RESSURGIREMOS
Ressurgiremos
ainda sob os muros de Cnossos
E em Delphos
centro do mundo
Ressurgiremos
ainda na dura luz de Creta
Ressurgiremos
ali onde as palavras
São o nome das
coisas
E onde são
claros e vivos contornos
Na aguda luz de
Creta
Ressurgiremos
ali onde pedra estrela e tempo
São o reino do
homem
Ressurgiremos
para olhar para a terra de frente
Na luz limpa de
Creta
Pois convém
tornar claro o coração do homem
E erguer a
negra exatidão da cruz
Na luz branca
de Creta.
Sophia de Mello Breyner
Andresen, Livro Sexto, 1962
Cnossos
foi a capital de Creta antiga, séc. XXI, a. C., morada do rei Mino, que aí
tinha o seu palácio. Delfos foi uma cidade da Grécia antiga no sopé do monte
Parnaso, onde Apolo tinha um templo.
A
Grécia clássica está simbolizada pela luz de Creta, «dura», «aguda»,
«limpa» e «branca», berço da civilização ocidental, «sob os muros de Cnossos»,
sua capital, impulsionada pelo halo apolíneo da pitonisa e dos seus oráculos,
«Em Delfos centro do mundo».
A palavra-chave deste texto é Ressurgiremos – um futuro que contém toda uma mensagem de esperança no reencontro com a pureza da civilização grega primitiva, herdeira da de Creta.
O
poema pode esquematizar-se assim:
«Ressurgiremos»
conota a ideia de plural ou coletivo e de futuridade: na 1.a
estrofe, como uma promessa ("ainda"); nas 2.ª e 3.a
estrofes, com uma localização espacial ("ali"); ainda na 3.ª estrofe,
a sugerir a ideia de finalidade "para".
«na
dura luz de Creta» e «Na aguda luz de Creta», os adjetivos «dura»
e «aguda», qualificativos de luz, estão antepostos, facto que lhes empresta uma
conotação de violência; «na luz limpa de Creta» e «na luz branca
de Creta» a adjetivação é posposta e, portanto, mais objetiva.
Estas
quatro expressões funcionam como refrão com implicações temáticas: a caminhada
gradativa para a pureza e superioridade da civilização cretense, porque «convém
tornar claro o coração do homem». A gradação dos adjetivos permite-nos admitir
que a autora contrapõe ao universo degradado que a cerca «a luz branca de
Creta», onde há esperança (certeza?) de ressurgirmos. A evocação do passado
transforma-se em projeto do futuro.
No
aspeto morfossintático é de salientar o uso do futuro («Ressurgiremos») e do
presente histórico do verbo ser («são» – três vezes) que não se excluem. Este
último pode até ter uma conotação de permanência e intemporalidade que inspira
muito mais confiança e dá muito mais garantias do que aquele. (cf. A Lírica
– cadernos de literatura portuguesa 4.º curso, Ed. Sebenta, pp. 151-152)
A
«luz» evidencia a verdade do mundo nomeado, fazendo coincidir as palavras e as
coisas num tempo fora do tempo. É assim que o sujeito poético tem um projeto
para os seus contemporâneos recuperar a sua grandeza pessoal e aliança com o
mundo, reconstruindo o «reino do homem» num «tempo absoluto» futuro.
Portanto,
o destino poético do homem é ser espelho do mundo.
Há
todo um espetáculo exterior que ajuda ao desdobramento da interioridade; a
profundidade da vida revela-se na inteireza do espetáculo do mundo, oferecido
ao homem sem véus, sem sombras:
Na dura luz de Creta
Na aguda luz de Creta
Na luz limpa de Creta
Na luz branca de Creta
quando o homem
já estiver depurado
Pois convém tornar claro o coração do homem
E erguer a negra exactidão da cruz
a cruz da
ressurreição, símbolo de todos os negros atos humanos; só o branquear – «tornar
claro» pela «luz branca» trará ao homem a salvação.
Na
última estrofe, que é conclusiva, o presente do indicativo («convém») tem uma
dimensão apelativa, de aviso de preparação para que «a luz branca de Creta» se
imponha à negra exatidão da cruz. (cf. Sophia de Mello Breyner Andresen – da
escrita ao texto, Estela Lamas, Ed. Caminho, 1998, p. 97)
A
fé na ressurreição futura, misto de reencarnação ou metempsicose órfica e
teologia cristã («erguer a negra exatidão da cruz»), permite superar a
dicotomia entre o ser e o nomear, res e verba, que gera a
frustração do nominalismo e da excessiva irrealização: «ali onde as palavras /
São o nome das coisas». (Moniz: 1997, 112-113)
Livro Sexto (1962) |
RESSURGIREMOS: O “IN-DITO” COMO
PARTICIPAÇÃO NO REAL E RESISTÊNCIA POÉTICA
Publicado no Livro sexto em 1962,
“Ressurgiremos” representa a plenitude do visível e introduz uma nítida vocação
testemunhal, intersubjetiva e interventiva, surge à voz indignada contra a
separação que fragmenta a unidade do sentido das coisas e do tempo humano.
Andresen constrói o poema a partir das
imagens da Grécia antiga, Cnossos, Delphos e Creta, evidenciando sua ligação
com os gregos e o ideal de justiça. Para ela:
O poeta é levado a buscar a justiça pela
própria natureza da sua poesia. E a busca da justiça é desde sempre uma
coordenada fundamental de toda a obra poética. No teatro grego o tema da
justiça é a própria respiração das palavras (ANDRESEN, 2018, p. 987).
O uso do tempo verbal no futuro mostra o
desejo de recomeço e de revolução, o plural “nós” tem o sentido de ressurgir
coletivamente nesse novo tempo, sendo assim, como a poeta diz: “A busca de recomeço
é um ato de confiança. A palavra «revolução», por exemplo, tem o prefixo re,
que significa outra vez” (ANDRESEN, 1989, p. 54).
O prefixo re anuncia uma religação,
sugerida pela luminosidade solar como símbolo da reunificação do homem com as
coisas. A repetição de termos em sua obra como renascer, ressurgir, religação,
reencontro, rebrilhar conduzem a um desejo obstinado da poeta para instaurar a
aliança entre o ser e o mundo (PAGOTO, 2018, p. 163).
A “dura luz de Creta”, “aguda luz de
Creta”, “luz limpa de Creta” e “luz branca de Creta” revelam a essência do
real, com toda luminosidade presente entre a palavra e as coisas, apresenta a
busca de Andresen pelo indizível e pela inteireza das coisas. Essa busca é
através da consciência, da atenção, da sensibilidade que a poeta possui para
dizer o que é indizível. Para ela o “in-dito” é o que perdemos quando não
estamos presentes e atentos e não encontramos o sentido da existência humana.
Andresen se referia a Grécia como:
Um ponto de partida a que justamente é
preciso regressar porque então o homem tentou partir da imanência, partir do
seu estar na terra: estou na terra, sou mortal, mas vou viver a minha
mortalidade com o máximo de verdade, o máximo de transparência (ANDRESEN, 1989, p. 4).
A adjetivação para a luz, “dura”, “aguda”,
“limpa” e “branca” apresenta uma espécie de caminho em que o sujeito inicia com
um encontro violento com a luz que é dura e aguda, como se causasse um
distanciamento, até o verso “Ressurgiremos para olhar de frente” (ANDRESEN,
2018, p. 451) em que o sujeito enfrenta a luz com suavidade, ela então é limpa
e branca.
“Ressurgiremos”, citado cinco vezes no
poema, é uma repetição que Zenith(2018) justifica como:
Uma referência à ressurreição cristã, mas
uma ressurreição que terá lugar não em Jerusalém ou em Roma, mas sim nas
vizinhanças de Cnossos, ou então em Delphos, tido pelos gregos como o omphalos (umbigo
ou centro do mundo). Sendo assim, o poema promove o sincretismo entre teologia
cristã e o paganismo. Creta reveste-se de lugar central, tal como em um ritual
religioso, de onde se instala a integridade primordial. Creta, Cnossos são
símbolos recordados que instauram uma positividade (ZENITH apud PAGOTO, 2018, p. 164).
Andresen mostrava uma consciência intensa
de que o caos é imanente ao próprio trabalho poético e a própria forma
artística, quando se refere aquilo que chama de uma relação justa com o real,
diz que é muito difícil separar ética e poética, ambas são a busca de uma
relação justa com o real e o real é aquilo que emerge e se manifesta (ANDRESEN,
1982, p.2)
Tornar o real visível a partir do fazer
poético que é uma forma de comunicação rica, densa e eficaz. Andresen crê no
poder divino e encantador da palavra, nomeia para tornar as coisas visíveis. No
poema, a palavra “reino” faz referência a um lugar que seria místico e que
revela a correspondência entre a palavra e as coisas. Aparece associada à
Delphos, lugar sagrado e pleno onde é possível que homem e natureza vivam em
harmonia.
A representação do poema corresponde a ser
um com o universo. Andresen procura, sobretudo o que traz felicidade, o que
cria uma liberação íntima. E a partir dessa busca cria a relação entre o homem
e a coisa que ele diz, e revela ao leitor o “in-dito” através da palavra
poética.
A poesia era para Andresen um projeto de
vida, uma busca, uma tentativa de encontrar uma relação verdadeira, de inteira
verdade e transparência com a vida: a salvação. A palavra é o fundamento de
toda a vida intelectual do homem, a poesia a verdadeira aprendizagem da
palavra.
Ela explica a busca pelo visível e pelo
dizível no poema em prosa “Landgrave ou Maria Helena Vieira da Silva”,
publicado no livro Ilhas em 1988, que faz menção a tela Landgrave de
1966, da pintora, e considera o quadro um lugar, palavra repetida quatro vezes
e que pode ser lido como metáfora do indizível:
Lugar de convocação como um poema muito
antigo.
Lugar de aparição.(...)
Um rebrilhar de teatro (...)
É um lugar onde tudo está atento, denso de
memória e de veemência. Lugar de revelação, de espanto e cismar e
descobrimento.
(ANDRESEN, 2018, p. 817).
Neste poema, Andresen enfatiza o fato de
que o mundo visado pela arte não pode ser encarado sob o modo da objetividade e
da identidade, pois do visível emerge o invisível, que causa espanto aos olhos
do sujeito e desvela a obscuridade do Ser, oculta sob a aparência (BARBOSA,
2019, p. 4).
Quando a poeta diz o indizível, aspira a um
desejo de transformação existencial, de encontro com o plano do sagrado e do
inefável, deseja transcender os limites do tempo e do espaço, ela faz por meio
de mitos, símbolos e imagens a revelação de um mistério (PAGOTO, 2018, p. 57).
Em “Ressurgiremos”, Andresen apresenta a possibilidade de restabelecer essa
aliança com o sagrado, se coloca em posição de escuta diante do silêncio a fim
de tentar ressurgir “ali onde as palavras são o nome das coisas” (ANDRESEN,
2018, p.451).
Roberta Lehmann, “Ressurgiremos:
o in-dito como participação no real e resistência poética”, Anais
Simpósio de Pesquisa e Seminário de Iniciação Científica, v. 1, n. 5. FAE -
Centro Universitário, 2020, <https://sppaic.fae.edu/sppaic/article/view/137>
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“Ressurgiremos,
Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-04. Disponível
em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/ressurgiremos-sophia-andresen.html
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