sexta-feira, 22 de julho de 2022

Eu velida nom dormia, Pedro Anes Solaz (Pedr’Eanes Solaz)

 



            Eu velida1 nom dormia

                   lelia doura2

            e meu amigo venia

                   edoi3 lelia doura.

           

5          Nom dormia e cuidava

                   lelia doura

            e meu amigo chegava

                   edoi lelia doura.

           

            O meu amigo venia

10               lelia doura

            e d'amor tam bem dizia

                   edoi lelia doura.

           

            O meu amigo chegava

                   lelia doura

15        e d'amor tam bem cantava

                   edoi lelia doura.

           

            Muito desejei, amigo,

                   lelia doura

            que vos tevesse comigo

20              edoi lelia doura.

           

            Muito desejei, amado,

                   lelia doura

            que vos tevess'a meu lado

                   edoi lelia doura.

           

25        Leli, leli, par Deus, leli4

                   lelia doura

            bem sei eu que[m] nom diz leli

                   edoi lelia doura.

           

            Bem sei eu que[m] nom diz leli

30              lelia doura

            demo x'é5 quem nom diz leli

                   edoi lelia doura.

Pedro Anes Solaz / Pedr’Eanes Solaz

(trovador ou jogral medieval)

 

AUTOR:

Trovador ativo em meados do século XIII, muito provavelmente natural da região de Pontevedra, Galiza, onde, em Meis, se situava o mosteiro de Nogueira, referido numa das suas composições1. No verdade, o seu apelido, ao contrário do que pensava D. Carolina Michaëlis (que o explicava como alcunha e supunha Pedro Anes jogral)2, deverá ter origem num topónimo atestado na Galiza, indicando a sua eventual pertença a uma família da pequena nobreza da região, estatuto social talvez mais conforme com a colocação das suas composições nos cancioneiros (numa zona de autores nobres). De resto, Ron Fernández3 localizou um indivíduo com o mesmo apelido, um João Solaz, na documentação de Lugo (atestado em 1304). À exceção destes dados indiretos, não possuímos, no entanto, qualquer outro dado que nos permita traçar a biografia mínima do trovador.

 

Referências

1 Oliveira, António Resende de (2001), O trovador galego-português e o seu mundo, Lisboa, Editorial Notícias, p. 200.

2 Vasconcelos, Carolina Michaëlis de (1990), Cancioneiro da Ajuda, vol. II, Lisboa, Imprensa nacional - Casa da Moeda (reimpressão da edição de Halle, 1904), p. 450.

3 Ron Fernández, Xavier (2005), “Carolina Michaelis e os trobadores representados no Cancioneiro da Ajuda”, in Carolina Michaelis e o Cancioneira da Ajuda hoxe, Santiago de Compostela, Xunta de Galicia.
     
 Aceder à página Web

 

Fonte: Lopes, Graça Videira; Ferreira, Manuel Pedro et al. (2011-), Cantigas Medievais Galego Portuguesas [base de dados online]. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, FCSH/NOVA. [Consulta em 2022-07-22] Disponível em: <https://cantigas.fcsh.unl.pt/autor.asp?pv=sim&cdaut=118>.

 

 

PRESENÇA DA CANTIGA NOS CANCIONEIROS: CBN 829, CV 415

 

Cancioneiro da Biblioteca Nacional – manuscrito B 829

Cancioneiro da Vaticana – manuscrito V 415


 

LÉXICO:

1. velida - bela, formosa.

 

2. Na interpretação recente de Rip Cohen e Federico Corriente ("Lelia Doura revisited", in La Corónica: a Journal of Medieval Hispanic Languages, Literatures and Cultures, 2002, vol. 31, n.º 1.), a expressão árabe significará "é a minha vez" ("a noite roda" ou "é longa" eram anteriores propostas de tradução).

Nota de Rip Cohen em 500 Cantigas d’Amigo: Edição Crítica / Critical Edition. Porto: Campo das Letras, 2003, p. 288: «vv. 2, 4, etc.: lelia doura pode ser lido como líya ddáwra “a mim a vez (= é a minha vez)” em árabe andaluz. líya, um alomorfe de li ‘a mim,’ ‘para mim’, é foneticamente /leia/, e lelia pode ser ou um erro por leiia ou, mais plausivelmente, uma transcrição de líya (cinco vezes em Martin Giinzo devemos pronunciar Cecilia como /sesia/ em rima, sendo todas as rimas perfeitas). Ed oi é romance ibérico arcaico < et hodie com vocalização do -t- intervocálico no interior da expressão. Assim ed oi / MUDANÇA DE CÓDIGO / líya ddáwra = “E hoje / MUDANÇA DE CÓDIGO / é a minha vez” – um verso bilingue, como ocorre em tantas kharajat

 

3. "e hoje", ainda segundo Cohen e Corriente, que entendem o termo não como árabe, mas como uma expressão em antiga língua romance, proveniente do Latim "et hodie" – já na anterior interpretação de Brian Dutton("Lelia doura, edoy lelia doura, na arabic refrain in a thirteenth-century galician poem?", in Bulletin of Hispanic Studies, 1964, XLI), tratar-se-ia de um termo árabe, cujo sentido seria "esmoreço".

 

4. Nota de Rip Cohen em 500 Cantigas d’Amigo: Edição Crítica / Critical Edition. Porto: Campo das Letras, 2003, p. 288: «vv. 25, 27, 29, 31: leli pode ser lido em árabe andaluz como layli, o substantivo layl ‘noite’ com sufixo pronominal da primeira pessoa (cf. Dutton 1964, mas o nome é colectivo, não o nomen unitatis, que seria laylati). ya layli é uma expressão comum que significa qualquer coisa como “que noite eu tive”. O primeiro elemento pode ser omitido por razões métricas ou para exprimir emoção intensa.»

 

5. Equivalente ao atual "diabos levem".

 

NOTA GERAL:

Durante muito tempo esta notável cantiga de amigo de Pedro Anes Solaz não encontrou uma explicação cabal, dada a estranheza do seu duplo refrão, que era entendido como puramente onomatopaico (ou seja, como um mero conjunto de sons exclamativos). A sugestão de Brian Dutton (19641) e Firmino Crespo (19672), de que se trataria, na verdade, de um refrão em língua árabe, significando "e a noite roda" ou "a noite é longa" (o que se enquadraria bastante bem na voz da donzela que não consegue dormir), veio trazer mais alguma luz à composição. Já mais recentemente, Rip Choen e Federico Corriente3 interpretaram de forma diferente os versos do refrão, propondo a tradução "é a minha vez" (v. 2), "e hoje é a minha vez" (v. 4) e ainda, quanto a leli (v. 25), a exclamação "A minha noite!".
Por explicar fica esta utilização da língua árabe no refrão, caso único em toda a poesia galego-portuguesa. Este facto, juntamente com as alterações algo bruscas no paralelismo (nas estrofes 5 e 6, e nas estrofes finais), alterações que parecem introduzir inesperados desvios de sentido na voz da donzela, continuam a dificultar uma interpretação cabal da cantiga. Lamento? Canto de júbilo? Original sátira indireta? (nesta última interpretação, o trovador poderia aludir aqui aos amores proibidos entre uma donzela e um muçulmano, talvez um músico, dentre os que sabemos terem estado ao serviço dos soberanos peninsulares). Seja como for, sublinhe-se o facto de estarmos perante uma cantiga de amigo que, sem nada perder do seu notável lirismo, é, na sua originalidade, de difícil classificação.

Referências

1 Dutton, Brian (1964), "Lelia doura, edoy lelia doura, na arabic refrain in a thirteenth-century galician poem?", in Bulletin of Hispanic Studies, XLI.

2 Crespo, Firmino (1967), "Lelia Doura ou o estranho refrão de uma cantiga trovadoresca", in Colóquio, 42, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian.
     
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3 Cohen, Rip e Corriente, Federico (2002), "Lelia Doura revisited", in La Corónica: a Journal of Medieval Hispanic Languages, Literatures and Cultures, vol. 31, nº 1.
     
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VERSÕES MUSICAIS:

 

Originais: Desconhecidas

 

Contrafactum:

Eu velida no dormia 

Versão de José Augusto Alegria

 

Composição/Recriação moderna:

Cantar d’amigo (Cantares: op. 28, nº 4-2)      

Versão de Cláudio Carneyro

 

Lelia Doura      

Versões de Amancio Prada

 

Eu belida non durmia       

Versão de X. Paz Antón, Uxía

 

Lelia doura      

Versão de José Mário Branco

  

Fonte: Lopes, Graça Videira; Ferreira, Manuel Pedro et al. (2011-), Cantigas Medievais Galego Portuguesas [base de dados online]. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, FCSH/NOVA. [Consulta em 2022-07-22] Disponível em: <https://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?ling=por&cdcant=838>.

 



 

   Poderá também gostar de:

 

Edição crítica da cantiga medieval “Eu velida nom dormia”, disponível em https://www.universocantigas.gal/cantigas/eu-velida-non-dormia, Coruña, Facultade de Filoloxía, © 2022

 

“Pedro Eanes Solaz”, verbete de http://xacopedia.com/Pedro_Eanes_Solaz. Copyright 2015 © Bolanda.

 

 

Poesia trovadoresca galego-portuguesasíntese didática

 

Sedução e drama nos cantares de amigo.

 

INTERTEXTUALIDADE:

 

  • O verso “edoi lelia doura” serve de título à Antologia das Vozes Comunicantes da Moderna Poesia Portuguesa organizada por Herberto Helder (Lisboa: Assírio & Alvim,1985).

 


CARREIRO, José. “Eu velida nom dormia, Pedro Anes Solaz (Pedr'Eanes Solaz)”. Portugal, Folha de Poesia, 22-07-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/07/eu-velida-nom-dormia-pedro-anes-solaz.html


quinta-feira, 21 de julho de 2022

O vagabundo do mar, Manuel da Fonseca

Ilustração de "O vagabundo do mar", por Sónia Oliveira (in Contos & Recontos 7, 2011)

 

O VAGABUNDO DO MAR

 

Sou barco de vela e remo

sou vagabundo1 do mar.

Não tenho escala2 marcada

nem hora para chegar:

é tudo conforme o vento,

tudo conforme a maré...

Muitas vezes acontece

largar o rumo tomado

da praia para onde ia...

Foi o vento que virou?

foi o mar que enraiveceu

e não há porto de abrigo?

ou foi a minha vontade

de vagabundo do mar?

Sei lá.

Fosse o que fosse

não tenho rota marcada

ando ao sabor da maré.

É por isso, meus amigos,

que a tempestade da Vida

me apanhou no alto mar.

E agora

queira ou não queira,

cara alegre e braço forte:

estou no meu posto a lutar!

Se for ao fundo acabou-se.

Estas coisas acontecem

aos vagabundos do mar.

 

Manuel da Fonseca, Rosa dos Ventos. Lisboa, ed. do autor, 1940

 



 

Vocabulário:

1. vagabundo: nómada, que está em permanente deslocação.

2. escala: porto de embarque e desembarque.

 

Texto de apoio:

O poema “O vagabundo do mar”, de Manuel da Fonseca, mostra o barco de vela e remo, no papel de protagonista, sem rumo delineado, navegando ao sabor das marés, sujeito aos ventos e aos perigos. Apanhado pela “tempestade” da vida, resiste estoicamente, sem abandonar o seu posto. Neste caso, a embarcação é sinónima de evasão, de fuga, de encontro de um destino superior, no entanto, o texto de Manuel da Fonseca mostra a luta e a resistência como fatores determinantes da vida de um “vagabundo do mar”, que não obedece às leis dos homens, prevalecendo as leis da natureza, (o vento, a maré) numa atitude de algum desprendimento e cumplicidade com um destinatário, visível na apóstrofe “Meus amigos”, de acento popular. Este chamamento acentua a relação de fraternidade numa jornada de luta e incerteza, manifestando uma possível ligação entre a estética neorrealista e a tónica numa escrita comprometida socialmente, a que não parece alheia a necessidade de resistir às adversidades. Este motivo volta a surgir noutros poemas do autor: “Amigo / tu que choras uma angústia qualquer / e falas de coisas mansas como o luar / e paradas / como as águas de um lago adormecido / acorda!”. (1984: 152) 

A poesia e alguns dos seus caminhos: uma perspetiva comparatista para a formação de leitores na aula de português língua materna, Maria Mestre. Lisboa: Universidade Aberta, 2015.



I - Para responder a cada item, seleciona a opção que melhor completa o sentido do poema "O vagabundo do mar", de Manuel da Fonseca.

1. A identificação do sujeito poético com um «barco de vela e remo» sugere a sua

(A) condição de marinheiro aventureiro.

(B) consciência das fragilidades da vida humana.

(C) caraterização como vagabundo, indivíduo ocioso.

 

2. O interlocutor do «eu» surge no poema identificado na expressão

(A) «o vento» (linha 10).

(B) «o mar» (linha 11).

(C) «meus amigos» (linha 19).

 

3. As interrogações presentes no poema realçam

(A) a necessidade de o sujeito poético interpelar alguém.

(B) as dúvidas de caráter existencialista do sujeito poético.

(C) os perigos da vida marítima.

 

4. O verso «estou no meu posto a lutar!» (linha 25) sugere um sujeito poético

(A) persistente.

(B) desistente.

(C) desiludido.

 

5. A figura de estilo que está na base da construção do poema é

(A) a comparação.

(B) a metáfora.

(C) a imagem.

 

6. No verso «É por isso, meus amigos» (linha 19), a expressão «meus amigos» exerce a função sintática de

(A) sujeito.

(B) complemento direto.

(C) vocativo.

 

Chave de correção: 1. (B) 2. (C) 3. (B) 4. (A) 5. (C) 6. (C)

Fonte: Olimpíadas da Língua Portuguesa. Ensino Secundário. 1.ª Fase. Portugal, Direção-Geral da Educação, 2013-05-09 <https://www.dge.mec.pt/olimpiadas-da-lingua-portuguesa>

 

 

II – Ainda sobre a leitura do poema "O vagabundo do mar", responde, agora, às perguntas que se seguem.

1. Transcreve do poema expressões que comprovem o abandono do sujeito poético às circunstâncias envolventes.

 

2. Caracteriza o sujeito poético tendo em conta a forma como encara a vida e as dificuldades que vão surgindo.

 

Fonte: lição n.º 61 de Português – 7.º e 8.º anos (Projeto #EstudoEmCasa), sobre "O sol é grande, caem co´a calmas as aves", de Sá de Miranda. "O vagabundo do mar", de Manuel da Fonseca, 2021-06-22.

 







 

Poderá também gostar de:

 


Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Manuel da Fonseca, por José Carreiro. In: Folha de Poesia, 2018-05-04, disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/manuel-da-fonseca.html

 



CARREIRO, José. “O vagabundo do mar, Manuel da Fonseca”. Portugal, Folha de Poesia, 21-07-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/07/o-vagabundo-do-mar-manuel-da-fonseca.html



quarta-feira, 20 de julho de 2022

Maria Campaniça, Manuel da Fonseca

Figura de ceifeira, Roque Gameiro

 

Maria Campaniça

 

Debaixo do lenço azul com sua barra amarela

os lindos olhos que tem!

Mas o rosto macerado

de andar na ceifa e na monda

desde manhã ao sol-posto,

mas o jeito

das mãos torcendo o xaile nos dedos

é de mágoa e abandono...

Ai Maria Campaniça,

levanta os olhos do chão

que eu quero ver nascer o sol!

 

Manuel da Fonseca, Aldeia Nova. Lisboa, Caminho, 1984

 

 



 

Questionário:

 

1. Nomeia o destinatário deste poema.

 

2. Destaca no poema as expressões que remetem para o sofrimento desse destinatário.

 

2.1. Refere a causa desse sofrimento.

 

3. Explicita o pedido que o sujeito poético endereça ao seu destinatário.

 

3.1. Caso o destinatário concretize esse pedido, explicita o que acontecerá e o que isso simboliza.

 

Fonte: lição n.º 53 de Português – 7.º e 8.º anos (Projeto #EstudoEmCasa), sobre "Descalça vai para a fonte", de Luís de Camões. "Maria Campaniça", de Manuel da Fonseca, 2021-05-25.

► Assistir à aula da Professora Tereza Cadete Sampainho, em https://www.rtp.pt/play/estudoemcasa/p7828/e546784/portugues-7-e-8-anos (inicia no minuto 20’ 37’’).

 





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► Nota biográfica sobre a alegada origem de Maria Campaniça:



Maria Campaniça, camponesa, campaniça, da aldeia de Salvada, militante do P.C.P desde que se lembrava, trazia pregado na roupa, todo o ano, o emblema do partido em que acreditava.

Aguardava reformas, concretizações.

Morreu nova quando ainda tinha coisas importantes em que pensar, maiores lutas para travar, galeras para subir, manifestações onde erguer o punho, as paredes da sua aldeia para caiar, 4 homens em casa para cuidar, modas alentejanas para cantar.

(Adaptação do texto do blogue Pelos olhos de Caterina, apud https://bxalentejo.blogspot.com/2005/08/maria-campania.html)


Cante alentejano "Maria Campaniça" in À Descoberta, Grupo  Seara Nova. Lisboa, Ovação - Comércio e Indústria de Som, Lda, 1998:




Campaniça e Aldeia Nova: um retrato da paisagem alentejana à luz do neo-realismo e da geografia cultural, Elieser Santos. Rio de Janeiro, UERJ, 2008.

 

Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Manuel da Fonseca, por José Carreiro. In: Folha de Poesia, 2018-05-04, disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/manuel-da-fonseca.html




CARREIRO, José. “Maria Campaniça, Manuel da Fonseca”. Portugal, Folha de Poesia, 20-07-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/07/maria-campanica-manuel-da-fonseca.html



sexta-feira, 8 de julho de 2022

Nunca encontrei um pássaro morto na floresta, José Gomes Ferreira

 

Pássaro, Aleksandar Makedonski


V

(Encontrei na Brasileira do Rossio o Manuel Mendes – a primeira pessoa a quem li estes versos.)

 

Nunca encontrei um pássaro morto na floresta.

 

Em vão andei toda a manhã

a procurar entre as árvores

um cadáver pequenino

que desse o sangue às flores

e as asas às folhas secas...

 

Os pássaros quando morrem

caem no céu.

 

José Gomes Ferreira, Poeta Militante I,

 

 

O autor de O Irreal Quotidiano mostrava-se deveras espantado por nunca ter descoberto um pássaro morto no meio da floresta. Certa vez, andara toda a manhã "a procurar entre as árvores/ um cadáver pequenino/ que desse o sangue às árvores/e asas às folhas secas...". Nada viu. E foi nessa mesma manhã que a metáfora (metáfora de uma morte limpa) vem em seu socorro, e dissipa o mistério o atormentava: "Os pássaros quando morrem/caem no céu".

A partir da espantosa descoberta, os pequeninos seres alados encontraram para sempre abrigo poético nas suas palavras. E o "poeta militante", tão feliz com o achado, entraria "no café com um rio na algibeira". Ele próprio conta o que de extraordinário a seguir se passou: "Depois, encostado à mesa, /tirei da boca um pássaro a cantar/ e enfeitei com ele a Natureza/ das árvores em torno/a cheirarem ao luar/ que eu imagino".

 

Francisco Mangas, https://www.dn.pt/gente/os-passaros-quando-morrem-nao-caem-no-ceu-1751726.html, 2011-01-08

 

 






 

1. Indica o que preocupa o sujeito poético.

2. Transcreve os versos que comprovam a sua crença na regeneração da vida.

 

Fonte: Projeto #ESTUDOEMCASA, aula 57 de Português – 9.º ano, sobre os poemas "O menino da sua mãe", de Fernando Pessoa; Nunca encontrei um pássaro morto", de José Gomes Ferreira, 2021-06-07. Disponível em https://www.rtp.pt/play/estudoemcasa/p7822/e549496/portugues-9-ano,  inicia ao minuto 19’50’’

 





CARREIRO, José. “Nunca encontrei um pássaro morto na floresta, José Gomes Ferreira”. Portugal, Folha de Poesia, 08-07-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/07/nunca-encontrei-um-passaro-morto-na.html


terça-feira, 5 de julho de 2022

Tinha deixado a torpe arte dos versos, Gastão Cruz




Tinha deixado a torpe arte dos versos

e de novo procuro esse exercício

de soluços

 

Devo agora rever a noite que te oculta

como pude esquecer que de tal modo

teria de exprimir

 

tudo o que já esquecera e sopra sobre

mim

como numa planície o crepúsculo

 

Tinha esquecido a arte dos tercetos

e toda a

outra

mas fechaste-te nela e eu descubro

no seu esse veneno esse discurso

 

Devo pois ver de novo como muda

como os sinais da voz a noite que perdura

tu deitas-te eu ensino à minha vida

esse extinto exercício

 

Gastão Cruz, Teoria da Fala. Coleção «Cadernos de Poesia» nº 24.
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1972

 

Síntese esquemática da leitura do poema “Tinha deixado a torpe arte dos versos”



Fonte: Projeto #ESTUDOEMCASA, aula 54 de Português – 9.º ano, sobre os poemas “Escrever”, de Irene Lisboa, e “Tinha deixado a torpe arte dos versos”, de Gastão Cruz, 2021-05-24. Disponível em https://www.rtp.pt/play/estudoemcasa/p7822/e546369/portugues-9-ano, inicia ao minuto 47’40’’

 

Questionário sobre a leitura do poema “Tinha deixado a torpe arte dos versos”

 

1. Distingue os dois momentos temporais referidos no poema.

2. Indica o que mudou de um momento para o outro.

3. Transcreve uma comparação presente no poema.

3.1. Explica a que se refere essa comparação.

 

Fonte: Projeto #ESTUDOEMCASA, aula 54 de Português – 9.º ano, sobre os poemas “Escrever”, de Irene Lisboa, e “Tinha deixado a torpe arte dos versos”, de Gastão Cruz, 2021-05-24. Disponível em https://www.rtp.pt/play/estudoemcasa/p7822/e546369/portugues-9-ano, inicia ao minuto 47’40’’

 

 

   Gastão Cruz  (Faro, 1941 - Lisboa, 2022)

 

O poeta e crítico literário Gastão Cruz, fotografado em 2015© Gerardo Santos / Global Imagens


 

Gastão Santana Franco da Cruz nasceu no dia 20 de Julho de 1941, no número 20 da Rua de Portugal, em Faro. Com perto de 20 anos publica o seu primeiro livro, A Morte Percutiva (Poesia 61). Após cerca de vinte livros de poesia, revisitaria a infância e a (já desaparecida) casa onde nasceu, numa obra a que deu precisamente o nome de Rua de Portugal (2002), e pela qual foi distinguido com o Grande Prémio de Poesia da APE.

A poesia acompanha-o desde muito novo. O pai recitava, em casa ouvia-se ópera, e o lirismo foi despontando, levando-o a iniciar-se muito cedo na crítica de poesia, em despiques por escrito com um amigo de infância. Pela mesma altura em que rumou a Lisboa para cursar Filologia Germânica (1958), na Faculdade de Letras – onde David Mourão- Ferreira foi seu professor –, começou a colaborar com poemas e artigos sobre poesia em diversos jornais e revistas, entre os quais os Cadernos do Meio-Dia, publicados em Faro, sob a direcção de António Ramos Rosa e Casimiro de Brito.

À data de saída das cinco plaquettes que constituíram a publicação colectiva Poesia 61 (que reuniu Gastão Cruz, Casimiro de Brito, Fiama Hasse Pais Brandão, Luiza Neto Jorge e Maria Teresa Horta), Gastão Cruz era o único do grupo inédito em livro. Poesia 61, uma das principais contribuições para a renovação da linguagem poética portuguesa na década de 60, foi já várias vezes descrita pelo próprio Gastão Cruz como, «em grande parte, uma reunião de conveniência editorial».

Ainda nos tempos de universidade, e após ter sido preso no auge das greves académicas de 62, o autor foi um dos organizadores da Antologia de Poesia Universitária (1964), dando a conhecer poemas de Manuel Alegre, Eduardo Prado Coelho, António Torrado, José Carlos Vasconcelos, Luísa Ducla Soares ou Boaventura Sousa Santos, entre outros. Este importante papel de Gastão Cruz na divulgação, promoção e crítica da poesia e da literatura em geral, bem como do teatro e da música, prolonga-se até hoje, quer colaborando com textos na imprensa (muitos deles reunidos no livro A Poesia Portuguesa Hoje) e na organização de antologias, quer na direcção de recitais, já desde os tempos da Faculdade. Actualmente, é um dos directores da Fundação Luís Miguel Nava e da revista Relâmpago, por ela editada.

Da amizade com Fiama, com quem foi casado, nasceu a paixão pelo teatro. Estiveram ambos na génese do Grupo Teatro Hoje, no início dos anos 70, e do qual ele foi director desde 1991 até à sua extinção, em 1994. Ali encenou peças de Crommelynck, Strindberg, Camus, Tchekov ou uma adaptação sua de Uma Abelha na Chuva (1977), de Carlos de Oliveira. Algumas delas foram, pela primeira vez, traduzidas para português pelo poeta.

O percurso literário de Gastão Cruz inclui a tradução de nomes como William Blake, Jean Cocteau, Jude Stéfan e Shakespeare. As Doze Canções de Blake que traduziu fazem, aliás, parte da sua bibliografia poética, porque «só vale a pena traduzir poesia, se da tradução resultar um poema português de um poeta português».

É professor do Ensino Secundário desde 1963 e, entre 1980 e 1986, exerceu as funções de Leitor de Português na Universidade de Londres (King's College), onde além de Língua Portuguesa, leccionou cadeiras de Poesia, Drama e Literatura Portuguesa.

«Chama-se Escassez um grupo de quinze poemas que publiquei em 1967. Poderia ser esse o título de toda a minha poesia, que é antiexplicativa, antidescritiva», explicou o autor em 1972, voltando frequentemente à questão que os críticos lhe lançam desde essa altura. «Penso que tenho caminhado no sentido de tornar a minha poesia mais legível, pela necessidade de me libertar da classificação de hermético ou difícil», disse mais recentemente.

Esta é uma poesia marcada por forte intensificação do valor da palavra e grande precisão formal, mas sempre num registo extremamente contido, nítido e rigoroso («a procura do peso certo para cada palavra»). Frequentemente, a reflexão sobre a poesia e a linguagem, que caracteriza os seus textos teóricos, é transportada para o interior do próprio poema. Gastão Cruz revela-se um grande conhecedor da tradição poética portuguesa, existindo nos seus poemas uma profunda intertextualidade, tanto relativa a poetas portugueses como estrangeiros, principalmente de língua inglesa.

As quatro recolhas de toda a sua poesia e a antologia que até à data organizou (1974, 1983, 1990/1992, 1999), acabam por corresponder ao encerrar de determinadas fases temáticas. A morte e o corpo – Manuel Gusmão fala de uma tensão permanente entre Eros e Thanatos – são duas das metáforas mais usadas pelo poeta, correspondendo a significados tão diferentes quanto a esperança, o desespero, o amor e o sexo, o caos, o próprio País, a opressão ou a fugacidade.

 

Centro de Documentação de Autores Portugueses, 06/2004. Biografia disponível em: http://livro.dglab.gov.pt/sites/DGLB/Portugues/autores/Paginas/PesquisaAutores1.aspx?AutorId=10151

 

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CARREIRO, José. “Tinha deixado a torpe arte dos versos, Gastão Cruz”. Portugal, Folha de Poesia, 05-07-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/07/tinha-deixado-torpe-arte-dos-versos.html