terça-feira, 4 de outubro de 2022

Ressurgiremos, Sophia Andresen

 




RESSURGIREMOS

 

Ressurgiremos ainda sob os muros de Cnossos

E em Delphos centro do mundo

Ressurgiremos ainda na dura luz de Creta

 

Ressurgiremos ali onde as palavras

São o nome das coisas

E onde são claros e vivos contornos

Na aguda luz de Creta

 

Ressurgiremos ali onde pedra estrela e tempo

São o reino do homem

Ressurgiremos para olhar para a terra de frente

Na luz limpa de Creta

 

Pois convém tornar claro o coração do homem

E erguer a negra exatidão da cruz

Na luz branca de Creta.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, Livro Sexto, 1962

 

Cnossos foi a capital de Creta antiga, séc. XXI, a. C., morada do rei Mino, que aí tinha o seu palácio. Delfos foi uma cidade da Grécia antiga no sopé do monte Parnaso, onde Apolo tinha um templo.

A Grécia clássica está simbolizada pela luz de Creta, «dura», «aguda», «limpa» e «branca», berço da civilização ocidental, «sob os muros de Cnossos», sua capital, impulsionada pelo halo apolíneo da pitonisa e dos seus oráculos, «Em Delfos centro do mundo».

A palavra-chave deste texto é Ressurgiremos –  um futuro que contém toda uma mensagem de esperança no reencontro com a pureza da civilização grega primitiva, herdeira da de Creta. 

O poema pode esquematizar-se assim:

«Ressurgiremos» conota a ideia de plural ou coletivo e de futuridade: na 1.a estrofe, como uma promessa ("ainda"); nas 2.ª e 3.a estrofes, com uma localização espacial ("ali"); ainda na 3.ª estrofe, a sugerir a ideia de finalidade "para".

«na dura luz de Creta» e «Na aguda luz de Creta», os adjetivos «dura» e «aguda», qualificativos de luz, estão antepostos, facto que lhes empresta uma conotação de violência; «na luz limpa de Creta» e «na luz branca de Creta» a adjetivação é posposta e, portanto, mais objetiva.

Estas quatro expressões funcionam como refrão com implicações temáticas: a caminhada gradativa para a pureza e superioridade da civilização cretense, porque «convém tornar claro o coração do homem». A gradação dos adjetivos permite-nos admitir que a autora contrapõe ao universo degradado que a cerca «a luz branca de Creta», onde há esperança (certeza?) de ressurgirmos. A evocação do passado transforma-se em projeto do futuro.

No aspeto morfossintático é de salientar o uso do futuro («Ressurgiremos») e do presente histórico do verbo ser («são» – três vezes) que não se excluem. Este último pode até ter uma conotação de permanência e intemporalidade que inspira muito mais confiança e dá muito mais garantias do que aquele. (cf. A Líricacadernos de literatura portuguesa 4.º curso, Ed. Sebenta, pp. 151-152)

A «luz» evidencia a verdade do mundo nomeado, fazendo coincidir as palavras e as coisas num tempo fora do tempo. É assim que o sujeito poético tem um projeto para os seus contemporâneos recuperar a sua grandeza pessoal e aliança com o mundo, reconstruindo o «reino do homem» num «tempo absoluto» futuro.

Portanto, o destino poético do homem é ser espelho do mundo.

Há todo um espetáculo exterior que ajuda ao desdobramento da interioridade; a profundidade da vida revela-se na inteireza do espetáculo do mundo, oferecido ao homem sem véus, sem sombras:

Na dura luz de Creta

Na aguda luz de Creta

Na luz limpa de Creta

Na luz branca de Creta

quando o homem já estiver depurado

Pois convém tornar claro o coração do homem

E erguer a negra exactidão da cruz

a cruz da ressurreição, símbolo de todos os negros atos humanos; só o branquear – «tornar claro» pela «luz branca» trará ao homem a salvação.

Na última estrofe, que é conclusiva, o presente do indicativo («convém») tem uma dimensão apelativa, de aviso de preparação para que «a luz branca de Creta» se imponha à negra exatidão da cruz. (cf. Sophia de Mello Breyner Andresen – da escrita ao texto, Estela Lamas, Ed. Caminho, 1998, p. 97)

A fé na ressurreição futura, misto de reencarnação ou metempsicose órfica e teologia cristã («erguer a negra exatidão da cruz»), permite superar a dicotomia entre o ser e o nomear, res e verba, que gera a frustração do nominalismo e da excessiva irrealização: «ali onde as palavras / São o nome das coisas». (Moniz: 1997, 112-113)



Livro Sexto (1962)



RESSURGIREMOS: O “IN-DITO” COMO PARTICIPAÇÃO NO REAL E RESISTÊNCIA POÉTICA

 

Publicado no Livro sexto em 1962, “Ressurgiremos” representa a plenitude do visível e introduz uma nítida vocação testemunhal, intersubjetiva e interventiva, surge à voz indignada contra a separação que fragmenta a unidade do sentido das coisas e do tempo humano.

Andresen constrói o poema a partir das imagens da Grécia antiga, Cnossos, Delphos e Creta, evidenciando sua ligação com os gregos e o ideal de justiça. Para ela:

O poeta é levado a buscar a justiça pela própria natureza da sua poesia. E a busca da justiça é desde sempre uma coordenada fundamental de toda a obra poética. No teatro grego o tema da justiça é a própria respiração das palavras (ANDRESEN, 2018, p. 987).

O uso do tempo verbal no futuro mostra o desejo de recomeço e de revolução, o plural “nós” tem o sentido de ressurgir coletivamente nesse novo tempo, sendo assim, como a poeta diz: “A busca de recomeço é um ato de confiança. A palavra «revolução», por exemplo, tem o prefixo re, que significa outra vez” (ANDRESEN, 1989, p. 54).

O prefixo re anuncia uma religação, sugerida pela luminosidade solar como símbolo da reunificação do homem com as coisas. A repetição de termos em sua obra como renascer, ressurgir, religação, reencontro, rebrilhar conduzem a um desejo obstinado da poeta para instaurar a aliança entre o ser e o mundo (PAGOTO, 2018, p. 163).

A “dura luz de Creta”, “aguda luz de Creta”, “luz limpa de Creta” e “luz branca de Creta” revelam a essência do real, com toda luminosidade presente entre a palavra e as coisas, apresenta a busca de Andresen pelo indizível e pela inteireza das coisas. Essa busca é através da consciência, da atenção, da sensibilidade que a poeta possui para dizer o que é indizível. Para ela o “in-dito” é o que perdemos quando não estamos presentes e atentos e não encontramos o sentido da existência humana.

Andresen se referia a Grécia como:

Um ponto de partida a que justamente é preciso regressar porque então o homem tentou partir da imanência, partir do seu estar na terra: estou na terra, sou mortal, mas vou viver a minha mortalidade com o máximo de verdade, o máximo de transparência (ANDRESEN, 1989, p. 4).

A adjetivação para a luz, “dura”, “aguda”, “limpa” e “branca” apresenta uma espécie de caminho em que o sujeito inicia com um encontro violento com a luz que é dura e aguda, como se causasse um distanciamento, até o verso “Ressurgiremos para olhar de frente” (ANDRESEN, 2018, p. 451) em que o sujeito enfrenta a luz com suavidade, ela então é limpa e branca.

“Ressurgiremos”, citado cinco vezes no poema, é uma repetição que Zenith(2018) justifica como:

Uma referência à ressurreição cristã, mas uma ressurreição que terá lugar não em Jerusalém ou em Roma, mas sim nas vizinhanças de Cnossos, ou então em Delphos, tido pelos gregos como o omphalos (umbigo ou centro do mundo). Sendo assim, o poema promove o sincretismo entre teologia cristã e o paganismo. Creta reveste-se de lugar central, tal como em um ritual religioso, de onde se instala a integridade primordial. Creta, Cnossos são símbolos recordados que instauram uma positividade (ZENITH apud PAGOTO, 2018, p. 164).

Andresen mostrava uma consciência intensa de que o caos é imanente ao próprio trabalho poético e a própria forma artística, quando se refere aquilo que chama de uma relação justa com o real, diz que é muito difícil separar ética e poética, ambas são a busca de uma relação justa com o real e o real é aquilo que emerge e se manifesta (ANDRESEN, 1982, p.2)

Tornar o real visível a partir do fazer poético que é uma forma de comunicação rica, densa e eficaz. Andresen crê no poder divino e encantador da palavra, nomeia para tornar as coisas visíveis. No poema, a palavra “reino” faz referência a um lugar que seria místico e que revela a correspondência entre a palavra e as coisas. Aparece associada à Delphos, lugar sagrado e pleno onde é possível que homem e natureza vivam em harmonia.

A representação do poema corresponde a ser um com o universo. Andresen procura, sobretudo o que traz felicidade, o que cria uma liberação íntima. E a partir dessa busca cria a relação entre o homem e a coisa que ele diz, e revela ao leitor o “in-dito” através da palavra poética.

A poesia era para Andresen um projeto de vida, uma busca, uma tentativa de encontrar uma relação verdadeira, de inteira verdade e transparência com a vida: a salvação. A palavra é o fundamento de toda a vida intelectual do homem, a poesia a verdadeira aprendizagem da palavra.

Ela explica a busca pelo visível e pelo dizível no poema em prosa “Landgrave ou Maria Helena Vieira da Silva”, publicado no livro Ilhas em 1988, que faz menção a tela Landgrave de 1966, da pintora, e considera o quadro um lugar, palavra repetida quatro vezes e que pode ser lido como metáfora do indizível:

Lugar de convocação como um poema muito antigo.

Lugar de aparição.(...)

Um rebrilhar de teatro (...)

É um lugar onde tudo está atento, denso de memória e de veemência. Lugar de revelação, de espanto e cismar e descobrimento.

(ANDRESEN, 2018, p. 817).

Neste poema, Andresen enfatiza o fato de que o mundo visado pela arte não pode ser encarado sob o modo da objetividade e da identidade, pois do visível emerge o invisível, que causa espanto aos olhos do sujeito e desvela a obscuridade do Ser, oculta sob a aparência (BARBOSA, 2019, p. 4).

Quando a poeta diz o indizível, aspira a um desejo de transformação existencial, de encontro com o plano do sagrado e do inefável, deseja transcender os limites do tempo e do espaço, ela faz por meio de mitos, símbolos e imagens a revelação de um mistério (PAGOTO, 2018, p. 57). Em “Ressurgiremos”, Andresen apresenta a possibilidade de restabelecer essa aliança com o sagrado, se coloca em posição de escuta diante do silêncio a fim de tentar ressurgir “ali onde as palavras são o nome das coisas” (ANDRESEN, 2018, p.451).

 

Roberta Lehmann, “Ressurgiremos: o in-dito como participação no real e resistência poética”, Anais Simpósio de Pesquisa e Seminário de Iniciação Científica, v. 1, n. 5. FAE - Centro Universitário, 2020, <https://sppaic.fae.edu/sppaic/article/view/137>

 

 

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Ressurgiremos, Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-04. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/ressurgiremos-sophia-andresen.html



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