sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

A lírica camoniana


 

Na obra lírica, cujo cânone continua problemático, Camões não só acolhe ainda temas e formas da poesia tradicional, mas também cultiva persistente apreço pela poesia em «medida velha» e vem a compor em redondilhas a suma e o acume da sua lírica: o poema «Sôbolos rios que vão». A análise textual e contextualizante das suas Rimas tem comprovado, aliás, relações biunívocas entre o poetar camoniano na medida velha e nas formas italianizantes – o que melhor se compreende, como mostrou Isabel Almeida, quando são tidos em conta os casos em que os géneros de arte menor permitem uma abertura ao quotidiano e aos motivos de burla, com correspondentes registos de linguagem, que à época não eram acolhidos, sob pena de quebra do tom, nos géneros maiores da medida nova, ou os casos em que a galantaria tradicional se liberta das injunções petrarquistas e se aventura por vias paródicas ou alternativas no retrato feminino e nos tópicos literários conexos.

Não obstante, é sobretudo na medida nova e nas formas italianistas que Camões desenvolve genialmente a sua dialética de amor e conhecimento, de destino e profetismo maldito, apreensível em sucessivos ciclos de euforia vã, crise e nova demanda de plenitude (erótica hedonista, amor espiritualizante da donna angelicata, síntese neoplatónica, petrarquismo, poética do desafogo) até à superação metafísico-religiosa.

Na verdade, a leitura estruturante da lírica de Camões tem de nela reconhecer estes vetores: uma vocação de conhecimento, endógeno ao próprio discurso poético, que resiste à tentação do canto «Sem mais especular nenhum secreto», recusando o lirismo de evasão alienante ou de mero desabafo compensatório (como ressalta nas «Oitavas ao desconcerto do mundo»); o debate íntimo de um eu hipertrofiado, sedento de plenitude, mas abalado pela reflexão lúcida sobre a existência e, por conseguinte, tentando sucessivas hipóteses de vã euforia e enfrentando outras tantas experiências de crise; a conformação maneirista dessa deriva entre engano e desengano, mas através da reelaboração de elementos temático-formais oriundos do Renascimento; o papel fundamental que nessa experiência maneirista de crise cabe à dialética amorosa e, nesta, ao petrarquismo sombriamente reconvertido pela ascese augustiniana e, assim, tornado incompatível com o eudemonismo neoplatónico; a dialéctica da saudade entre desejo de regresso ao passado e projeto à procura do seu objeto – sendo que a componente do lirismo camoniano que permanece decisivamente viva é a «expressão tensa daquilo que, num desejo humano (nomeadamente, o desejo erótico), necessariamente de objeto imediato e de objeto mediato, de finito e de infinito» (Óscar Lopes).

Nessa perspetiva, pode-se ler a lírica de Camões a partir da erosão de um vector próprio do Classicismo renascentista: a pletora natural, a pansensualidade radiosa e a erótica hedonista, com seus tópicos do locus amoenus (e do banho, com contemplação deslumbrada e excitada do corpo feminino), do carpe diem e do collige, uirgo, rosas, emergem nos sonetos «Está-se a Primavera trasladando» e «Se as penas com que Amor tão mal me trata», resplandecem por transposição de fábula mitológica na ode «Naquele tempo branco» e sofrem irónica corrosão na famosa Écloga dos Faunos.

Não é menos exíguo o corpus, nem menos amarga a corrosão de outra hipótese de visão eufórica do amor e da existência com matriz no dolce stil'nuovo, isto é, a reelaboração camoniana do amor edificante pela donna angelicata e do otimismo espiritual (soneto «Um mover d'olhos brando e piadoso») e suas derivações (sonetos «Fermosos olhos que na idade nossa», «Alma minha gentil, que te partiste», «Cara minha inimiga em cuja mão»).

Mais ampla e mais densa é a penetração da síntese neoplatónica, destinada todavia a idêntica questionação: exercendo sem dúvida forte atração sobre a poesia deste humanista cristão, encontra assimilação original na ode «Pode um desejo imenso»; surge, porém, o desajuste entre a adesão mental a essa visão eufórica do Amor (e do Homem) e a reação existencial perante as suas implicações iniciáticas e ascensionais, que traz a suspeita da inconformidade da natureza humana.

Nesse debate e na consequente crise de confiança são explorados tanto o intertexto petrarquiano quanto termos e conceitos de origem platónica e/ou aristotélica (sonetos «Transforma-se o amador na cousa amada», «Pede o desejo, Dama, que vos veja»). Depois, o legado do petrarquismo nos motivos do enamoramento vai sendo desencaminhado na poesia camoniana de análise da tensão subjetiva, de visão paradoxal do Amor e de mundividência problemática (sonetos «Quando o sol descoberto vai mostrando», «Aquela triste e leda madrugada», «Amor é um fogo que arde sem se ver», elegia «Aquela que de amor descomedido» ), cujas graves implicações metafísicas e religiosas se entreveem nos sonetos «Ah! minha Dinamene! Assi deixaste» e «Quando de minhas mágoas a comprida». O adensamento da visão desenganada do amor e a condenação moral do desejo erótico coloca a lírica de Camões sob o signo da solidão angustiada e da morte absurda (sonetos «Em prisões baixas fui um tempo atado», «O céu, a terra, o vento sossegado»).

Entretanto, progride dolorosamente a lucidez no exercício do canto, arrastando consigo a desconstrução de tópicos da cultura literária pós-renascentista e, em particular, da tradição petrarquista. Assim, tem impacto exemplar a identificação do «bem passado» com tempo de desconhecimento e do «mal presente» como tempo de conhecimento decetivo e antevisão negativa do futuro (sonetos «Doces lembranças da passada glória», «Eu cantei já, e agora vou chorando» , «Com grandes esperanças já cantei»), tal como a transformação do tema da «mudança» em inquietação profunda perante a labilidade e a confusão da vida humana. A dialética lírica descobre a Razão oscilante entre o herdado pressuposto do «regimento» do mundo e a vivência do «desvario» universal ou entre a crença na Providência divina e a angustiada hipótese de um Deus absconditus e otiosus (sonetos «Correm turvas as águas deste rio», «Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades»).

Por isso, também o tema do «desconcerto» do mundo é questionado a vários níveis: a perspetiva tradicional sobre o seu sentido ético-social adquire vibrante pessoalização (cf. «Esparsa sua ao desconcerto do mundo», «Labirinto do autor queixando-se do mundo», etc); o seu sentido psicológico-moral desemboca numa vivência agónica do dissídio petrarquiano e petrarquista, enquanto a autognose avança na cisão íntima (veja-se o soneto «Tanto de meu estado me acho incerto» e o «caso de Actéon» na Écloga dos Faunos); finalmente, o tema do desconcerto ganha alcance metafísico, sob a suspeita do absurdo; e tudo isso se encadeia nas oitavas «Quem pode ser no mundo tão quieto».

Passa a reinar na lírica camoniana a inquietação do sujeito pela responsabilidade da desventura, do erro e do sofrimento. Em textos como o soneto «Erros meus, fortuna, amor ardente», a exasperação emocional e discursiva parece impor-se como a única resposta. Mas é a luta com o destino que polariza as energias narcísicas do Poeta e lhe sustenta a grandeza maldita e o orgulho desesperado (soneto «O dia em que eu nasci, moura e pereça»). O verbo lírico que aí se exalta conduz, porém, o sujeito para uma situação profética, sugerindo o poder demiúrgico da poesia (soneto «Despois que quis Amor que eu só passasse»). Repõe-se então o problema da viabilidade e do alcance da poética do «desafogo» que assoma em múltiplos poemas e encontra o seu apogeu estético e a sua falência existencial na canção «Vinde cá, meu tão certo secretário» e na sua tentativa de catarse pela construção de uma biografia modelar.

A persistência do bloqueio do Homem perante o desconcerto do mundo, a laceração da alma na melancolia e a angústia perante a arbitrariedade do destino cruel podem remeter o eu para o refúgio derradeiro numa fé que não ilumina a razão oscilante, nem rege o desvario existencial, nem move a consciência à autorresponsabilização e a vontade à conversão, como se vê nos sonetos fideístas «Verdade, Amor, Razão, Merecimento» e «Vós outros, que buscais repouso certo». Mas na poesia de um humanista cristão não colhe essa solução evasiva e no canto palinódico das redondilhas «Sôbolos rios que vão» Camões assume a responsabilidade pessoal no combate cristão, a Fé ilumina a razão no confronto com os «mundanos acidentes», a ascese e a oração fortalecem a alma na sublimação dos «afeitos» humanos e a Graça redentora do Cristo garante a possibilidade de salvação eterna. Essa via de realismo cristão, isto é, de pessimismo antropológico e de otimismo escatológico, não traz apenas a superação das anteriores aporias metafísicas; traz também a superação do ceticismo em relação à poesia, na medida em que a palinódia leva dos «cantares d'amor profano» aos «versos d'amor divino», logo magnificamente cultivados na elegia «Se quando contemplamos as secretas» e em quatro sonetos cristológicos («Para se namorar do que criou», «Dece do Céu imenso Deus benigno», «Dos Céus à terra dece a mor beleza», «Porque a tamanhas penas se oferece»).

 

José Carlos Seabra Pereira, As Literaturas em Língua Portuguesa (Das origens aos nossos dias). Lisboa, Gradiva, dezembro de 2019 (1.ª edição), pp. 41-44.




CARREIRO, José. “A lírica camoniana”. Portugal, Folha de Poesia, 29-01-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/01/a-lirica-camoniana.html



quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Antologia antirracista e antifascista de poetas estrangeiros em Portugal

A que terra devemos voltar?

Em que terra devíamos estar que não aquela que estamos agora?

A quem pertencem estas terras todas? 


Brasil/Galiza/Portugal, Editora Urutau.
Organização: Manuella Bezerra de Melo e Wladimir Vaz

 


SMOOTHIE

 

ela cresceu numa favela de Bagdá

na primeira década deste século.

pelo menos uma vez por semana

era acordada em plena madrugada

pelo som ensurdecedor dos rotores

de um enorme helicóptero americano

dando vôos rasantes sobre sua casa

sem objetivo

para além

da intimidação.

hoje vive num subúrbio sossegado de Lisboa

traduzindo para o árabe novelas brasileiras.

quase morre de susto

toda vez que eu uso o liquidificador.

 

Luca Argel

nasceu em 1988 no Rio de Janeiro, e vive desde 2012 em Portugal. É licenciado em música e mestre em literatura, e tenta equilibrar o seu trabalho entre as duas áreas. Tem 5 livros e 4 álbuns lançados. É apaixonado por samba.

 

 


Não se vão livrar de mim tão depressa

Estrangeira: nunca.

Cidadã de nenhures

alma de toda a parte

maldita bruxa,

tormento.

Não se vão livrar de mim tão depressa.

**

Non vi libererete di me così in fretta

Straniera: mai.

Cittadina di nessun luogo

anima di ogni dove

maledetta strega, tormento.

Non vi libererete di me così in fretta.

 

Noemi Alfieri

é investigadora, migrante. A sua escrita é atravessada pelas preocupações à volta da violência, do género, do colonialismo, da opressão capitalista, da propaganda e das construções raciais. Italiana, a viver em Lisboa.

 


HOMEM DE CÔR

 

Sou balanta, sou kimbundo

Sou badio, marronga ou angular

Continental ou insular

Há quem me chame homem de côr

Tenho nome e apelido

Sou do norte, sou do sul

E como tu, gerado no centro

Bendito esse teu ventre Mamãe

Sou exótico p’ra a folia

Sou selvagem quando incomodo

Sou dos teus quando convém

Sou o tal homem de côr

Dizem que sou do terceiro mundo

E, segundo bocas infames

Neste universo sem primeiro

Nem civilizado sou

Sou maconde, sou forro

Sampadjudo, mandjáku, kinkôngo

Operário e intelecto

Mas só me chamam homem de côr

Sou de lá já sou de cá

Vou, não sei p’ra onde

Com o vento que já sopra

Ora p’ra lá, ora p’ra cá

Sou filho disto

Sou filho daquilo…

Sou filho do vento

Sou filho deste mundo.

 

Costa Neto

Músico compositor, intérprete e produtor. Natural de Moçambique. Residente em Portugal

 

 

https://editoraurutau.com.br/


A antologia de poesia VOLTA PRA TUA TERRA reúne as seguintes vozes de migrantes a residir em Portugal:

Amanda Vital, Ana Luiza Tinoco, Ana Paula Vulcão, Bruna Carolina Carvalho, Carla Muhlhaus, Carol Braga, Costa Neto, Daniel Cruz, Danilo Cardoso, Delmar Maia Gonçalves, Duda Las Casas, Dulce Semedo, Elizabeth Olegario, Ellen Lima, Etivaldo Camala, Flávio Catelli, Francisco Mateus, Francisco Welligton Barbosa Jr, Gabriela Carvalho, Gahbe, Hilda de Paulo / Mãe Paulo, Huggo Iora, Irma Estopiñà, Ivan Braz, Jamila Pereira, Jaqueline Arashida, Jean D. Soares, Jorgette Dumby, Juliano Mattos, Laura Beaujour, Leidy Rocio Anzola Chaparro, Luca Argel, Luciana Pontes, Luciana Soares, Mai Zenun, Maria Giulia Pinheiro, Mariana Dorigatti, Marianna Serrano, Monise Martinez, Murilo B. Lense, Murilo Guimarães, Noemi Alfieri, Ronaldo Cagiano, Salazar Crioulo, Samara Azevedo, Samara Ribeiro, Sylvia Damiani, Vum-Vum Kamusasadi.

 

Fonte: “3 poemas de V̶O̶L̶T̶A̶ PRA TUA TERRA: Uma antologia antirracista/antifascista de poetas estrangeirxs em Portugal”. Redação shifter.sapo.pt, 22/01/2021.



CARREIRO, José. “Antologia antirracista e antifascista de poetas estrangeiros em Portugal”. Portugal, Folha de Poesia, 27-01-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/01/antologia-antirracista-e-antifascista.html