sábado, 22 de outubro de 2022

Vi as águas os cabos vi as ilhas, Sophia Andresen


 

DERIVA

VIII

 

Vi as águas os cabos vi as ilhas

E o longo baloiçar dos coqueirais

Vi lagunas azuis como safiras

Rápidas aves furtivos animais

Vi prodígios espantos maravilhas

Vi homens nus bailando nos areais

E ouvi o fundo som de suas falas

Que já nenhum de nós entendeu mais

Vi ferros e vi setas e vi lanças

Oiro também à flor das ondas finas

E o diverso fulgor de outros metais

Vi pérolas e conchas e corais

Desertos fontes trémulas campinas

Vi o rosto de Eurydice das neblinas

Vi o frescor das coisas naturais

Só do Preste João não vi sinais

 

As ordens que levava não cumpri

E assim contando tudo quanto vi

Não sei se tudo errei ou descobri

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, 1982

NAVEGAÇÕES, 1ª ed., versão inglesa de Ruth Fainlight, versão francesa de Joaquim Vital, 1983, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, «Musarum officia», com um disco gravado pela Autora • 2.ª ed., 1996, Lisboa, Editorial Caminho • 3.ª ed., 1996, Lisboa, Editorial Caminho • 4.ª ed., revista, 2004, Lisboa, Editorial Caminho.

 

________

Notas:

v.5, furtivo: secreto.

v.13, Eurydice: amada de Orfeu que na noite de núpcias morreu por ter sido picada por uma cobra, tendo sido sepultada no reino dos mortos, de onde Orfeu a vai tentar libertar.

v.15, o Preste João foi um lendário soberano cristão do Oriente que detinha funções de patriarca e rei, correspondendo, na verdade, ao Imperador da Etiópia. As notícias (em forma de lenda) do Preste João chegavam à Europa pela boca de embaixadores, peregrinos e mercadores, sendo depois confirmadas pelo infante D. Pedro, que viajara "pelas sete partidas do mundo", e ainda pelo seu inimigo D. Afonso, conde de Barcelos, que fizera peregrinação à Terra Santa.

 



 

Questionário sobre o poema “Deriva -VIII”, de Sophia de Mello Breyner Andresen:

1. O sujeito poético assume, neste poema, uma identidade outra. Qual é essa identidade?

A) A de um cosmonauta.

B) A de um navegador quinhentista.

C) A de um peregrino.

D) A de um viajante moderno.

 

2. O texto poético transcrito tem como referente uma determinada época histórica. Qual é essa época?

A) A época dos Descobrimentos.

B) A época da Restauração.

C) A época da Reconquista.

D) A época das lutas contra os castelhanos.

 

3. Como se relaciona o título do poema "Deriva" com o seu conteúdo?

A) Pelo facto de o sujeito poético ter um rumo duvidoso.

B) Pelo facto de o sujeito poético efetuar um percurso de errância.

C) Pelo facto de o sujeito poético hesitar no percurso que deve tomar.

D) Pelo facto de o sujeito poético navegar num barco que anda à deriva.

 

4. O texto poético transcrito apresenta uma figura de retórica que predomina na 1.ª estrofe. Qual é essa figura de retórica?

A) Pleonasmo.

B) Hipérbato.

C) Anástrofe.

D) Anáfora.

 

5. O poema transcrito apresenta uma lógica sequencial discursiva. Como se designa essa organização discursiva?

A) Enumeração descritiva/Conclusão.

B) Tese/Refutação.

C) Discurso argumentativo.

D) Discurso explicativo/Conclusão.

 

6. Qual o valor expressivo da repetição intensiva da forma verbal "vi"?

A) Atestar a veracidade do que é afirmado.

B) Convencer o recetor de que o sujeito poético não é mentiroso.

C) Concretizar a importância do vivido e do experimentado.

D) Mostrar as dúvidas do sujeito poético perante aquilo que viu.

 

7. Como explica a ausência de pontuação neste poema?

A) O poeta não conhece os sinais de pontuação.

B) O poeta constrói um determinado ritmo e obriga o leitor a construir também o seu ritmo de leitura.

C) O poeta esqueceu-se de pontuar o poema.

D) A pontuação alteraria o sentido deste texto poético.

 

8. Em que plano de perspetivação do real se encontra o sujeito poético quando escreve o seguinte verso: "Vi as águas os cabos vi as ilhas"?

A) Muita proximidade.

B) Contiguidade.

C) Afastamento total.

D) Alguma distância.

 

9. Em que plano de perspetivação do real se encontra o sujeito poético quando vê "homens nus bailando nos areais"?

A) Contiguidade.

B) Alguma proximidade.

C) Muita distância.

D) Afastamento total.

 

10. Como explica a diferente perspetivação do real apresentada pelo sujeito poético?

A) Para mostrar diferentes planos de observação: o geral e o particular/o mar e a terra.

B) Para mostrar a mesma realidade apresentada sob diferentes ângulos.

C) Para testar a sua capacidade de visualização.

D) Para valorizar uma determinada perspetiva.

 

11. Qual o verso que aponta para um diferente plano do real observado?

A) "Vi lagunas azuis como safiras".

B) "Vi pérolas e conchas e corais".

C) "Vi prodígios espantos maravilhas".

D) "Oiro também à flor das ondas finas".

 

12. Como explica a inserção da figura mitológica Eurydice neste texto poético?

A) Pelo facto de o poema ter como núcleo organizador a mitologia.

B) Pelo facto de o espanto do sujeito poético ser tão grande que até o mito toma a configuração de uma possível realidade.

C) Pelo facto de Eurydice ser a figura central do texto poético.

D) Pelo facto de "o rosto de Eurydice" funcionar como um sinal para o sujeito poético.

 

13. Como explica o desânimo expresso no último verso da 1.ª estrofe?

A) Pelo facto de o objetivo primeiro da viagem realizada não ter sido conseguido.

B) Pelo facto de o Preste João não ter querido aparecer.

C) Pelo facto de o Preste João viver noutro reino.

D) Pelo facto de o Preste João ter desaparecido.

 

14. Como articula a 2.ª estrofe com a 1.ª estrofe?

A) A 2.ª estrofe opõe-se à 1.ª estrofe.

B) A 2.ª estrofe mostra que a descoberta valorizada na 1.ª estrofe só é possível através da experimentação, do erro e da dúvida.

C) A 1.ª estrofe introduz a viagem; a 2.ª estrofe desenvolve aspetos dessa viagem.

D) A 1.ª e a 2.ª estrofes desenvolvem diferentes vivências do sujeito poético subordinadas a um tema comum.

 

15. O poema "Deriva - VIII" procura recuperar a tradição dos aedos. Em que consistia essa tradição?

A) Na transmissão oral de textos poéticos feita por poetas e cantores ambulantes da antiga Grécia.

B) Na transmissão oral de poemas feita por poetas e cantores na cultura galaico-portuguesa.

C) Na elaboração de poemas dramatizados.

D) Na elaboração de poemas marcados por repetições contínuas.

 

16. Quais são os elementos que conferem ritmo a este poema?

A) A estrutura frásica sincopada e o uso de figuras de estilo.

B) O uso de figuras de estilo e a rima.

C) A rima, as repetições vocabulares, o verso curto, as sonoridades, a ausência de pontuação.

D) A rima e as figuras de estilo.

 

Chave de respostas: 1-B; 2-A; 3-B; 4-D; 5-A; 6-C; 7-B; 8-D; 9-B; 10-A; 11-C; 12-B; 13-A; 14-B; 15-A; 16-C

Fonte: <http://www.profareal.pt/testes/doc.asp?tema_id=784> (com supressões), consulta: em 2006-05-11

 

Texto de apoio

Se olharmos, por exemplo, para os poemas do livro de Navegações, de 1983, reparamos logo no título que os versos glosarão a temática dos descobrimentos portugueses. E, como é de se esperar, dialogarão com a épica portuguesa. De facto, é esse o motor dos textos que compõem a obra. A própria Sophia diz isso no posfácio das Navegações: “Escrevi as Navegações exatamente porque o Conselho da Revolução, em 1977, me convidou a ir a Macau tomar parte da celebração do Dia de Camões” (ANDRESEN, 2011: 699).

É, nesse momento, importante notar que não são feitas apenas denúncias na obra de 1983. Podemos ver, em diversas partes, questões outras que envolvem os poemas andresenianos sem perder de vista a empreitada camoniana. A título de exemplo, destacamos aqui o poema “VIII”, de Navegações (transcrito abaixo), que fala da visão – e, nesse sentido, do descobrimento – de modo similar ao que é dado aos navegantes portugueses da épica lusitana, no canto V, estrofe 3 e 4 (transcritos abaixo), que narram o momento de distanciamento da costa portuguesa e, desse modo, mostram o momento da entrada no mundo novo a se ver.

Sophia conta:

Vi as águas os cabos vi as ilhas

E o longo baloiçar dos coqueirais

Vi lagunas azuis como safiras

Rápidas aves furtivos animais

Vi prodígios espantos maravilhas

Vi homens nus bailando nos areais

E ouvi o fundo de suas falas

Que já nenhum de nós entendeu mais

Vi ferros e vi setas e vi lanças

Oiro também à flor das ondas dinas

E o diverso fulgor de outros metais

Vi pérolas e conchas e corais

Desertos fontes trémulas campinas

Vi o rosto de Eurydice das neblinas

Só do Preste João não vi sinais

 

As ordens que levava não cumpri

E assim contanto tudo que vi

Não sei se tudo errei ou descobri (ANDRESEN, 2011: 243)

 

Camões narra:

Já a vista, pouco e pouco, se desterra

Daqueles pátrios montes, que ficavam;

Ficava o caro Tejo e a fresca serra

De Sintra, e nela os olhos se alongavam.

Ficava-nos também na amada terra

O coração, que as mágoas lá deixavam.

E já despois que todo se escondeu,

Não vimos mais, enfim, que mar e céu.

 

Assi fomos abrindo aqueles mares,

Que geração alguma não abriu,

As novas Ilhas vendo e os novos ares

Que o generoso Henrique descobriu;

De Mauritânia os montes e lugares,

Terra que Anteu num tempo possuiu,

Deixando à mão esquerda, que à dereita

Não há certeza doutra, mas suspeita. (CAMÕES, 2011:193)

 

Ciente de que estamos diante de uma autora de metapoesia e lembrando que poesia também se faz de poesia, é lícito raciocinar que o poema intitulado “VIII” (V e III), que trata, grosso modo, de um momento inicial, de desvendamento; que se utiliza do verbo ver dentro de uma coletânea de versos que meditam sobre as navegações portuguesas, faz, possivelmente, uma menção ao canto V, estrofe 3, d’Os Lusíadas. Ora, nesse canto e nessa estrofe, nos deparamos com o momento em que os portugueses embarcados deixam de ver a terra conhecida para ver mar e céu. Nesse momento da obra, o narrador nos situa no espaço limítrofe em que se deixa de ver o Tejo para que Ilhas e novos ares subam aos olhos. Assim, se somos movidos pela ideia de que Sophia se vê em Camões, confirmamos, a partir de mais essa ligação, que o poeta é mais do que um emblema ou símbolo do qual a poetisa se vale para denunciar os crimes de seu tempo. Na verdade, é ele valorizado e reconhecido por ela. É ele o espaço de escrita dela. E percorrendo-o, Sophia se familiariza, passa a pertencer, apropria-se das experiências lidas para, assim, se fazer em Camões e construir e pensar poesia.

Nessa corrente de reflexões, observamos que no texto “Luís de Camões: ensombramento e descobrimento”, a autora diz ser ele um cantor dos “portugueses que navegaram a frente, para ver o que havia” (ANDRESEN, 1981:159), fazendo alusão a dois versos do Canto I d’Os Lusíadas (“Os portugueses somos do Ocidente/Imos buscando as terras do Oriente”). Sophia se identifica com ele ao perceber que ambos pertencem “à cultura da terra do Ocidente, e, dentro da lógica dessa cultura, [a] tarefa específica é ir para além das próprias fronteiras, e indagar tudo, ver tudo” (ANDRESEN, 1981:159). A empreitada de desocultar, de celebrar o surgir das navegações é muito parecida com a tarefa de nomear as coisas, de trazê-las à superfície, descobrindo-as, a que Sophia se presta. Camões seria também uma inspiração para ela, pois a busca a que ele se dedica, de alguma forma, se parece com a dela.

 

Eduardo Russell, Sophia de Mello Breyner Andresen, leitora de poetas. Niterói, UFF – Letras, 2017


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Vi as águas os cabos vi as ilhas, Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-22. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/vi-as-aguas-os-cabos-vi-as-ilhas-sophia.html



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