Na obra
lírica, cujo cânone continua
problemático, Camões não só acolhe ainda temas e formas da poesia tradicional,
mas também cultiva persistente apreço
pela poesia em «medida velha» e vem a compor em redondilhas a suma e o acume da sua lírica: o poema «Sôbolos rios que vão».
A análise textual e contextualizante das suas
Rimas tem comprovado, aliás, relações biunívocas entre o poetar camoniano na medida velha e nas formas italianizantes – o que melhor se compreende, como mostrou Isabel Almeida, quando são tidos em conta
os casos em que os géneros de arte menor permitem uma abertura ao quotidiano e aos motivos de burla, com
correspondentes registos de linguagem, que à época não eram acolhidos, sob pena de quebra do tom, nos
géneros maiores da
medida nova, ou os casos
em que a galantaria tradicional se liberta das injunções petrarquistas e se aventura por vias paródicas ou alternativas no retrato feminino e nos tópicos literários
conexos.
Não
obstante, é sobretudo na
medida nova e nas formas italianistas que Camões desenvolve genialmente a
sua dialética de amor
e conhecimento, de
destino e profetismo
maldito, apreensível em
sucessivos ciclos de euforia vã, crise
e nova demanda de plenitude (erótica hedonista, amor espiritualizante da donna
angelicata, síntese neoplatónica, petrarquismo, poética do desafogo) até à
superação metafísico-religiosa.
Na
verdade, a leitura estruturante da lírica de Camões tem de nela reconhecer estes
vetores: uma vocação de conhecimento, endógeno ao próprio discurso poético, que
resiste à tentação do canto «Sem mais
especular nenhum secreto», recusando o lirismo
de evasão alienante ou de mero desabafo
compensatório (como ressalta nas «Oitavas ao desconcerto do mundo»); o debate íntimo de um
eu hipertrofiado, sedento de plenitude, mas
abalado pela reflexão lúcida sobre a existência e, por conseguinte, tentando sucessivas hipóteses de vã euforia
e enfrentando outras tantas experiências de crise; a
conformação maneirista dessa deriva entre engano e desengano, mas através da reelaboração de elementos temático-formais oriundos do Renascimento;
o papel fundamental que nessa experiência maneirista de crise cabe à dialética amorosa e, nesta, ao petrarquismo
sombriamente reconvertido pela ascese
augustiniana e, assim, tornado incompatível com o eudemonismo
neoplatónico; a dialéctica da saudade entre desejo de regresso ao passado e projeto à
procura do seu objeto – sendo que a componente do lirismo camoniano que permanece
decisivamente viva é a «expressão
tensa daquilo que, num desejo humano (nomeadamente, o desejo erótico), há necessariamente de objeto imediato e de objeto
mediato, de finito e de infinito» (Óscar Lopes).
Nessa
perspetiva, pode-se ler a lírica de Camões
a partir da erosão de um vector próprio do Classicismo renascentista: a pletora natural, a
pansensualidade radiosa e a erótica hedonista, com seus tópicos do locus amoenus (e
do banho, com contemplação deslumbrada e excitada do corpo feminino), do carpe
diem e do collige, uirgo,
rosas, emergem nos sonetos «Está-se a Primavera trasladando» e «Se as penas com que Amor tão mal me trata», resplandecem por transposição de fábula mitológica na ode «Naquele tempo
branco» e sofrem irónica
corrosão na famosa Écloga
dos Faunos.
Não é
menos exíguo o corpus, nem menos amarga
a corrosão de outra hipótese de visão eufórica do amor e
da existência com matriz no dolce stil'nuovo, isto é, a reelaboração
camoniana do amor edificante pela donna angelicata e do otimismo espiritual
(soneto «Um mover
d'olhos brando e piadoso») e suas derivações (sonetos «Fermosos olhos que na idade nossa», «Alma minha gentil, que te partiste», «Cara minha inimiga em cuja mão»).
Mais
ampla e mais densa é
a penetração da síntese
neoplatónica, destinada todavia a idêntica questionação: exercendo sem dúvida
forte atração sobre a
poesia deste humanista cristão, encontra
assimilação original na ode «Pode um desejo
imenso»; surge,
porém, o desajuste entre
a adesão mental a essa visão
eufórica do Amor (e do Homem) e a reação
existencial perante as suas implicações iniciáticas e ascensionais, que traz a suspeita da inconformidade da natureza humana.
Nesse debate e na consequente
crise de confiança são explorados tanto o intertexto
petrarquiano quanto
termos e conceitos de origem
platónica e/ou aristotélica (sonetos «Transforma-se o amador na cousa amada», «Pede o desejo, Dama, que vos veja»). Depois, o legado do petrarquismo nos motivos do enamoramento vai sendo desencaminhado na poesia camoniana de análise da tensão subjetiva, de visão paradoxal do Amor e de mundividência problemática (sonetos «Quando o sol descoberto vai mostrando», «Aquela triste e leda madrugada», «Amor é um fogo que arde sem se ver», elegia «Aquela que de amor descomedido» ), cujas graves implicações metafísicas e religiosas
se entreveem nos sonetos «Ah! minha Dinamene! Assi deixaste» e «Quando de minhas mágoas a comprida». O adensamento da visão desenganada do amor
e a condenação moral do desejo erótico coloca a lírica de Camões sob o signo da solidão angustiada e da morte absurda (sonetos «Em prisões baixas fui um tempo atado», «O céu, a terra, o vento sossegado»).
Entretanto,
progride dolorosamente a lucidez no exercício do canto,
arrastando consigo a desconstrução de tópicos
da cultura literária pós-renascentista e, em
particular, da
tradição petrarquista.
Assim, tem impacto
exemplar a identificação do «bem passado» com tempo de desconhecimento e do «mal presente» como tempo de conhecimento decetivo e antevisão negativa do futuro (sonetos «Doces lembranças da
passada glória»,
«Eu cantei já, e agora vou
chorando» , «Com grandes esperanças já cantei»), tal como a transformação do tema da «mudança» em inquietação
profunda perante a labilidade e a confusão da vida humana. A dialética
lírica descobre a Razão oscilante entre o herdado pressuposto do «regimento» do mundo e a vivência do «desvario» universal ou entre a crença na
Providência divina e
a angustiada hipótese
de um Deus absconditus e otiosus (sonetos «Correm turvas as águas deste rio», «Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades»).
Por isso, também o tema do «desconcerto» do mundo é questionado a vários níveis: a perspetiva tradicional sobre o seu sentido ético-social adquire vibrante pessoalização (cf. «Esparsa
sua ao desconcerto do mundo», «Labirinto do autor queixando-se do mundo», etc); o seu sentido psicológico-moral
desemboca numa vivência agónica do dissídio petrarquiano e petrarquista, enquanto a autognose avança na cisão íntima (veja-se o soneto «Tanto de meu estado me acho incerto» e o «caso de Actéon» na Écloga dos Faunos); finalmente, o tema do desconcerto ganha alcance metafísico, sob a suspeita do absurdo; e tudo isso se encadeia nas oitavas «Quem pode ser no mundo tão quieto».
Passa a reinar na lírica camoniana a inquietação do sujeito pela responsabilidade da desventura, do erro e do sofrimento. Em textos como o soneto «Erros meus, má fortuna, amor ardente», a exasperação emocional e discursiva parece impor-se como a única resposta. Mas é a luta com o destino que polariza as energias narcísicas do Poeta e lhe sustenta a grandeza maldita e o
orgulho desesperado (soneto «O dia em que eu nasci, moura e pereça»). O verbo lírico que aí se exalta conduz, porém, o sujeito para uma situação profética, sugerindo o poder demiúrgico da poesia (soneto «Despois que quis Amor que eu só passasse»). Repõe-se então o problema da viabilidade e
do alcance da poética do «desafogo» que assoma em múltiplos poemas e encontra o seu apogeu estético e a sua falência
existencial na canção «Vinde cá, meu tão certo secretário» e na sua tentativa de
catarse pela construção de uma biografia modelar.
A
persistência do bloqueio do Homem perante o desconcerto do mundo, a laceração
da alma na melancolia e a angústia perante a arbitrariedade do destino cruel
podem remeter o eu para o refúgio derradeiro numa fé que não ilumina a razão
oscilante, nem rege o desvario existencial, nem move a consciência à autorresponsabilização
e a vontade à conversão, como se vê nos sonetos fideístas «Verdade, Amor, Razão,
Merecimento»
e «Vós outros, que buscais repouso
certo». Mas na
poesia de um humanista cristão não colhe essa solução evasiva e no canto
palinódico das redondilhas «Sôbolos rios que vão» Camões assume a
responsabilidade pessoal no combate cristão, a Fé ilumina a razão no confronto
com os «mundanos acidentes», a ascese e a oração
fortalecem a alma na sublimação dos «afeitos» humanos
e a Graça redentora do Cristo garante a possibilidade de salvação eterna. Essa
via de realismo cristão, isto é, de pessimismo antropológico e de otimismo
escatológico, não traz apenas a superação das anteriores aporias metafísicas;
traz também a superação do ceticismo em relação à poesia, na medida em que a
palinódia leva dos «cantares d'amor profano» aos «versos
d'amor divino», logo
magnificamente cultivados
na elegia «Se quando contemplamos as secretas» e em quatro sonetos
cristológicos («Para se namorar do que
criou», «Dece
do Céu imenso Deus benigno», «Dos Céus à terra dece a
mor beleza», «Porque a tamanhas penas
se oferece»).
José Carlos Seabra Pereira, As Literaturas
em Língua Portuguesa (Das origens aos nossos dias). Lisboa, Gradiva,
dezembro de 2019 (1.ª edição), pp. 41-44.
CARREIRO, José. “A lírica
camoniana”. Portugal, Folha de Poesia, 29-01-2021. Disponível em:
https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/01/a-lirica-camoniana.html
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