terça-feira, 25 de outubro de 2022

Em todos os jardins hei de florir, Sophia Andresen


 

EM TODOS OS JARDINS

 

Em todos os jardins hei de florir,

Em todos beberei a lua cheia,

Quando enfim no meu fim eu possuir

Todas as praias onde o mar ondeia.

 

Um dia serei eu o mar e a areia,

A tudo quanto existe me hei de unir,

E o meu sangue arrasta em cada veia

Esse abraço que um dia se há de abrir.

 

Então receberei no meu desejo

Todo o fogo que habita na floresta

Conhecido por mim como num beijo.

 

Então serei o ritmo das paisagens,

A secreta abundância dessa festa

Que eu via prometida nas imagens.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen

POESIA, 1.ª ed., 1944, Coimbra, Edição da Autora • 2.ª ed., 1959, Lisboa, Edições Ática • 3.ª ed., Poesia I, 1975, Lisboa, Edições Ática • 4.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho • 5.ª ed., revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho • 6.ª ed., 2007, Lisboa, Editorial Caminho • 1.ª edição na Assírio & Alvim (7.ª ed.), Lisboa, 2013, prefácio de Pedro Eiras.

 



 

Apresente, de forma estruturada, as suas respostas ao questionário.

1. Refira a importância das marcas do tempo futuro que ocorrem ao longo do poema.

2. Indique três dos elementos primordiais da natureza representados no poema, transcrevendo, para justificar a sua resposta, as palavras ou expressões correspondentes a cada um desses elementos.

3. «E o meu sangue arrasta em cada veia / Esse abraço que um dia se há de abrir» (vv. 7-8).

Analise a relação que se estabelece, nos versos transcritos, entre o «eu» e a natureza.

4. Explicite dois dos efeitos produzidos pelas seguintes anáforas: «Em todos» (vv. 1 e 2) e «Então» (vv. 9 e 12).

5. Comente o sentido da última estrofe enquanto conclusão do soneto.

 

 

Explicitação de cenários de resposta

1. As marcas de futuro são um elemento relevante no poema, que apresenta um elevado número de formas verbais nesse tempo (quase sempre no modo indicativo - «hei de florir», «beberei», «serei», «me hei de unir», «se há de abrir», «receberei», «serei» -, mas também no conjuntivo - «possuir»). Remetendo para uma situação posterior à morte do «eu» - «Quando enfim no meu fim» (v. 3), «Um dia» (v. 5), «Então» (vv, 9 e 12) -, o poema confere a esse tempo futuro, pela insistência com que reitera a sua convocação, a intensidade de uma vivência quase sentida no presente.

 

2. Os quatro elementos primordiais - a terra, a água, o fogo e o ar - estão representados no poema, conotando a natureza com a força e a pureza da realidade essencial. Assim:

- a terra, o elemento dominante, é representada nos «jardins», nas «praias», na «areia», na «floresta»;

- a água surge nas duas referências ao «mar»;

- o fogo é diretamente nomeado no verso 10: «Todo o fogo que habita na floresta»;

- o ar é sugerido pela convocação da «lua cheia», ou até pela expressão «ritmo das paisagens».

Nota - Recorda-se que o enunciado da pergunta requer a apresentação de três dos elementos primordiais.

 

3. A relação entre o «eu» e a natureza caracteriza-se, por um lado, pelo «desejo» de fusão com o cosmos, desejo que pulsa no «sangue» do sujeito poético, e, por outro lado, pela convicção deste de que, com a morte, essa pulsão será satisfeita, uma vez que o seu sangue deixará de estar contido nas suas veias e se derramará, abrindo-se no «abraço» do «eu» a «ludo quanto existe».

 

4. As anáforas «Em todos» e «Então» têm, entre outros, os seguintes efeitos:

- acentuam a veemência do discurso;

- sublinham as ideias de totalidade («Em todos») e de focalização no futuro («Então»);

- marcam no poema um ritmo binário;

- contribuem para acentuar a construção regular, pausada;

- …

Nota - Recorda-se que o enunciado da pergunta requer a apresentação de dois efeitos.

 

5. Começando por definir como, nesse futuro idealizado, o «eu» se unirá à natureza, conhecendo então a sua dimensão mais essencial (expressa pela forma verbal «serei» - v. 12), o último terceto põe, sobretudo, em destaque a posição atual do «eu», mero espectador exterior da natureza, Com efeito, ao imaginar-se como participante da «festa», isto é, como integrado no cosmos, ao seu nível mais profundo e secreto, o sujeito convoca a experiência real que tem da natureza no presente: a de um espectador de «paisagens», às quais permanece exterior e de que capta tão-só imagens, que o fascinam como promessas de uma outra realidade, intensa e abundante, anunciando a sua fusão com o universo depois da morte «no meu fim» - v. 3).

 

Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 139. 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto). Cursos Gerais e Cursos Tecnológicos. Prova Escrita de Português B – 1.ª fase. Portugal, GAVE, 2005.

 

"flower", por mememe, twitter, 2021-11-26

 

Texto de apoio

Esse poema, intitulado “Em todos os jardins”, assume a forma de um soneto, uma das formas fixas de versificação mais utilizadas por Andresen em sua obra literária. Assim, a autora recorre a uma forma poética tradicional e comprova uma versatilidade que também pode ser enfatizada pela voz do eu lírico do poema: “Em todos os jardins hei-de florir”. Com uso de um esquema fixo de rimas (ABAB ABAB CDC CDC), a poeta valoriza a repetição das sonoridades ao longo do poema, a exemplo das rimas entre as palavras cheia/ ondeia/ areia/ veia, de maneira a sugerir a expressão do “ritmo das paisagens” descrito pelo eu lírico.

Nesse contexto, o poema explicita o desejo do eu lírico de se fundir aos elementos primordiais, de modo que os jardins, a areia, a floresta (representações do elemento terra) e o mar (representação do elemento água) “são descobertos na linguagem e por meio dela” (PEREIRA, 2003, p. 151). Assim, as imagens referentes ao real são ressignificadas pelo sentido metafórico, o qual, conforme Candido (2006, p. 139), “quebra a barreira entre as palavras comparadas, criando uma espécie de realidade nova”. Nesse sentido, a frase “serei eu o mar e a areia” concebe uma íntima aproximação entre o eu lírico e a paisagem observada, o que revela a expressão de um olhar contemplativo cujos efeitos são dissolver o humano na natureza (MALHEIRO, 2008, p. 54), na medida em que o humano se reconhece como um ser fundamentalmente feito de carbono, assim como a areia, a árvore ou qualquer outra coisa que tenha existência física no universo.

Do mesmo modo, em nova construção metafórica, Andresen incorpora o verbo florir ao seu vocabulário e, com isso, atribui à palavra uma dimensão que toca também o humano; o mesmo processo ocorre com a praia e o mar, apresentados como um “abraço que um dia se há de abrir”. Assim, verifica-se que, mediante frequentes analogias entre o humano e os elementos naturais, Andresen funde a própria poesia ao “ritmo das paisagens”, por meio de um uso da linguagem no qual o sentido imagético adquire importância central e evidencia a busca por uma unidade a ser alcançada pelo eu lírico em relação a “tudo quanto existe”. […]

Murillo Castex, Uma arte do ser: relações entre palavra e natureza na poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen. Curitiba, UTFPR, 2022

 

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“Em todos os jardins hei de florir, Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-25. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/em-todos-os-jardins-hei-de-florir.html



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