segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Às vezes, em sonho triste, Fernando Pessoa


 

 

Às vezes, em sonho triste,
Nos meus desejos existe
Longinquamente um país
Onde ser feliz consiste
Apenas em ser feliz.

Vive-se como se nasce
Sem o querer nem saber.
Nessa ilusão de viver
O tempo morre e renasce
Sem que o sintamos correr.

O sentir e o desejar
São banidos dessa terra.
O amor não é amor
Nesse país por onde erra
Meu longínquo divagar.

Nem se sonha nem se vive:
É uma infância sem fim.
Parece que se revive
Tão suave é viver assim
Nesse impossível jardim.

 

21-11-1909

Fernando Pessoa, Novas Poesias Inéditas, 6.ª ed., Lisboa, Editorial Nova Ática, 2006, pp. 15-16



 


Questionário sobre o poema “Às vezes, em sonho triste”, de Fernando Pessoa:

1. No poema, o sujeito poético faz referência a um lugar imaginado.

Fundamente esta afirmação, ilustrando a resposta com elementos textuais pertinentes.

2. Explicite o modo como é vivida a passagem do tempo, tendo em conta a segunda estrofe do poema.

3. Relacione o verso «É uma infância sem fim.» (v. 17) com o sentido global do poema.

 

Explicitação de cenários de resposta:

1. Fundamenta, adequadamente, a afirmação apresentada, ilustrando a resposta com elementos textuais pertinentes.

O poema refere um «país» imaginado – «em sonho triste» (v. 1); «Nos meus desejos existe» (v. 2) –, vago e impreciso, dado que só existe em sonhos – «longinquamente» (v. 3); «Nesse país por onde erra / Meu longínquo divagar.» (vv. 14-15).

A imagem final que é dada desse país – um «impossível jardim» (v. 20) – acentua o seu carácter irreal.

2. Explicita, adequadamente, o modo como é vivida a passagem do tempo, tendo em conta a segunda estrofe do poema.

De acordo com a segunda estrofe, a experiência da passagem do tempo é marcada pela espontaneidade ou inconsciência – «Vive-se como se nasce / Sem o querer nem saber» (vv. 6-7) – e pela renovação cíclica da vida – «O tempo morre e renasce / Sem que o sintamos correr.» (vv. 9-10).

Deste modo, tratando-se de um tempo circular, não-linear, não há consciência da sua passagem.

Nota – Não é obrigatório o recurso a citações, ainda que estas figurem, a título ilustrativo, no cenário de resposta.

3. Relaciona, adequadamente, o verso transcrito com o sentido global do poema.

O verso «É uma infância sem fim.» (v. 17) constitui uma representação metafórica própria do «ser feliz» (v. 5) e relaciona-se com vários elementos:

– a anulação do «sentir» (v. 11), do «desejar» (v. 11) e do «amor» (v. 13);

– a ausência de sofrimento – «Tão suave é viver assim» (v. 19);

– a não consciência da passagem do tempo – «Sem que o sintamos correr.» (v. 10);

– o carácter onírico dessa felicidade.

Nota – Não é obrigatório o recurso a citações, ainda que estas figurem, a título ilustrativo, no cenário de resposta.

 

Fonte: Exame Final Nacional de Português n.º 639 - 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho). Portugal, IAVE– Instituto de Avaliação Educativa, I.P., 2015, Época Especial



 


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Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.

 

 


Às vezes, em sonho triste, Fernando Pessoa” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 09-01-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/01/as-vezes-em-sonho-triste-fernando-pessoa.html


domingo, 8 de janeiro de 2023

Em toda a noite o sono não veio, Fernando Pessoa


 

Em toda a noite o sono não veio. Agora
                   Raia do fundo
Do horizonte, encoberta e fria, a manhã.
                   Que faço eu no mundo?
Nada que a noite acalme ou levante a aurora,
                   Coisa séria ou vã.

Com olhos tontos da febre vã da vigília
                   Vejo com horror
O novo dia trazer-me o mesmo dia do fim
                   Do mundo e da dor –
Um dia igual aos outros, da eterna família
                   De serem assim.

Nem o símbolo ao menos vale, a significação
                   Da manhã que vem
Saindo lenta da própria essência da noite que era,
                   Para quem,
Por tantas vezes ter sempre ’sperado em vão,
                   Já nada ’spera.

 

Fernando Pessoa, Poesias, 15.ª ed., Lisboa, Ática, 1995

(1.ª publ. in Athena, nº 3. Lisboa: dezembro 1924)

 

Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas aos itens que se seguem.

1. Caracterize os momentos temporais representados na primeira estrofe do poema.

2. Refira um dos sentidos produzidos pela interrogação «Que faço eu no mundo?» (v. 4).

3. Atente nos três primeiros versos da terceira estrofe. Explicite, sucintamente, a relação entre a «noite» e a «manhã» estabelecida nos versos 14 e 15.

4. Tendo em conta todo o poema, identifique duas das razões do sentimento de «horror» referido no verso 8.

 

Explicitação de cenários de resposta:

1. Os momentos temporais representados são:

– a noite (passado recente), caracterizada como um tempo longo, de vigília, de insónia – «Em toda a noite o sono não veio.» (v. 1);

– a madrugada (instante presente), descrita por meio dos dois adjetivos «encoberta e fria» – «Agora / Raia do fundo / Do horizonte, encoberta e fria, a manhã.» (vv. 1-3).

2. A interrogação produz, entre outros, os seguintes sentidos:

– sublinha um dos temas centrais do poema – o autoquestionamento do «eu» sobre o valor da sua existência;

– enfatiza o desespero e a angústia do sujeito poético face ao seu lugar no mundo;

– acentua o estado de agitação interior do «eu» (agravado pela insónia);

– …

Nota – Recorda-se que o enunciado do item requer a explicitação de um dos sentidos produzidos pela interrogação.

3. Os versos 14 e 15 representam a «noite» como o lugar de onde emerge a «manhã» ou, de forma mais precisa, a «manhã» surge como uma realidade gerada na «noite» e que, saindo lentamente de dentro desta, a anula.

4. As razões do «horror» referido pelo sujeito poético no verso 8 são, entre outras, as seguintes:

– a certeza de que cada novo dia lhe traz sempre a mesma vivência decetiva («o mesmo dia do fim / Do mundo e da dor» – vv. 9-10);

– a consciência da indiferenciação do tempo, da repetição incessante dos dias sempre iguais («Um dia igual aos outros, da eterna família / De serem assim» – vv. 11-12);

– o cansaço de «tantas vezes ter sempre ’sperado em vão» (v. 17), levando à desistência total de qualquer tipo de esperança («Para quem / [...] / Já nada ’spera» – vv. 16 e 18);

– …

Nota – Recorda-se que o enunciado do item requer a explicitação de duas das razões.

 

Fonte: Exame Final Nacional do Ensino Secundário n.º 639 (Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de março). Prova Escrita de Português - 12.º Ano de Escolaridade. Portugal, GAVE-Gabinete de Avaliação Educacional, 2007, 2.ª Fase

 

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Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.

 


Em toda a noite o sono não veio, Fernando Pessoa” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 08-01-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/01/em-toda-noite-o-sono-nao-veio-fernando.html


sábado, 7 de janeiro de 2023

Ela canta, pobre ceifeira, Fernando Pessoa

Ceifeira, Rosa Pomar, 2010-07-19, https://flic.kr/p/8kdcgy


 






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Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anónima viuvez,

Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.

Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões p’ra cantar que a vida.

Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente está pensando.
Derrama no meu coração
A tua incerteza voz ondeando!

Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção! A ciência

Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro! Tornai
Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!

 

Fernando Pessoa, Ficções do Interlúdio. 1914-1935 (ed. Fernando Cabral Martins), Lisboa, Assírio & Alvim, 1998

(1.ª publ. in Athena, n.º 3. Lisboa: dezembro 1924)

 

 

Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas aos itens que se seguem.

1. Indique três dos traços que caracterizam a figura feminina, fundamentando a sua resposta em elementos do texto.

2. Refira dois efeitos do canto da «ceifeira» no sujeito poético.

3. Explicite o significado das exclamações no contexto das três últimas estrofes.

4. Identifique dois recursos estilísticos presentes no poema, analisando o efeito expressivo de cada um deles.

 

Explicitação de cenários de resposta:

1. Indica três traços caracterizadores da figura feminina, fundamentando a resposta em elementos do texto.

A figura feminina representada no poema é caracterizada, entre outros, pelos seguintes traços:

– é uma «pobre ceifeira» (v. 1), isto é, uma humilde trabalhadora do campo;

– talvez julgue ser feliz, pois «canta» (v. 1);

– anima o seu trabalho com o canto (v. 3);

– exprime-se, cantando com modulações de voz – som ondulante, cristalino, suave (vv. 3-8);

– tem um canto que reflete a natureza – «o campo» – e o trabalho – «a lida» (v. 10);

– parece ultrapassar a pequenez da sua vida pela força do seu canto (vv. 11-12);

– canta espontaneamente, sem pensar (v. 13);

– ...

2. Refere, adequadamente, dois dos efeitos requeridos.

O canto da «ceifeira» provoca no sujeito poético os seguintes efeitos:

– vivência de sentimentos paradoxais de alegria e de tristeza (v. 9);

– reflexão sobre as razões misteriosas que a movem (vv. 11-13);

– consciência da indissociabilidade do sentir e da consciência do sentir, mesmo perante o canto «sem razão» da figura feminina (vv. 13-14);

– desejo de sintonização perfeita com a «ceifeira», formulando o «eu» a vontade de que o seu «coração» seja invadido por aquela «incerta voz ondeando» (vv. 15-16);

– vontade de «ser» como a «ceifeira», de ter a sua «alegre inconsciência» (v. 18), sem perder nem a identidade (v. 17) nem o exercício da razão («E a consciência disso!» – v. 19);

– ...

3. Explicita, adequadamente, o significado das exclamações no contexto das três últimas estrofes do poema.

Incapaz de prescindir do seu lugar de lucidez e de «ciência» e, perante a alegre inconsciência da «ceifeira», sentindo a sua condição como um peso que dramatiza a brevidade da vida (vv. 20-21), o «eu» aspira a evadir-se do seu drama, apelando ao «céu», ao «campo» e à «canção» – entidades simbólicas do espírito, da natureza e da arte – para que o libertem, levando-o consigo, depois de o transformarem numa sua «sombra leve» (v. 23).

Neste contexto, as exclamações exprimem a intensidade do desejo, bem como a hiperconsciência em relação a ele (estrofe 5), e sublinham o aspeto retórico de um apelo que não pode ser correspondido.

4. Identifica dois recursos estilísticos, interpretando, adequadamente, o efeito expressivo de cada um deles.

Estão presentes no poema, entre outros, os seguintes recursos estilísticos:

– a adjetivação – «pobre» (v. 1), «feliz» (v. 2), «cheia», «alegre e anónima» (vv. 3-4), «limpo» (v. 6), «suave» (v. 7), «incerta» (v. 16), «alegre» (v. 18), «breve» (v. 21), «leve» (v. 23) –, ora descrevendo (antiteticamente) a ceifeira e o seu canto, ora sublinhando o drama íntimo do «eu»;

– a comparação («Ondula como um canto de ave / No ar limpo como um limiar» – vv. 5-6), associando o canto da ceifeira ao trinar modulado da «ave», que se estende pelo «ar» límpido, como que acedendo à transposição para outro espaço («limiar»);

– a antítese («Ouvi-la alegra e entristece» – v. 9), e expressões antitéticas contrastantes («pobre ceifeira, / Julgando-se feliz», «alegre e anónima viuvez» – vv. 1-4), «Pesa tanto» / […] / sombra leve» – vv. 21 e 23), sublinhando a natureza contraditória tanto do canto da ceifeira como da reação do «eu»;

– a metáfora (por exemplo: «Ondula», «E há curvas no enredo suave / Do som», «Na sua voz há o campo e a lida», «Derrama no meu coração / A tua incerta voz ondeando» – vv. 5, 7-8, 10 e 15-16), exprimindo o movimento sinuoso do canto, que envolve o «coração» com a sua extrema limpidez (e mimetizando a impressão visual da seara ondulante que ela ceifa);

– o paradoxo («O que em mim sente stá pensando», «Ah, poder ser tu, sendo eu!», «Ter a tua alegre inconsciência, / E a consciência disso!» – vv. 14, 17 e 18-19), evidenciando o carácter dilemático do sujeito poético (experimentando simultaneamente o pensar e o sentir, a inconsciência e a lucidez);

– a apóstrofe («Ó céu! / Ó campo! Ó canção» – vv. 19-20), numa invocação de entidades simbólicas;

– a personificação do «céu», do «campo» e da «canção» («Entrai», «Tornai», «levando-me, passai» – vv. 22 e 24), revestidos de um poder sobre-humano (o de resolverem o drama do «eu» e de lhe permitirem a libertação);

– …

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 734 - 10.º e 11.º Anos de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de março). Prova Escrita de Literatura Portuguesa, Lisboa, GAVE-Gabinete de Avaliação Educacional, 2010, 1.ª Fase

 


Leia o enunciado com atenção e responda às questões com clareza, rigor e correção formal, fundamentando as suas afirmações.

1. "Ela canta, pobre ceifeira, / [...] / Mais razões p'ra cantar que a vida." (vv. 1-12).

1.1. Indique as características que, no poema, são atribuídas à ceifeira e à sua voz.

1.2. Explicite os efeitos produzidos pela audição do canto da ceifeira.

1.3. Aponte dois recursos estilísticos utilizados nesta parte do poema, interpretando a sua expressividade.

2. "Ah, canta, canta sem razão! / [...] / Depois, levando-me, passai!" (vv. 13- 24).

2.1. Saliente os anseios do sujeito lírico.

3. "O que em mim sente 'stá pensando." (v. 14).

3.1. Diga em que medida este verso é representativo da temática da poesia ortónima de Fernando Pessoa.

4. As três primeiras estrofes do poema são afirmativas e as três últimas exclamativas.

4.1. Comente a mudança do tom afirmativo para o exclamativo.

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 337. Disciplina Específica. Cursos Complementares Diurnos (11.º ano). Formação Geral – Áreas A, B, C e E. Prova Escrita de Português. Portugal, 1997, 2.ª fase

  

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Ela canta, pobre ceifeira, Fernando Pessoa” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 07-01-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/01/ela-canta-pobre-ceifeira-fernando-pessoa.html