terça-feira, 25 de outubro de 2022

Em todos os jardins hei de florir, Sophia Andresen


 

EM TODOS OS JARDINS

 

Em todos os jardins hei de florir,

Em todos beberei a lua cheia,

Quando enfim no meu fim eu possuir

Todas as praias onde o mar ondeia.

 

Um dia serei eu o mar e a areia,

A tudo quanto existe me hei de unir,

E o meu sangue arrasta em cada veia

Esse abraço que um dia se há de abrir.

 

Então receberei no meu desejo

Todo o fogo que habita na floresta

Conhecido por mim como num beijo.

 

Então serei o ritmo das paisagens,

A secreta abundância dessa festa

Que eu via prometida nas imagens.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen

POESIA, 1.ª ed., 1944, Coimbra, Edição da Autora • 2.ª ed., 1959, Lisboa, Edições Ática • 3.ª ed., Poesia I, 1975, Lisboa, Edições Ática • 4.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho • 5.ª ed., revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho • 6.ª ed., 2007, Lisboa, Editorial Caminho • 1.ª edição na Assírio & Alvim (7.ª ed.), Lisboa, 2013, prefácio de Pedro Eiras.

 



 

Apresente, de forma estruturada, as suas respostas ao questionário.

1. Refira a importância das marcas do tempo futuro que ocorrem ao longo do poema.

2. Indique três dos elementos primordiais da natureza representados no poema, transcrevendo, para justificar a sua resposta, as palavras ou expressões correspondentes a cada um desses elementos.

3. «E o meu sangue arrasta em cada veia / Esse abraço que um dia se há de abrir» (vv. 7-8).

Analise a relação que se estabelece, nos versos transcritos, entre o «eu» e a natureza.

4. Explicite dois dos efeitos produzidos pelas seguintes anáforas: «Em todos» (vv. 1 e 2) e «Então» (vv. 9 e 12).

5. Comente o sentido da última estrofe enquanto conclusão do soneto.

 

 

Explicitação de cenários de resposta

1. As marcas de futuro são um elemento relevante no poema, que apresenta um elevado número de formas verbais nesse tempo (quase sempre no modo indicativo - «hei de florir», «beberei», «serei», «me hei de unir», «se há de abrir», «receberei», «serei» -, mas também no conjuntivo - «possuir»). Remetendo para uma situação posterior à morte do «eu» - «Quando enfim no meu fim» (v. 3), «Um dia» (v. 5), «Então» (vv, 9 e 12) -, o poema confere a esse tempo futuro, pela insistência com que reitera a sua convocação, a intensidade de uma vivência quase sentida no presente.

 

2. Os quatro elementos primordiais - a terra, a água, o fogo e o ar - estão representados no poema, conotando a natureza com a força e a pureza da realidade essencial. Assim:

- a terra, o elemento dominante, é representada nos «jardins», nas «praias», na «areia», na «floresta»;

- a água surge nas duas referências ao «mar»;

- o fogo é diretamente nomeado no verso 10: «Todo o fogo que habita na floresta»;

- o ar é sugerido pela convocação da «lua cheia», ou até pela expressão «ritmo das paisagens».

Nota - Recorda-se que o enunciado da pergunta requer a apresentação de três dos elementos primordiais.

 

3. A relação entre o «eu» e a natureza caracteriza-se, por um lado, pelo «desejo» de fusão com o cosmos, desejo que pulsa no «sangue» do sujeito poético, e, por outro lado, pela convicção deste de que, com a morte, essa pulsão será satisfeita, uma vez que o seu sangue deixará de estar contido nas suas veias e se derramará, abrindo-se no «abraço» do «eu» a «ludo quanto existe».

 

4. As anáforas «Em todos» e «Então» têm, entre outros, os seguintes efeitos:

- acentuam a veemência do discurso;

- sublinham as ideias de totalidade («Em todos») e de focalização no futuro («Então»);

- marcam no poema um ritmo binário;

- contribuem para acentuar a construção regular, pausada;

- …

Nota - Recorda-se que o enunciado da pergunta requer a apresentação de dois efeitos.

 

5. Começando por definir como, nesse futuro idealizado, o «eu» se unirá à natureza, conhecendo então a sua dimensão mais essencial (expressa pela forma verbal «serei» - v. 12), o último terceto põe, sobretudo, em destaque a posição atual do «eu», mero espectador exterior da natureza, Com efeito, ao imaginar-se como participante da «festa», isto é, como integrado no cosmos, ao seu nível mais profundo e secreto, o sujeito convoca a experiência real que tem da natureza no presente: a de um espectador de «paisagens», às quais permanece exterior e de que capta tão-só imagens, que o fascinam como promessas de uma outra realidade, intensa e abundante, anunciando a sua fusão com o universo depois da morte «no meu fim» - v. 3).

 

Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 139. 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto). Cursos Gerais e Cursos Tecnológicos. Prova Escrita de Português B – 1.ª fase. Portugal, GAVE, 2005.

 

"flower", por mememe, twitter, 2021-11-26

 

Texto de apoio

Esse poema, intitulado “Em todos os jardins”, assume a forma de um soneto, uma das formas fixas de versificação mais utilizadas por Andresen em sua obra literária. Assim, a autora recorre a uma forma poética tradicional e comprova uma versatilidade que também pode ser enfatizada pela voz do eu lírico do poema: “Em todos os jardins hei-de florir”. Com uso de um esquema fixo de rimas (ABAB ABAB CDC CDC), a poeta valoriza a repetição das sonoridades ao longo do poema, a exemplo das rimas entre as palavras cheia/ ondeia/ areia/ veia, de maneira a sugerir a expressão do “ritmo das paisagens” descrito pelo eu lírico.

Nesse contexto, o poema explicita o desejo do eu lírico de se fundir aos elementos primordiais, de modo que os jardins, a areia, a floresta (representações do elemento terra) e o mar (representação do elemento água) “são descobertos na linguagem e por meio dela” (PEREIRA, 2003, p. 151). Assim, as imagens referentes ao real são ressignificadas pelo sentido metafórico, o qual, conforme Candido (2006, p. 139), “quebra a barreira entre as palavras comparadas, criando uma espécie de realidade nova”. Nesse sentido, a frase “serei eu o mar e a areia” concebe uma íntima aproximação entre o eu lírico e a paisagem observada, o que revela a expressão de um olhar contemplativo cujos efeitos são dissolver o humano na natureza (MALHEIRO, 2008, p. 54), na medida em que o humano se reconhece como um ser fundamentalmente feito de carbono, assim como a areia, a árvore ou qualquer outra coisa que tenha existência física no universo.

Do mesmo modo, em nova construção metafórica, Andresen incorpora o verbo florir ao seu vocabulário e, com isso, atribui à palavra uma dimensão que toca também o humano; o mesmo processo ocorre com a praia e o mar, apresentados como um “abraço que um dia se há de abrir”. Assim, verifica-se que, mediante frequentes analogias entre o humano e os elementos naturais, Andresen funde a própria poesia ao “ritmo das paisagens”, por meio de um uso da linguagem no qual o sentido imagético adquire importância central e evidencia a busca por uma unidade a ser alcançada pelo eu lírico em relação a “tudo quanto existe”. […]

Murillo Castex, Uma arte do ser: relações entre palavra e natureza na poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen. Curitiba, UTFPR, 2022

 

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“Em todos os jardins hei de florir, Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-25. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/em-todos-os-jardins-hei-de-florir.html



segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta, Sophia Andresen

https://bibliografia.bnportugal.gov.pt/bnp/bnp.exe/registo?1890422

 

QUANDO

 

Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta

Continuará o jardim, o céu e o mar,

E como hoje igualmente hão-de bailar

As quatro estações à minha porta,

 

Outros em abril passarão no pomar

Em que eu tantas vezes passei,

Haverá longos poentes sobre o mar,

Outros amarão as coisas que eu amei.

 

Será o mesmo brilho a mesma festa,

Será o mesmo jardim à minha porta.

E os cabelos doirados da floresta,

Como se eu não estivesse morta.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen

DIA DO MAR, 1.ª ed., 1947, Lisboa, Edições Ática • 2.ª ed., 1961, Lisboa, Edições Ática • 3.ª ed., 1974, Lisboa, Edições Ática • 4.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho • 5.ª ed., revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho • 6.ª ed., 2010, Alfragide, Editorial Caminho • 1.ª edição na Assírio & Alvim (7.ª ed.), Lisboa, 2014, prefácio de Gastão Cruz.

 





 

Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas ao questionário.

1. Explicite as ligações de sentido entre o título e o texto.

2. Indique três traços caracterizadores da natureza representada no poema.

3. Explique a relação que se estabelece, na segunda estrofe, entre o «eu» e os «Outros».

4. Refira dois efeitos de sentido produzidos pela anáfora presente nos versos 9 e 10.

5. Comente a importância do verso «Como se eu não estivesse morta» no contexto da última estrofe e no contexto global do poema.

 



 

Explicitação de cenários de resposta

1. O título «Quando» cria a expectativa de um poema centrado num tempo determinado. A repetição de «Quando», no início do texto, funciona como um eco do título e vem precisar que esta marca temporal remete para um tempo futuro  – o depois da morte do «eu» –, tempo reiteradamente convocado pelas sucessivas formas verbais que exprimem o futuro: «apodrecer», «for», «Continuará», «hão-de bailar», «passarão», «Haverá», «amarão», «Será», «Será».

 

2. A natureza apresenta neste poema os seguintes traços caracterizadores:

- tem como elementos constitutivos o «jardim», o «céu», o «mar», o «pomar», os «poentes sobre o mar», a «floresta»;

- é uma natureza múltipla e diversa - domesticada («jardim», «pomar») e bravia («floresta»);

- integra os quatro elementos primordiais, ou seja, a terra («jardim», «pomar», «floresta»), o ar («céu»), a água («mar»), o fogo («poentes»);

- identifica-se com a «festa» («hão-de bailar / As quatro estações», «festa»), partilhando das suas características (como a dança, o «brilho», a sensualidade);

- tem características antropomórficas (como as divindades gregas ou clássicas: «hão-de bailar / As quatro estações», «cabelos doirados da floresta»);

- é o cenário paradisíaco e harmonioso que envolve a casa do «eu» («à minha porta»);

- é uma natureza sem morte, de tempo cíclico eternamente renovado;

- ...

Nota - Recorda-se que o enunciado da pergunta requer a apresentação de três traços.

 

3. Entre o «eu» e os «Outros» estabelece-se uma relação de substituição e de continuidade: os actos do «eu» – do fruir a natureza e do amor pelas «coisas» – passarão, depois da morte do sujeito poético, a ser assumidos por «Outros». A consciência desse facto significa para o «eu» a certeza de que o mundo que ama lhe sobreviverá, que a natureza e a vida continuarão depois da sua morte individual, havendo simultaneamente a antecipação do sentimento de perda expresso pelas formas do passado («passei», «amei»).

 

4. A anáfora presente nos versos 9 e 10 (reforçada pela expressão «a mesma festa») produz, entre outros, os seguintes efeitos de sentido:

- evidencia a forte convicção do sujeito poético relativamente às características do futuro convocado;

- enfatiza a identidade da natureza, «hoje» e depois da morte do «eu»;

- realça a continuidade e a permanência da vida como uma celebração;

- ...

Nota - Recorda-se que o enunciado da pergunta requer a apresentação de dois efeitos de sentido.

 

5. O verso «Como se eu não estivesse morta» acentua, no contexto da última estrofe, a insignificância do destino individual, em confronto com a continuidade e a permanência da vida cósmica, que ignora o desaparecimento dos indivíduos. No contexto global do poema, instaura uma estrutura circular, ao retomar, do primeiro verso, o tema (a morte do «eu») e a última palavra («morta»).

    Desta similitude entre o primeiro e o último versos resultam, por um lado, mais evidentes as diferenças: a morte, cruamente representada no primeiro verso («Quando o meu corpo apodrecer»), é como que anulada («Como se»), traduzindo o desejo do «eu» de partilhar a permanência do Cosmos. Por outro lado, ao voltar a convocar a morte do «eu», o sujeito poético afirma a consciência da sua mortalidade, inscrita na vida do Universo em renovo contínuo.

In: Português B: questões de exame do 12.º ano: 1998-2003 (volume 1). Lisboa, GAVE, 2004


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Concessão de honras no Panteão Nacional

 


Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta, Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-24. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/quando-o-meu-corpo-apodrecer-e-eu-for.html



domingo, 23 de outubro de 2022

Oriente, Sophia Andresen

Rosa dos ventos desenhada no atelier do arquiteto Luís Cristino da Silva, Lisboa, 1960

 

ORIENTE

 

Este lugar amou perdidamente

Quem o cabo rondou do extremo Sul

E a costa indo seguindo para Oriente

Viu as ilhas azuis do mar azul

………………………………………

Viu pérolas safiras e corais

E a grande noite parada e transparente

Viu cidades nações viu passar gente

De leve passo e gestos musicais

 

Perfumes e tempero descobriu

E danças moduladas por vestidos

Sedosos flutuantes e compridos

E outro nasceu de tudo quanto viu

………………………………………

Sophia de Mello Breyner Andresen, 1988

MUSA, 1.ª ed., 1994, Lisboa, Editorial Caminho • 2.ª ed., 1995, Lisboa, Editorial Caminho • 3.ª ed., 1997, Lisboa, Editorial Caminho • 4 ed., 2001, Lisboa, Editorial Caminho • 5.ª ed., revista, 2004, Lisboa, Editorial Caminho.

 

***

 

Elabore um comentário do poema “Oriente” em que desenvolva os seguintes tópicos:

- traços que caracterizam a personagem representada;

- aspetos da realidade observada e seu significado;

- recursos estilísticos relevantes;

- integração no universo poético de Sophia de Mello Breyner Andresen.

 

 

Explicitação de cenários de resposta:

Desenvolvimento dos tópicos

Traços que caracterizam a personagem representada:

- o primeiro e o último versos referem o sujeito na sua paixão pelo Oriente e no renascimento interior que essa paixão trouxe;

- ele é um viajante por mar,

- ou o português do tempo dos Descobrimentos (v. 3, por exemplo);

- é movido pela curiosidade do exótico (v. 9, por exemplo);

- deslumbrado pelo que descobre («as ilhas azuis», as joias, as «cidades», os «Perfumes e tempero»);

- e transformado pela sua experiência do novo o do diferente (v. 12);

- …

 

Aspetos da realidade observada e seu significado:

- elementos naturais, nos primeiros seis versos do poema: «cabo», «costa», «ilhas», «mar», «corais», «noite»;

- elementos da esfera humana, nos restantes seis versos: «cidades nações», «gente», «tempero», «danças», «vestidos»;

- elementos naturais que são especialmente valorizados na esfera humana: «pérolas safiras», «Perfumes»;

- a significação geral é o brilho, a intensidade eufórica da experiência descrita, a magnificência do lugar descoberto, sublinhada pela graça e pela harmonia que certos adjetivos implicam: noite «transparente», passo «leve», gestos «musicais», vestidos «Sedosos flutuantes»;

- …

 

Recursos estilísticos relevantes:

- repetição: «azuis», «azul», com efeito fónico e de reforço de uma tonalidade;

- anáfora: «Viu» (vv. 4, 5, 7);

- enumeração, marcada pela conjunção copulativa «E» (vv. 3, 6 10);

- sinestesia: «gestos musicais», «danças moduladas por vestidos»;

- hipérbato: «Quem o cabo rondou», «Perfumes e tempero descobriu»;

- perífrase: «o cabo […] do extremos Sul»;

- …

 

Integração no universo poético de Sophia de Mello Breyner Andresen:

- o gosto pelo exótico, pelo diferente;

- o gosto pelos espaços abertos da natureza: o mar, o céu;

- a tendência para o real, o concreto, o que pode ser nomeado e descrito;

- a procura da palavra precisa;

- uma sintaxe que busca a simplicidade;

- o canto lírico das coisas em plena luz (até mesmo a noite é aqui «transparente»);

- …

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 134. 12.º Ano de Escolaridade - Via de Ensino (4.º Curso). Prova Escrita de Literatura Portuguesa – 2.ª fase. Portugal, GAVE, 1998

 

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Oriente, Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-23. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/oriente-sophia-andresen.html


sábado, 22 de outubro de 2022

Vi as águas os cabos vi as ilhas, Sophia Andresen


 

DERIVA

VIII

 

Vi as águas os cabos vi as ilhas

E o longo baloiçar dos coqueirais

Vi lagunas azuis como safiras

Rápidas aves furtivos animais

Vi prodígios espantos maravilhas

Vi homens nus bailando nos areais

E ouvi o fundo som de suas falas

Que já nenhum de nós entendeu mais

Vi ferros e vi setas e vi lanças

Oiro também à flor das ondas finas

E o diverso fulgor de outros metais

Vi pérolas e conchas e corais

Desertos fontes trémulas campinas

Vi o rosto de Eurydice das neblinas

Vi o frescor das coisas naturais

Só do Preste João não vi sinais

 

As ordens que levava não cumpri

E assim contando tudo quanto vi

Não sei se tudo errei ou descobri

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, 1982

NAVEGAÇÕES, 1ª ed., versão inglesa de Ruth Fainlight, versão francesa de Joaquim Vital, 1983, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, «Musarum officia», com um disco gravado pela Autora • 2.ª ed., 1996, Lisboa, Editorial Caminho • 3.ª ed., 1996, Lisboa, Editorial Caminho • 4.ª ed., revista, 2004, Lisboa, Editorial Caminho.

 

________

Notas:

v.5, furtivo: secreto.

v.13, Eurydice: amada de Orfeu que na noite de núpcias morreu por ter sido picada por uma cobra, tendo sido sepultada no reino dos mortos, de onde Orfeu a vai tentar libertar.

v.15, o Preste João foi um lendário soberano cristão do Oriente que detinha funções de patriarca e rei, correspondendo, na verdade, ao Imperador da Etiópia. As notícias (em forma de lenda) do Preste João chegavam à Europa pela boca de embaixadores, peregrinos e mercadores, sendo depois confirmadas pelo infante D. Pedro, que viajara "pelas sete partidas do mundo", e ainda pelo seu inimigo D. Afonso, conde de Barcelos, que fizera peregrinação à Terra Santa.

 



 

Questionário sobre o poema “Deriva -VIII”, de Sophia de Mello Breyner Andresen:

1. O sujeito poético assume, neste poema, uma identidade outra. Qual é essa identidade?

A) A de um cosmonauta.

B) A de um navegador quinhentista.

C) A de um peregrino.

D) A de um viajante moderno.

 

2. O texto poético transcrito tem como referente uma determinada época histórica. Qual é essa época?

A) A época dos Descobrimentos.

B) A época da Restauração.

C) A época da Reconquista.

D) A época das lutas contra os castelhanos.

 

3. Como se relaciona o título do poema "Deriva" com o seu conteúdo?

A) Pelo facto de o sujeito poético ter um rumo duvidoso.

B) Pelo facto de o sujeito poético efetuar um percurso de errância.

C) Pelo facto de o sujeito poético hesitar no percurso que deve tomar.

D) Pelo facto de o sujeito poético navegar num barco que anda à deriva.

 

4. O texto poético transcrito apresenta uma figura de retórica que predomina na 1.ª estrofe. Qual é essa figura de retórica?

A) Pleonasmo.

B) Hipérbato.

C) Anástrofe.

D) Anáfora.

 

5. O poema transcrito apresenta uma lógica sequencial discursiva. Como se designa essa organização discursiva?

A) Enumeração descritiva/Conclusão.

B) Tese/Refutação.

C) Discurso argumentativo.

D) Discurso explicativo/Conclusão.

 

6. Qual o valor expressivo da repetição intensiva da forma verbal "vi"?

A) Atestar a veracidade do que é afirmado.

B) Convencer o recetor de que o sujeito poético não é mentiroso.

C) Concretizar a importância do vivido e do experimentado.

D) Mostrar as dúvidas do sujeito poético perante aquilo que viu.

 

7. Como explica a ausência de pontuação neste poema?

A) O poeta não conhece os sinais de pontuação.

B) O poeta constrói um determinado ritmo e obriga o leitor a construir também o seu ritmo de leitura.

C) O poeta esqueceu-se de pontuar o poema.

D) A pontuação alteraria o sentido deste texto poético.

 

8. Em que plano de perspetivação do real se encontra o sujeito poético quando escreve o seguinte verso: "Vi as águas os cabos vi as ilhas"?

A) Muita proximidade.

B) Contiguidade.

C) Afastamento total.

D) Alguma distância.

 

9. Em que plano de perspetivação do real se encontra o sujeito poético quando vê "homens nus bailando nos areais"?

A) Contiguidade.

B) Alguma proximidade.

C) Muita distância.

D) Afastamento total.

 

10. Como explica a diferente perspetivação do real apresentada pelo sujeito poético?

A) Para mostrar diferentes planos de observação: o geral e o particular/o mar e a terra.

B) Para mostrar a mesma realidade apresentada sob diferentes ângulos.

C) Para testar a sua capacidade de visualização.

D) Para valorizar uma determinada perspetiva.

 

11. Qual o verso que aponta para um diferente plano do real observado?

A) "Vi lagunas azuis como safiras".

B) "Vi pérolas e conchas e corais".

C) "Vi prodígios espantos maravilhas".

D) "Oiro também à flor das ondas finas".

 

12. Como explica a inserção da figura mitológica Eurydice neste texto poético?

A) Pelo facto de o poema ter como núcleo organizador a mitologia.

B) Pelo facto de o espanto do sujeito poético ser tão grande que até o mito toma a configuração de uma possível realidade.

C) Pelo facto de Eurydice ser a figura central do texto poético.

D) Pelo facto de "o rosto de Eurydice" funcionar como um sinal para o sujeito poético.

 

13. Como explica o desânimo expresso no último verso da 1.ª estrofe?

A) Pelo facto de o objetivo primeiro da viagem realizada não ter sido conseguido.

B) Pelo facto de o Preste João não ter querido aparecer.

C) Pelo facto de o Preste João viver noutro reino.

D) Pelo facto de o Preste João ter desaparecido.

 

14. Como articula a 2.ª estrofe com a 1.ª estrofe?

A) A 2.ª estrofe opõe-se à 1.ª estrofe.

B) A 2.ª estrofe mostra que a descoberta valorizada na 1.ª estrofe só é possível através da experimentação, do erro e da dúvida.

C) A 1.ª estrofe introduz a viagem; a 2.ª estrofe desenvolve aspetos dessa viagem.

D) A 1.ª e a 2.ª estrofes desenvolvem diferentes vivências do sujeito poético subordinadas a um tema comum.

 

15. O poema "Deriva - VIII" procura recuperar a tradição dos aedos. Em que consistia essa tradição?

A) Na transmissão oral de textos poéticos feita por poetas e cantores ambulantes da antiga Grécia.

B) Na transmissão oral de poemas feita por poetas e cantores na cultura galaico-portuguesa.

C) Na elaboração de poemas dramatizados.

D) Na elaboração de poemas marcados por repetições contínuas.

 

16. Quais são os elementos que conferem ritmo a este poema?

A) A estrutura frásica sincopada e o uso de figuras de estilo.

B) O uso de figuras de estilo e a rima.

C) A rima, as repetições vocabulares, o verso curto, as sonoridades, a ausência de pontuação.

D) A rima e as figuras de estilo.

 

Chave de respostas: 1-B; 2-A; 3-B; 4-D; 5-A; 6-C; 7-B; 8-D; 9-B; 10-A; 11-C; 12-B; 13-A; 14-B; 15-A; 16-C

Fonte: <http://www.profareal.pt/testes/doc.asp?tema_id=784> (com supressões), consulta: em 2006-05-11

 

Texto de apoio

Se olharmos, por exemplo, para os poemas do livro de Navegações, de 1983, reparamos logo no título que os versos glosarão a temática dos descobrimentos portugueses. E, como é de se esperar, dialogarão com a épica portuguesa. De facto, é esse o motor dos textos que compõem a obra. A própria Sophia diz isso no posfácio das Navegações: “Escrevi as Navegações exatamente porque o Conselho da Revolução, em 1977, me convidou a ir a Macau tomar parte da celebração do Dia de Camões” (ANDRESEN, 2011: 699).

É, nesse momento, importante notar que não são feitas apenas denúncias na obra de 1983. Podemos ver, em diversas partes, questões outras que envolvem os poemas andresenianos sem perder de vista a empreitada camoniana. A título de exemplo, destacamos aqui o poema “VIII”, de Navegações (transcrito abaixo), que fala da visão – e, nesse sentido, do descobrimento – de modo similar ao que é dado aos navegantes portugueses da épica lusitana, no canto V, estrofe 3 e 4 (transcritos abaixo), que narram o momento de distanciamento da costa portuguesa e, desse modo, mostram o momento da entrada no mundo novo a se ver.

Sophia conta:

Vi as águas os cabos vi as ilhas

E o longo baloiçar dos coqueirais

Vi lagunas azuis como safiras

Rápidas aves furtivos animais

Vi prodígios espantos maravilhas

Vi homens nus bailando nos areais

E ouvi o fundo de suas falas

Que já nenhum de nós entendeu mais

Vi ferros e vi setas e vi lanças

Oiro também à flor das ondas dinas

E o diverso fulgor de outros metais

Vi pérolas e conchas e corais

Desertos fontes trémulas campinas

Vi o rosto de Eurydice das neblinas

Só do Preste João não vi sinais

 

As ordens que levava não cumpri

E assim contanto tudo que vi

Não sei se tudo errei ou descobri (ANDRESEN, 2011: 243)

 

Camões narra:

Já a vista, pouco e pouco, se desterra

Daqueles pátrios montes, que ficavam;

Ficava o caro Tejo e a fresca serra

De Sintra, e nela os olhos se alongavam.

Ficava-nos também na amada terra

O coração, que as mágoas lá deixavam.

E já despois que todo se escondeu,

Não vimos mais, enfim, que mar e céu.

 

Assi fomos abrindo aqueles mares,

Que geração alguma não abriu,

As novas Ilhas vendo e os novos ares

Que o generoso Henrique descobriu;

De Mauritânia os montes e lugares,

Terra que Anteu num tempo possuiu,

Deixando à mão esquerda, que à dereita

Não há certeza doutra, mas suspeita. (CAMÕES, 2011:193)

 

Ciente de que estamos diante de uma autora de metapoesia e lembrando que poesia também se faz de poesia, é lícito raciocinar que o poema intitulado “VIII” (V e III), que trata, grosso modo, de um momento inicial, de desvendamento; que se utiliza do verbo ver dentro de uma coletânea de versos que meditam sobre as navegações portuguesas, faz, possivelmente, uma menção ao canto V, estrofe 3, d’Os Lusíadas. Ora, nesse canto e nessa estrofe, nos deparamos com o momento em que os portugueses embarcados deixam de ver a terra conhecida para ver mar e céu. Nesse momento da obra, o narrador nos situa no espaço limítrofe em que se deixa de ver o Tejo para que Ilhas e novos ares subam aos olhos. Assim, se somos movidos pela ideia de que Sophia se vê em Camões, confirmamos, a partir de mais essa ligação, que o poeta é mais do que um emblema ou símbolo do qual a poetisa se vale para denunciar os crimes de seu tempo. Na verdade, é ele valorizado e reconhecido por ela. É ele o espaço de escrita dela. E percorrendo-o, Sophia se familiariza, passa a pertencer, apropria-se das experiências lidas para, assim, se fazer em Camões e construir e pensar poesia.

Nessa corrente de reflexões, observamos que no texto “Luís de Camões: ensombramento e descobrimento”, a autora diz ser ele um cantor dos “portugueses que navegaram a frente, para ver o que havia” (ANDRESEN, 1981:159), fazendo alusão a dois versos do Canto I d’Os Lusíadas (“Os portugueses somos do Ocidente/Imos buscando as terras do Oriente”). Sophia se identifica com ele ao perceber que ambos pertencem “à cultura da terra do Ocidente, e, dentro da lógica dessa cultura, [a] tarefa específica é ir para além das próprias fronteiras, e indagar tudo, ver tudo” (ANDRESEN, 1981:159). A empreitada de desocultar, de celebrar o surgir das navegações é muito parecida com a tarefa de nomear as coisas, de trazê-las à superfície, descobrindo-as, a que Sophia se presta. Camões seria também uma inspiração para ela, pois a busca a que ele se dedica, de alguma forma, se parece com a dela.

 

Eduardo Russell, Sophia de Mello Breyner Andresen, leitora de poetas. Niterói, UFF – Letras, 2017


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Vi as águas os cabos vi as ilhas, Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-22. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/vi-as-aguas-os-cabos-vi-as-ilhas-sophia.html