EM
TODOS OS JARDINS
Em
todos os jardins hei de florir,
Em
todos beberei a lua cheia,
Quando
enfim no meu fim eu possuir
Todas
as praias onde o mar ondeia.
Um
dia serei eu o mar e a areia,
A
tudo quanto existe me hei de unir,
E
o meu sangue arrasta em cada veia
Esse
abraço que um dia se há de abrir.
Então
receberei no meu desejo
Todo
o fogo que habita na floresta
Conhecido
por mim como num beijo.
Então
serei o ritmo das paisagens,
A
secreta abundância dessa festa
Que
eu via prometida nas imagens.
Sophia
de Mello Breyner Andresen
POESIA, 1.ª ed., 1944, Coimbra, Edição
da Autora • 2.ª ed., 1959, Lisboa, Edições Ática • 3.ª ed., Poesia I, 1975, Lisboa, Edições Ática • 4.ª ed., revista, 2003, Lisboa,
Editorial Caminho • 5.ª ed., revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho • 6.ª ed.,
2007, Lisboa, Editorial Caminho • 1.ª edição na Assírio & Alvim (7.ª ed.),
Lisboa, 2013, prefácio de Pedro Eiras.
Apresente, de
forma estruturada, as suas respostas ao questionário.
1. Refira
a importância das marcas do tempo futuro que ocorrem ao longo do poema.
2. Indique
três dos elementos primordiais da natureza representados no poema,
transcrevendo, para justificar a sua resposta, as palavras ou expressões
correspondentes a cada um desses elementos.
3. «E
o meu sangue arrasta em cada veia / Esse abraço que um dia se há de abrir» (vv.
7-8).
Analise a relação que se estabelece, nos versos
transcritos, entre o «eu» e a natureza.
4. Explicite
dois dos efeitos produzidos pelas seguintes anáforas: «Em todos» (vv. 1 e 2) e
«Então» (vv. 9 e 12).
5. Comente
o sentido da última estrofe enquanto conclusão do soneto.
Explicitação
de cenários de resposta
1. As marcas de futuro são um
elemento relevante no poema, que apresenta um elevado número de formas verbais
nesse tempo (quase sempre no modo indicativo - «hei de florir», «beberei»,
«serei», «me hei de unir», «se há de abrir», «receberei», «serei» -, mas também
no conjuntivo - «possuir»). Remetendo para uma situação posterior à morte do
«eu» - «Quando enfim no meu fim» (v. 3), «Um dia» (v. 5), «Então» (vv, 9 e 12)
-, o poema confere a esse tempo futuro, pela insistência com que reitera a sua
convocação, a intensidade de uma vivência quase sentida no presente.
2. Os quatro elementos
primordiais - a terra, a água, o fogo e o ar - estão representados no poema, conotando
a natureza com a força e a pureza da realidade essencial. Assim:
- a terra, o elemento
dominante, é representada nos «jardins», nas «praias», na «areia», na «floresta»;
- a água surge nas duas
referências ao «mar»;
- o fogo é diretamente
nomeado no verso 10: «Todo o fogo que habita na floresta»;
- o ar é sugerido pela
convocação da «lua cheia», ou até pela expressão «ritmo das paisagens».
Nota - Recorda-se que o enunciado da pergunta
requer a apresentação de três dos elementos primordiais.
3. A relação entre o «eu» e a
natureza caracteriza-se, por um lado, pelo «desejo» de fusão com o cosmos,
desejo que pulsa no «sangue» do sujeito poético, e, por outro lado, pela
convicção deste de que, com a morte, essa pulsão será satisfeita, uma vez que o
seu sangue deixará de estar contido nas suas veias e se derramará, abrindo-se
no «abraço» do «eu» a «ludo quanto existe».
4. As anáforas «Em todos» e
«Então» têm, entre outros, os seguintes efeitos:
- acentuam a veemência do
discurso;
- sublinham as ideias de
totalidade («Em todos») e de focalização no futuro («Então»);
- marcam no poema um ritmo
binário;
- contribuem para acentuar
a construção regular, pausada;
- …
Nota - Recorda-se que o enunciado da pergunta
requer a apresentação de dois efeitos.
5. Começando por definir
como, nesse futuro idealizado, o «eu» se unirá à natureza, conhecendo então a
sua dimensão mais essencial (expressa pela forma verbal «serei» - v. 12), o
último terceto põe, sobretudo, em destaque a posição atual do «eu», mero
espectador exterior da natureza, Com efeito, ao imaginar-se como participante
da «festa», isto é, como integrado no cosmos, ao seu nível mais profundo e
secreto, o sujeito convoca a experiência real que tem da natureza no presente:
a de um espectador de «paisagens», às quais permanece exterior e de que capta
tão-só imagens, que o fascinam como promessas de uma outra realidade, intensa e
abundante, anunciando a sua fusão com o universo depois da morte «no meu fim» -
v. 3).
Exame Nacional do Ensino
Secundário n.º 139. 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto).
Cursos Gerais e Cursos Tecnológicos. Prova Escrita de Português B – 1.ª fase.
Portugal, GAVE, 2005.
"flower", por mememe, twitter, 2021-11-26 |
Texto de apoio
Esse
poema, intitulado “Em todos os jardins”, assume a forma de um soneto, uma das
formas fixas de versificação mais utilizadas por Andresen em sua obra
literária. Assim, a autora recorre a uma forma poética tradicional e comprova
uma versatilidade que também pode ser enfatizada pela voz do eu lírico do
poema: “Em todos os jardins hei-de florir”. Com uso de um esquema fixo de rimas
(ABAB ABAB CDC CDC), a poeta valoriza a repetição das sonoridades ao longo do
poema, a exemplo das rimas entre as palavras cheia/ ondeia/ areia/ veia, de
maneira a sugerir a expressão do “ritmo das paisagens” descrito pelo eu lírico.
Nesse
contexto, o poema explicita o desejo do eu lírico de se fundir aos elementos
primordiais, de modo que os jardins, a areia, a floresta (representações
do elemento terra) e o mar (representação do elemento água) “são
descobertos na linguagem e por meio dela” (PEREIRA, 2003, p. 151). Assim, as
imagens referentes ao real são ressignificadas pelo sentido metafórico, o qual,
conforme Candido (2006, p. 139), “quebra a barreira entre as palavras
comparadas, criando uma espécie de realidade nova”. Nesse sentido, a frase
“serei eu o mar e a areia” concebe uma íntima aproximação entre o eu lírico e a
paisagem observada, o que revela a expressão de um olhar contemplativo cujos
efeitos são dissolver o humano na natureza (MALHEIRO, 2008, p. 54), na medida
em que o humano se reconhece como um ser fundamentalmente feito de carbono,
assim como a areia, a árvore ou qualquer outra coisa que tenha existência
física no universo.
Do mesmo
modo, em nova construção metafórica, Andresen incorpora o verbo florir ao
seu vocabulário e, com isso, atribui à palavra uma dimensão que toca também o
humano; o mesmo processo ocorre com a praia e o mar, apresentados como um
“abraço que um dia se há de abrir”. Assim, verifica-se que, mediante frequentes
analogias entre o humano e os elementos naturais, Andresen funde a própria
poesia ao “ritmo das paisagens”, por meio de um uso da linguagem no qual o
sentido imagético adquire importância central e evidencia a busca por uma
unidade a ser alcançada pelo eu lírico em relação a “tudo quanto existe”. […]
Murillo Castex, Uma
arte do ser: relações entre palavra e natureza na poesia de Sophia de Mello
Breyner Andresen. Curitiba, UTFPR, 2022
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- Perfil poético e estilístico de Sophia de Mello Breyner Andresen - apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da lírica de Sophia de Mello Breyner Andresen, por José Carreiro. Folha de Poesia, 2020-07-17
- “Os jardins na poesia de Sophia”, Carlos Mendonça Lopes. In: https://viciodapoesia.com/2013/11/18/os-jardins-na-poesia-de-sophia/
“Em
todos os jardins hei de florir, Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de
Poesia, 2022-10-25. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/em-todos-os-jardins-hei-de-florir.html
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