terça-feira, 4 de outubro de 2022

Ressurgiremos, Sophia Andresen

 




RESSURGIREMOS

 

Ressurgiremos ainda sob os muros de Cnossos

E em Delphos centro do mundo

Ressurgiremos ainda na dura luz de Creta

 

Ressurgiremos ali onde as palavras

São o nome das coisas

E onde são claros e vivos contornos

Na aguda luz de Creta

 

Ressurgiremos ali onde pedra estrela e tempo

São o reino do homem

Ressurgiremos para olhar para a terra de frente

Na luz limpa de Creta

 

Pois convém tornar claro o coração do homem

E erguer a negra exatidão da cruz

Na luz branca de Creta.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, Livro Sexto, 1962

 

Cnossos foi a capital de Creta antiga, séc. XXI, a. C., morada do rei Mino, que aí tinha o seu palácio. Delfos foi uma cidade da Grécia antiga no sopé do monte Parnaso, onde Apolo tinha um templo.

A Grécia clássica está simbolizada pela luz de Creta, «dura», «aguda», «limpa» e «branca», berço da civilização ocidental, «sob os muros de Cnossos», sua capital, impulsionada pelo halo apolíneo da pitonisa e dos seus oráculos, «Em Delfos centro do mundo».

A palavra-chave deste texto é Ressurgiremos –  um futuro que contém toda uma mensagem de esperança no reencontro com a pureza da civilização grega primitiva, herdeira da de Creta. 

O poema pode esquematizar-se assim:

«Ressurgiremos» conota a ideia de plural ou coletivo e de futuridade: na 1.a estrofe, como uma promessa ("ainda"); nas 2.ª e 3.a estrofes, com uma localização espacial ("ali"); ainda na 3.ª estrofe, a sugerir a ideia de finalidade "para".

«na dura luz de Creta» e «Na aguda luz de Creta», os adjetivos «dura» e «aguda», qualificativos de luz, estão antepostos, facto que lhes empresta uma conotação de violência; «na luz limpa de Creta» e «na luz branca de Creta» a adjetivação é posposta e, portanto, mais objetiva.

Estas quatro expressões funcionam como refrão com implicações temáticas: a caminhada gradativa para a pureza e superioridade da civilização cretense, porque «convém tornar claro o coração do homem». A gradação dos adjetivos permite-nos admitir que a autora contrapõe ao universo degradado que a cerca «a luz branca de Creta», onde há esperança (certeza?) de ressurgirmos. A evocação do passado transforma-se em projeto do futuro.

No aspeto morfossintático é de salientar o uso do futuro («Ressurgiremos») e do presente histórico do verbo ser («são» – três vezes) que não se excluem. Este último pode até ter uma conotação de permanência e intemporalidade que inspira muito mais confiança e dá muito mais garantias do que aquele. (cf. A Líricacadernos de literatura portuguesa 4.º curso, Ed. Sebenta, pp. 151-152)

A «luz» evidencia a verdade do mundo nomeado, fazendo coincidir as palavras e as coisas num tempo fora do tempo. É assim que o sujeito poético tem um projeto para os seus contemporâneos recuperar a sua grandeza pessoal e aliança com o mundo, reconstruindo o «reino do homem» num «tempo absoluto» futuro.

Portanto, o destino poético do homem é ser espelho do mundo.

Há todo um espetáculo exterior que ajuda ao desdobramento da interioridade; a profundidade da vida revela-se na inteireza do espetáculo do mundo, oferecido ao homem sem véus, sem sombras:

Na dura luz de Creta

Na aguda luz de Creta

Na luz limpa de Creta

Na luz branca de Creta

quando o homem já estiver depurado

Pois convém tornar claro o coração do homem

E erguer a negra exactidão da cruz

a cruz da ressurreição, símbolo de todos os negros atos humanos; só o branquear – «tornar claro» pela «luz branca» trará ao homem a salvação.

Na última estrofe, que é conclusiva, o presente do indicativo («convém») tem uma dimensão apelativa, de aviso de preparação para que «a luz branca de Creta» se imponha à negra exatidão da cruz. (cf. Sophia de Mello Breyner Andresen – da escrita ao texto, Estela Lamas, Ed. Caminho, 1998, p. 97)

A fé na ressurreição futura, misto de reencarnação ou metempsicose órfica e teologia cristã («erguer a negra exatidão da cruz»), permite superar a dicotomia entre o ser e o nomear, res e verba, que gera a frustração do nominalismo e da excessiva irrealização: «ali onde as palavras / São o nome das coisas». (Moniz: 1997, 112-113)



Livro Sexto (1962)



RESSURGIREMOS: O “IN-DITO” COMO PARTICIPAÇÃO NO REAL E RESISTÊNCIA POÉTICA

 

Publicado no Livro sexto em 1962, “Ressurgiremos” representa a plenitude do visível e introduz uma nítida vocação testemunhal, intersubjetiva e interventiva, surge à voz indignada contra a separação que fragmenta a unidade do sentido das coisas e do tempo humano.

Andresen constrói o poema a partir das imagens da Grécia antiga, Cnossos, Delphos e Creta, evidenciando sua ligação com os gregos e o ideal de justiça. Para ela:

O poeta é levado a buscar a justiça pela própria natureza da sua poesia. E a busca da justiça é desde sempre uma coordenada fundamental de toda a obra poética. No teatro grego o tema da justiça é a própria respiração das palavras (ANDRESEN, 2018, p. 987).

O uso do tempo verbal no futuro mostra o desejo de recomeço e de revolução, o plural “nós” tem o sentido de ressurgir coletivamente nesse novo tempo, sendo assim, como a poeta diz: “A busca de recomeço é um ato de confiança. A palavra «revolução», por exemplo, tem o prefixo re, que significa outra vez” (ANDRESEN, 1989, p. 54).

O prefixo re anuncia uma religação, sugerida pela luminosidade solar como símbolo da reunificação do homem com as coisas. A repetição de termos em sua obra como renascer, ressurgir, religação, reencontro, rebrilhar conduzem a um desejo obstinado da poeta para instaurar a aliança entre o ser e o mundo (PAGOTO, 2018, p. 163).

A “dura luz de Creta”, “aguda luz de Creta”, “luz limpa de Creta” e “luz branca de Creta” revelam a essência do real, com toda luminosidade presente entre a palavra e as coisas, apresenta a busca de Andresen pelo indizível e pela inteireza das coisas. Essa busca é através da consciência, da atenção, da sensibilidade que a poeta possui para dizer o que é indizível. Para ela o “in-dito” é o que perdemos quando não estamos presentes e atentos e não encontramos o sentido da existência humana.

Andresen se referia a Grécia como:

Um ponto de partida a que justamente é preciso regressar porque então o homem tentou partir da imanência, partir do seu estar na terra: estou na terra, sou mortal, mas vou viver a minha mortalidade com o máximo de verdade, o máximo de transparência (ANDRESEN, 1989, p. 4).

A adjetivação para a luz, “dura”, “aguda”, “limpa” e “branca” apresenta uma espécie de caminho em que o sujeito inicia com um encontro violento com a luz que é dura e aguda, como se causasse um distanciamento, até o verso “Ressurgiremos para olhar de frente” (ANDRESEN, 2018, p. 451) em que o sujeito enfrenta a luz com suavidade, ela então é limpa e branca.

“Ressurgiremos”, citado cinco vezes no poema, é uma repetição que Zenith(2018) justifica como:

Uma referência à ressurreição cristã, mas uma ressurreição que terá lugar não em Jerusalém ou em Roma, mas sim nas vizinhanças de Cnossos, ou então em Delphos, tido pelos gregos como o omphalos (umbigo ou centro do mundo). Sendo assim, o poema promove o sincretismo entre teologia cristã e o paganismo. Creta reveste-se de lugar central, tal como em um ritual religioso, de onde se instala a integridade primordial. Creta, Cnossos são símbolos recordados que instauram uma positividade (ZENITH apud PAGOTO, 2018, p. 164).

Andresen mostrava uma consciência intensa de que o caos é imanente ao próprio trabalho poético e a própria forma artística, quando se refere aquilo que chama de uma relação justa com o real, diz que é muito difícil separar ética e poética, ambas são a busca de uma relação justa com o real e o real é aquilo que emerge e se manifesta (ANDRESEN, 1982, p.2)

Tornar o real visível a partir do fazer poético que é uma forma de comunicação rica, densa e eficaz. Andresen crê no poder divino e encantador da palavra, nomeia para tornar as coisas visíveis. No poema, a palavra “reino” faz referência a um lugar que seria místico e que revela a correspondência entre a palavra e as coisas. Aparece associada à Delphos, lugar sagrado e pleno onde é possível que homem e natureza vivam em harmonia.

A representação do poema corresponde a ser um com o universo. Andresen procura, sobretudo o que traz felicidade, o que cria uma liberação íntima. E a partir dessa busca cria a relação entre o homem e a coisa que ele diz, e revela ao leitor o “in-dito” através da palavra poética.

A poesia era para Andresen um projeto de vida, uma busca, uma tentativa de encontrar uma relação verdadeira, de inteira verdade e transparência com a vida: a salvação. A palavra é o fundamento de toda a vida intelectual do homem, a poesia a verdadeira aprendizagem da palavra.

Ela explica a busca pelo visível e pelo dizível no poema em prosa “Landgrave ou Maria Helena Vieira da Silva”, publicado no livro Ilhas em 1988, que faz menção a tela Landgrave de 1966, da pintora, e considera o quadro um lugar, palavra repetida quatro vezes e que pode ser lido como metáfora do indizível:

Lugar de convocação como um poema muito antigo.

Lugar de aparição.(...)

Um rebrilhar de teatro (...)

É um lugar onde tudo está atento, denso de memória e de veemência. Lugar de revelação, de espanto e cismar e descobrimento.

(ANDRESEN, 2018, p. 817).

Neste poema, Andresen enfatiza o fato de que o mundo visado pela arte não pode ser encarado sob o modo da objetividade e da identidade, pois do visível emerge o invisível, que causa espanto aos olhos do sujeito e desvela a obscuridade do Ser, oculta sob a aparência (BARBOSA, 2019, p. 4).

Quando a poeta diz o indizível, aspira a um desejo de transformação existencial, de encontro com o plano do sagrado e do inefável, deseja transcender os limites do tempo e do espaço, ela faz por meio de mitos, símbolos e imagens a revelação de um mistério (PAGOTO, 2018, p. 57). Em “Ressurgiremos”, Andresen apresenta a possibilidade de restabelecer essa aliança com o sagrado, se coloca em posição de escuta diante do silêncio a fim de tentar ressurgir “ali onde as palavras são o nome das coisas” (ANDRESEN, 2018, p.451).

 

Roberta Lehmann, “Ressurgiremos: o in-dito como participação no real e resistência poética”, Anais Simpósio de Pesquisa e Seminário de Iniciação Científica, v. 1, n. 5. FAE - Centro Universitário, 2020, <https://sppaic.fae.edu/sppaic/article/view/137>

 

 

Poderá também gostar de:


 


Ressurgiremos, Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-04. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/ressurgiremos-sophia-andresen.html



segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Porque os outros se mascaram mas tu não, Sophia Andresen

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PORQUE

 

Porque os outros se mascaram mas tu não

Porque os outros usam a virtude

Para comprar o que não tem perdão.

Porque os outros têm medo mas tu não.

 

Porque os outros são os túmulos caiados

Onde germina calada a podridão.

Porque os outros se calam mas tu não.

 

Porque os outros se compram e se vendem

E os seus gestos dão sempre dividendo.

Porque os outros são hábeis mas tu não.

 

Porque os outros vão à sombra dos abrigos

E tu vais de mãos dadas com os perigos.

Porque os outros calculam mas tu não.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, Mar Novo, 1958

 


 

I - Questionário sobre a leitura do poema “Porque”, de Sophia de Mello Breyner Andresen

1. Justifica o título do poema.

2. Comprova que este poema cumpre dois objetivos: criticar e enaltecer.

3. Transcreve três versos onde se encontre a metáfora.

4. Faz a análise formal do poema.

 

Fonte: aula n.º 60 de Português – 9.º ano (Projeto #EstudoEmCasa), sobre "Porque", de Sophia de Mello Breyner Andresen, e "Ode soneto à coragem", de Gastão Cruz, 2021-06-21.

 Assistir à aula da Professora Tereza Cadete Sampainho, em https://www.rtp.pt/play/estudoemcasa/p7822/e552581/portugues-9-ano



II – Proposta de escrita 

Depois da leitura do poema "Porque" de Sophia de Mello Breyner Andresen e tomando-o por base de reflexão, redige um texto sobre a capacidade de intervenção da literatura - e da arte em geral - na vida social e política.

Tal como a autora do poema, és livre de te expressares na primeira pessoa e podes utilizar experiências pessoais para argumentar. Podes também servir-te de dados biográficos conhecidos e do domínio público sobre a escritora que possam ser utilizados como argumento de algumas opiniões que procures defender no teu texto pessoal.

 

(Adaptado de Prova de Cultura Geral, IPL, 2020 <https://www.ipleiria.pt/academicos/wp-content/uploads/sites/51/2021/02/Enunciado-da-prova-Cultura-Geral_2020.pdf>)





Entrevista a Sophia de Mello Breyner Andresen 

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Maria Armanda Passos - A Sophia é dos raros poetas portugueses com experiência de militância ativa, de banhos de multidão, de comícios. Hoje a sua participação na vida política é praticamente nula. Como vive o facto de estar retirada?

Sophia de Mello Breyner Andresen - Devo dizer que, logo a seguir ao 25 de Abril e mesmo antes, eu falei muito do lugar do poeta na cidade do homem e pensei que tinha uma certa obrigação de participação. Hoje em dia o meu desejo profundo é um desejo de marginalização para poder fazer o que posso fazer. Aliás, quando estava na Assembleia Constituinte tive uma experiência importante. Saí um dia mais cedo e atravessei o Bairro Alto a pé. Na rua havia um pequeno grupo de crianças a brincar na soleira de uma porta. E chamaram-me e perguntaram se eu era a Sophia de Mello Breyner Andresen. Eu disse que sim, mas como é que elas sabiam? Elas responderam que a professora estava a ler uma história minha na aula e tinham visto um retrato meu. Fiquei a conversar com as crianças — e pensei, de repente, que escrever era a minha verdadeira participação política.

“Sophia de Mello Breyner Andresen: Escrevemos poesia para não nos afogarmos no cais…”, entrevista de Maria Armanda Passos. Jornal de Letras, 1982-02-16. Reprodução disponível em: https://purl.pt/19841/1/galeria/entrevistas/f1/pag3.html

 

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Sophia de Mello Breyner Andresen e Francisco Sousa Tavares são recordados pelos filhos:

Maria Andresen Sousa Tavares«Há dois poemas explicitamente dirigidos ao meu pai, que lembram este lado da sua relação. O primeiro destes poemas, sobejamente conhecido, musicado e cantado por Francisco Fanhais, é «Porque os outros se mascaram mas tu não…», foi publicado em Mar Novo e encontra-se, como dedicatória manuscrita, dirigida ao meu pai, na folha de rosto de Contos Exemplares (1962); do segundo, «Porque nos outros há sempre qualquer nojo», há um manuscrito em folha solta, com a dedicatória referida e, por vontade da autora, acrescentada na 3.ª edição de Mar Novo (2003).»

dezembro 2014

In: OBRA POÉTICA, Sophia de Mello Breyner Andresem (edição de Carlos Mendes de Sousa). Lisboa, Assírio & Alvim, 2015 (Prefácio de Maria Andresen Sousa Tavares).


*** 


Miguel Sousa Tavares: «[…] ser comprometida com a situação do país […] é uma coisa que, para ser completamente justo, não nasce com ela mas é-lhe transmitida pelo meu pai [Francisco Sousa Tavares]. O meu pai é que ensinou a minha mãe a ser resistente contra o fascismo, porque a educação dela, bem como o meio de onde vinha, não a tinha predisposto para tal, embora, provavelmente, lá chegasse porque tinha um sentido de justiça e de liberdade que lhe era inato. Mas, de facto, quem a formatou politicamente foi o meu pai.»

«Ele era mais interveniente, estamos a falar de antes do 25 de Abril, enquanto ela tinha um papel de mulher do combatente. Era a retaguarda. Mas foi um tempo muito intenso para ela, principalmente quando o meu pai era preso. Foram tempos muito difíceis para ela esses da militância política do meu pai e, olhando retroativamente, penso que a minha mãe podia ter tido uma vida muito mais feliz e não a teve por razões pessoais, familiares, políticas, materiais - nunca teve uma vida despida de angústias. Nunca, e essa é uma das coisas que lhe admiro, porque, apesar disso, nos intervalos, ela agarrava todos os instantes de felicidade com uma força juvenil e incrível. Não desperdiçava um minuto em que pudesse ser feliz, uma hora da vida dela. No entanto, muitas vezes pensei, e hoje ainda, que ela merecia ter tido uma vida mais despreocupada e feliz, com menos problemas que a angustiassem.»

«Nós tínhamos visita à segunda-feira em Caxias e só podia ir a minha mãe acompanhada de um único filho. A conversa passava-se através de um vidro que nos separava - uma cena tremenda - e, como se não fosse suficiente, ainda havia um pide sentado numa cadeira ao nosso lado a ouvir a conversa. Era apenas meia hora por semana. Além disso, eles correspondiam-se em código, que a PIDE nunca conseguiu decifrar e que só eu é que sabia a chave - ela pedia-me ajuda para escrever e para decifrar as cartas. O meu pai tinha uma semana inteira para escrever - não o deixavam ler livros - e escrevia imensas cartas usando esse código, que era diabólico de se usar. Prometi à minha mãe que nunca revelaria o código que eles inventaram, um ovo de Colombo que lhes permitia corresponderem-se com franqueza. Eu era o único dos irmãos que estava dentro do segredo e fazia daquilo uma coisa muito secreta, sendo certo que a minha mãe quando lia as cartas do meu pai, ou escrevia as suas, fechava-se comigo e fazíamos os dois o enigma.»

«Havia uma coisa no meu pai que atraía muito a minha mãe, e a mim também: a coragem. Ele foi a pessoa mais corajosa que conheci até hoje em todos os aspetos, a ponto de às vezes me perguntar se aquilo era coragem ou destemor. Para ser corajoso é preciso ter noção do perigo e ele, por vezes, parecia não ter a noção do perigo. Ela até escreveu sobre ele "Os outros vão à sombra dos abrigos e tu caminhas de mão dada com os perigos". Realmente, ele andava literalmente de mão dada com os perigos, física, intelectual e politicamente.»

«Uma das pessoas mais próximas da minha mãe era a mãe dela […]. Primeiro, fazia-lhe muita confusão que tivesse um genro que volta e meia era preso e que não conseguisse arranjar trabalho porque se lhe fechavam as portas todas. Depois, quando ela vinha a Lisboa passar temporadas em casa da minha mãe, fazia-lhe também muita confusão a quantidade de segredos que os meus pais trocavam entre si. Lembro-me de uma vez em que se fecharam na casa de banho para dizer segredos e ela queria servir o jantar. Foi-lhes bater à porta e disse: "Importam-se de acabar de salvar a pátria, que a sopa está a ficar fria?"»

 

Ler mais: “Miguel Sousa Tavares: Não há um único dia em que não me lembre da minha mãe”, entrevista de João Céu e Silva. Diário de Notícias, 2019-10-26

 


https://purl.pt/19841/1/1950/galeria/f9/foto1.html

MAR NOVO, 1.ª ed., 1958, Lisboa, Guimarães Editores • 2.ª ed., 1985, in No Tempo Dividido e Mar Novo, Lisboa, Edições Salamandra, ilustrações de Arpad Szenes • 3.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho • 4.ª ed., revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho • 1.ª edição na Assírio & Alvim (5.ª ed.), Lisboa, 2013, prefácio de Fernando J.B. Martinho.

 

         Texto de apoio

Todos quantos se cruzaram com Sophia, são unânimes em reconhecer que a capacidade criadora e a sensibilidade artística excecionais se aliaram sempre a uma inteligência política arguta. Os seus discursos políticos mostram-no. Os seus combates recusavam a ambiguidade. “No Centro Nacional de Cultura fiz de tudo” – confessa-nos. Então “discutia-se tudo: os sistemas políticos, os problemas sociais, os problemas religiosos, o Corbusier, a pintura moderna, o surrealismo, o Fernando Pessoa, a literatura portuguesa, a literatura brasileira, a literatura americana, a guerra de África. À discussão cada um trazia o que sabia e também o que era. Às vezes a polícia política (PIDE) aparecia: um dia fez uma busca à procura de uns papéis que não encontrou porque o Francisco os tinha escondido no frigorífico”. E, afinal, nada era fácil, uma vez que não passava despercebido que “em certas sessões surgiam homens cinzentos e calados, com a gabardina abotoada até ao queixo e um ar simultaneamente taciturno e comprometido: ‘poker faced’” (CNC, 1995, p. 63). E lembramo-nos de Mar Novo de 1958: “Porque os outros se mascaram mas tu não/ Porque os outros usam a virtude para comprar o que não tem perdão / Porque os outros têm medo mas tu não”. (ANDRESEN, 2003a, p. 43)

Em 1957 Sophia participa na campanha de Humberto Delgado; a partir dessa data, até 1974, colabora ativamente com a oposição ao Estado Novo, tendo integrado o grupo de pessoas que fundaram a Associação Nacional de Socorro aos Presos Políticos. Um ano volvido, em 1958, Mar Novo foi um grito de revolta contra a decisão do poder de não respeitar o resultado do concurso realizado em 1956, não se construindo “o monumento que devia ser construído em Sagres” (ANDRESEN, 2003a, p. 48), concebido pelo arquiteto João Andresen (irmão de Sophia), com esculturas de Barata Feyo e painéis pintados por Júlio Resende. E foi a propósito destes painéis que disse: “Do Lusíada que parte para o universo puro / Sem nenhum peso morto sem nenhum obscuro / Prenúncio de traição sob os seus passos”. (ANDRESEN, 2003a, p. 48)

“Povo português, vivemos um momento histórico como talvez desde 1640 não se vive: é a libertação da pátria”- este foi o primeiro discurso de um civil no dia 25 de Abril de 1974, dito no Largo do Carmo, após os momentos dramáticos de incerteza aí vividos. Quem o proferiu foi Francisco Sousa Tavares, homem livre, apaixonado pelas causas justas, de quem Sophia de Mello Breyner Andresen disse: “Porque os outros se mascaram mas tu não / Porque os outros usam a virtude / Para comprar o que não tem perdão. Porque os outros têm medo mas tu não. / Porque os outros são os túmulos caiados / Onde germina calada a podridão. / Porque os outros se calam mas tu não” (ANDRESEN, 2003a, p. 43). Sophia e Francisco foram as grandes referências do Centro Nacional de Cultura, como lugar de liberdade, aberto às diferenças, insuscetíveis de ser fieis a outra causa que não a da procura da dignidade e da justiça. O seu exemplo tem de ser lembrado quando falamos da reconquista da liberdade. E não é por acaso que, se Francisco Sousa Tavares foi o primeiro civil a dirigir-se ao povo, numa revolução militar que devolveu as instituições aos cidadãos, Sophia proclamou “A Poesia está na rua!”, com Maria Helena Vieira da Silva a corresponder com um magnífico cartaz, que ainda hoje é um dos símbolos desse momento fundador. Sophia será, para sempre, quem primeiro cantou o momento libertador, com a palavra certa, depois de, na circunstância oportuna, ter reclamado o “país liberto, a vida limpa e o tempo justo”: “Esta é a madrugada que eu esperava / O dia inicial, inteiro e limpo / Onde emergimos da noite e do silêncio / E livres habitamos a substância do tempo” (ANDRESEN, 2004a, p. 28). Não é possível recordar a efeméride sem lembrar essas palavras, esses exemplos, essa afirmação da perenidade das grandes causas. E Sophia disse-o na Assembleia Constituinte, no Verão quente, por entre tantas paixões. Relendo essas suas palavras, percebemos que, mesmo na vertigem dos acontecimentos, é possível afirmar os valores permanentes em caracteres indeléveis. Hoje, essa lembrança é fundamental, num tempo em que não podemos esquecer que a liberdade só se defende e se salvaguarda se a força da verdade e da justiça não for esquecida.

Miguel Santos Vieira, “O nome deste mundo dito por ele próprio: A palavra de Sophia na encruzilhada do modernismo português”. Hist. R., Goiânia, v. 21, n. 2, p. 80–102, maio/ago. 2016. DOI: https://doi.org/10.5216/hr.v21i2.43383

 


 

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Manifestação dos Professores, Lisboa, 11-02-2023


 


Porque os outros se mascaram mas tu não, Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-03. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/porque-os-outros-se-mascaram-mas-tu-nao.html