo de São Bento.
A política ativa não afetou a
trajetória literária. Teve um vínculo ao surrealismo, devido às relações
pessoais com Mário Cesariny e António Maria Lisboa, Cruzeiro Seixas e Manuel de
Lima. Integrou as publicações de Luís Pacheco, o editor do Contraponto, das
obras e autores daquele movimento.
Nunca se submeteu à disciplina de
escolas e às cartilhas de grupos. Quis ser ela própria. Todavia, conciliava à
energia e originalidade da sua criação, a herança poética de Gomes Leal e de
Mário Sá Carneiro; o impulso desencadeado pelasOdesde
Álvaro de Campos, e a torrencialidade daCena do Ódiode
Almada Negreiros. Atingiu a partir dos seus livrosDimensão Encontrada(1957)
eComunicação(1959)
momentos significativos da poesia portuguesa. Evidenciou-se pelo arrebatamento
lírico, a exuberância barroca, o ímpeto romântico, a truculência satírica que
se cruzam com a força dos símbolos, a profusão das metáforas, a incursão no
herético e no erótico que afronta e estilhaça as convenções existentes.
Num dos seus poemas autorretratou-se:
“Hoje quero a violência da dádiva interdita/ sem lírios e sem lagos/ e sem
gesto vago/ desprendido da mão que um sonho agita./ Existe a seiva. Existe o
instinto. E existo eu/ suspensa de mundos cintilantes pelas veias /metade
fêmea, metade mar como as sereias.”
Entre os paradigmas intelectuais e
éticos também incluía a figura tutelar e a obra emblemática de Antero Quental,
um dos seus patrícios açorianos de eleição. Era o poeta que lhe desvendava as
portas da utopia, e a sede de infinito.
Procurava, contudo, distanciar-se do
Antero noturno, do poeta e pensador carregado de pessimismo amargo que conduz à
negação e à derrota e num dos seusSonetos(indisfarçavelmente
autobiográficos) confessou: que sempre o mal pior é ter nascido.
Identificava-se com o outro Antero, o luminoso, que estimulava o exercício da
liberdade e da justiça; e descobria: o meio-dia em vida refervendo, a tarde
rumorosa e repousada, o claro sol amigo dos heróis; (...) tu pensamento não és
fogo és luz.
Daí a categórica afirmação: "Não
Antero, meu Santo, não me mato/ antes me zango até ficar num cato/quem me tocar
(maldito!) que se pique." Assim, Natália Correia definia o seu
comportamento humano e os itinerários da sua poesia. Em vez do mal pior da
angústia e desespero do Antero noturno, elegia um bem melhor, o privilégio de
ter vivido e continuar a viver até à dádiva interdita. Para sentir todas as
volúpias e todas as audácias. A vida, em plenitude.