Às vezes, em sonho triste,
Nos meus desejos existe
Longinquamente um país
Onde ser feliz consiste
Apenas em ser feliz.
Vive-se como se nasce
Sem o querer nem saber.
Nessa ilusão de viver
O tempo morre e renasce
Sem que o sintamos correr.
O sentir e o desejar
São banidos dessa terra.
O amor não é amor
Nesse país por onde erra
Meu longínquo divagar.
Nem se sonha nem se vive:
É uma infância sem fim.
Parece que se revive
Tão suave é viver assim
Nesse impossível jardim.
21-11-1909
Fernando
Pessoa, Novas Poesias Inéditas,
6.ª ed., Lisboa, Editorial Nova Ática, 2006, pp. 15-16
Questionário sobre o poema “Às vezes, em sonho triste”, de Fernando
Pessoa:
1. No poema, o
sujeito poético faz referência a um lugar imaginado.
Fundamente
esta afirmação, ilustrando a resposta com elementos textuais pertinentes.
2. Explicite o
modo como é vivida a passagem do tempo, tendo em conta a segunda estrofe do
poema.
3. Relacione o
verso «É uma infância sem fim.» (v. 17) com o sentido global do poema.
Explicitação
de cenários de resposta:
1.
Fundamenta, adequadamente, a afirmação
apresentada, ilustrando a resposta com elementos textuais pertinentes.
O poema refere um «país»
imaginado – «em sonho triste» (v. 1); «Nos meus desejos existe» (v. 2) –, vago e
impreciso, dado que só existe em sonhos – «longinquamente» (v. 3); «Nesse país
por onde erra / Meu longínquo divagar.» (vv. 14-15).
A imagem final que é dada desse
país – um «impossível jardim» (v. 20) – acentua o seu carácter irreal.
2. Explicita,
adequadamente, o modo como é vivida a passagem do tempo, tendo em conta a
segunda estrofe do poema.
De acordo com a segunda estrofe,
a experiência da passagem do tempo é marcada pela espontaneidade ou
inconsciência – «Vive-se como se nasce / Sem o querer nem saber» (vv. 6-7) – e
pela renovação cíclica da vida – «O tempo morre e renasce / Sem que o sintamos
correr.» (vv. 9-10).
Deste modo, tratando-se de um
tempo circular, não-linear, não há consciência da sua passagem.
Nota – Não é obrigatório o recurso a citações, ainda
que estas figurem, a título ilustrativo, no cenário de resposta.
3. Relaciona,
adequadamente, o verso transcrito com o sentido global do poema.
O verso «É uma infância sem fim.»
(v. 17) constitui uma representação metafórica própria do «ser feliz» (v. 5) e
relaciona-se com vários elementos:
– a anulação do «sentir» (v. 11),
do «desejar» (v. 11) e do «amor» (v. 13);
– a ausência de sofrimento – «Tão
suave é viver assim» (v. 19);
– a não consciência da passagem
do tempo – «Sem que o sintamos correr.» (v. 10);
– o carácter onírico dessa
felicidade.
Nota – Não é obrigatório o recurso a citações, ainda
que estas figurem, a título ilustrativo, no cenário de resposta.
“Às vezes, em sonho
triste, Fernando Pessoa” in Folha de Poesia, José Carreiro.
Portugal, 09-01-2023. Disponível em:https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/01/as-vezes-em-sonho-triste-fernando-pessoa.html
Em toda a
noite o sono não veio. Agora Raia do fundo
Do horizonte, encoberta e fria, a manhã. Que faço eu no mundo?
Nada que a noite acalme ou levante a aurora, Coisa séria ou vã.
Com olhos tontos da febre vã da vigília Vejo com horror
O novo dia trazer-me o mesmo dia do fim Do mundo e da dor –
Um dia igual aos outros, da eterna família De serem assim.
Nem o símbolo ao menos vale, a significação Da manhã que vem
Saindo lenta da própria essência da noite que era, Para quem,
Por tantas vezes ter sempre ’sperado em vão, Já nada ’spera.
Fernando Pessoa, Poesias,
15.ª ed., Lisboa, Ática, 1995
(1.ª publ. in Athena, nº 3. Lisboa: dezembro 1924)
Apresente, de forma bem estruturada, as
suas respostas aos itens que se seguem.
1. Caracterize os
momentos temporais representados na primeira estrofe do poema.
2. Refira um dos
sentidos produzidos pela interrogação «Que faço eu no mundo?» (v. 4).
3. Atente nos
três primeiros versos da terceira estrofe. Explicite, sucintamente, a relação
entre a «noite» e a «manhã» estabelecida nos versos 14 e 15.
4. Tendo em conta
todo o poema, identifique duas das razões do sentimento de «horror» referido no
verso 8.
Explicitação de cenários de resposta:
1. Os
momentos temporais representados são:
– a noite (passado recente), caracterizada como um
tempo longo, de vigília, de insónia – «Em toda a noite o sono não veio.» (v.
1);
– a madrugada (instante presente), descrita por
meio dos dois adjetivos «encoberta e fria» – «Agora / Raia do fundo / Do
horizonte, encoberta e fria, a manhã.» (vv. 1-3).
2. A
interrogação produz, entre outros, os seguintes sentidos:
– sublinha um dos temas centrais do poema – o
autoquestionamento do «eu» sobre o valor da sua existência;
– enfatiza o desespero e a angústia do sujeito
poético face ao seu lugar no mundo;
– acentua o estado de agitação interior do «eu»
(agravado pela insónia);
– …
Nota – Recorda-se que o enunciado do item requer a
explicitação de um dos sentidos produzidos pela interrogação.
3. Os
versos 14 e 15 representam a «noite» como o lugar de onde emerge a «manhã» ou,
de forma mais precisa, a «manhã» surge como uma realidade gerada na «noite» e
que, saindo lentamente de dentro desta, a anula.
4. As
razões do «horror» referido pelo sujeito poético no verso 8 são, entre outras,
as seguintes:
– a certeza de que cada novo dia lhe traz sempre a
mesma vivência decetiva («o mesmo dia do fim / Do mundo e da dor» – vv. 9-10);
– a consciência da indiferenciação do tempo, da
repetição incessante dos dias sempre iguais («Um dia igual aos outros, da
eterna família / De serem assim» – vv. 11-12);
– o cansaço de «tantas vezes ter sempre ’sperado
em vão» (v. 17), levando à desistência total de qualquer tipo de esperança
(«Para quem / [...] / Já nada ’spera» – vv. 16 e 18);
– …
Nota – Recorda-se que o enunciado do item requer a
explicitação de duas das razões.
Fonte: Exame Final
Nacional do Ensino Secundário n.º 639 (Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de março).
Prova Escrita de Português - 12.º Ano de Escolaridade. Portugal, GAVE-Gabinete de Avaliação Educacional, 2007, 2.ª Fase
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“Em toda a noite o
sono não veio, Fernando Pessoa” in Folha de Poesia, José Carreiro.
Portugal, 08-01-2023. Disponível em:https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/01/em-toda-noite-o-sono-nao-veio-fernando.html
Ceifeira, Rosa Pomar, 2010-07-19, https://flic.kr/p/8kdcgy
5
10
15
20
Elacanta,
pobre ceifeira,
Julgando-se feliztalvez; Canta, e ceifa,
e a suavoz,
cheia
De alegre e anónima viuvez,
Ondula comoumcanto de ave
No arlimpocomoumlimiar,
E há curvas no enredosuave
Do somqueela tem a cantar.
Ouvi-la alegra e entristece,
Na suavoz
há o campo e a lida,
E cantacomo
se tivesse Maisrazões
p’ra cantarque
a vida.
Ah, canta, cantasemrazão!
O queemmim sente está pensando. Derrama no meucoração
A tua incertezavoz
ondeando!
Ah, podersertu, sendo eu! Ter a tua alegre
inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção!
A ciência
Pesatanto
e a vida é tãobreve!
Entrai pormimdentro! Tornai Minhaalma
a vossasombraleve! Depois, levando-me, passai!
Fernando Pessoa, Ficções
do Interlúdio. 1914-1935 (ed. Fernando Cabral Martins), Lisboa, Assírio
& Alvim, 1998
(1.ª publ. in Athena,
n.º 3. Lisboa: dezembro 1924)
Apresente, de forma bem estruturada,
as suas respostas aos itens que se seguem.
1.Indique três
dos traços que caracterizam a figura feminina, fundamentando a sua resposta em elementos
do texto.
2.Refira dois
efeitos do canto da «ceifeira» no sujeito poético.
3.Explicite o
significado das exclamações no contexto das três últimas estrofes.
4.Identifique
dois recursos estilísticos presentes no poema, analisando o efeito expressivo
de cada um deles.
Explicitação de cenários de resposta:
1.Indica três
traços caracterizadores da figura feminina, fundamentando a resposta em
elementos do texto.
A figura feminina representada no poema é caracterizada, entre outros,
pelos seguintes traços:
– é uma «pobre ceifeira» (v. 1), isto é, uma humilde trabalhadora do
campo;
– talvez julgue ser feliz, pois «canta» (v. 1);
– anima o seu trabalho com o canto (v. 3);
– exprime-se, cantando com modulações de voz – som ondulante,
cristalino, suave (vv. 3-8);
– tem um canto que reflete a natureza – «o campo» – e o trabalho – «a
lida» (v. 10);
– parece ultrapassar a pequenez da sua vida pela força do seu canto
(vv. 11-12);
– canta espontaneamente, sem pensar (v. 13);
– ...
2.Refere,
adequadamente, dois dos efeitos requeridos.
O canto da «ceifeira» provoca no sujeito poético os seguintes efeitos:
– vivência de sentimentos paradoxais de alegria e de tristeza (v. 9);
– reflexão sobre as razões misteriosas que a movem (vv. 11-13);
– consciência da indissociabilidade do sentir e da consciência do
sentir, mesmo perante o canto «sem razão» da figura feminina (vv. 13-14);
– desejo de sintonização perfeita com a «ceifeira», formulando o «eu»
a vontade de que o seu «coração» seja invadido por aquela «incerta voz
ondeando» (vv. 15-16);
– vontade de «ser» como a «ceifeira», de ter a sua «alegre
inconsciência» (v. 18), sem perder nem a identidade (v. 17) nem o exercício da
razão («E a consciência disso!» – v. 19);
– ...
3.Explicita,
adequadamente, o significado das exclamações no contexto das três últimas
estrofes do poema.
Incapaz de prescindir do seu lugar de lucidez e de «ciência» e,
perante a alegre inconsciência da «ceifeira», sentindo a sua condição como um
peso que dramatiza a brevidade da vida (vv. 20-21), o «eu» aspira a evadir-se
do seu drama, apelando ao «céu», ao «campo» e à «canção» – entidades simbólicas
do espírito, da natureza e da arte – para que o libertem, levando-o consigo,
depois de o transformarem numa sua «sombra leve» (v. 23).
Neste contexto, as exclamações exprimem a intensidade do desejo, bem
como a hiperconsciência em relação a ele (estrofe 5), e sublinham o aspeto
retórico de um apelo que não pode ser correspondido.
4. Identifica dois recursos
estilísticos, interpretando, adequadamente, o efeito expressivo de cada um
deles.
Estão presentes no poema, entre outros, os seguintes recursos
estilísticos:
– a adjetivação – «pobre» (v. 1), «feliz» (v. 2), «cheia», «alegre e
anónima» (vv. 3-4), «limpo» (v. 6), «suave» (v. 7), «incerta» (v. 16), «alegre»
(v. 18), «breve» (v. 21), «leve» (v. 23) –, ora descrevendo (antiteticamente) a
ceifeira e o seu canto, ora sublinhando o drama íntimo do «eu»;
– a comparação («Ondula como um canto de ave / No ar limpo como um
limiar» – vv. 5-6), associando o canto da ceifeira ao trinar modulado da «ave»,
que se estende pelo «ar» límpido, como que acedendo à transposição para outro
espaço («limiar»);
– a antítese («Ouvi-la alegra e entristece» – v. 9), e expressões
antitéticas contrastantes («pobre ceifeira, / Julgando-se feliz», «alegre e
anónima viuvez» – vv. 1-4), «Pesa tanto» / […] / sombra leve» – vv. 21 e 23),
sublinhando a natureza contraditória tanto do canto da ceifeira como da reação
do «eu»;
– a metáfora (por exemplo: «Ondula», «E há curvas no enredo suave / Do
som», «Na sua voz há o campo e a lida», «Derrama no meu coração / A tua incerta
voz ondeando» – vv. 5, 7-8, 10 e 15-16), exprimindo o movimento sinuoso do
canto, que envolve o «coração» com a sua extrema limpidez (e mimetizando a
impressão visual da seara ondulante que ela ceifa);
– o paradoxo («O que em mim sente stá pensando», «Ah, poder ser tu,
sendo eu!», «Ter a tua alegre inconsciência, / E a consciência disso!» – vv.
14, 17 e 18-19), evidenciando o carácter dilemático do sujeito poético
(experimentando simultaneamente o pensar e o sentir, a inconsciência e a
lucidez);
– a apóstrofe («Ó céu! / Ó campo! Ó canção» – vv. 19-20), numa
invocação de entidades simbólicas;
– a personificação do «céu», do «campo» e da «canção» («Entrai»,
«Tornai», «levando-me, passai» – vv. 22 e 24), revestidos de um poder
sobre-humano (o de resolverem o drama do «eu» e de lhe permitirem a
libertação);
– …
Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 734 - 10.º e 11.º
Anos de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de março). Prova Escrita
de Literatura Portuguesa, Lisboa, GAVE-Gabinete de
Avaliação Educacional, 2010, 1.ª Fase
Leia o enunciado com atenção e
responda às questões com clareza, rigor e correção formal, fundamentando as
suas afirmações.
1. "Ela
canta, pobre ceifeira, / [...] / Mais razões p'ra cantar que a vida." (vv.
1-12).
1.1. Indique as
características que, no poema, são atribuídas à ceifeira e à sua voz.
1.2. Explicite os
efeitos produzidos pela audição do canto da ceifeira.
1.3. Aponte dois
recursos estilísticos utilizados nesta parte do poema, interpretando a sua expressividade.
3.1. Diga em que
medida este verso é representativo da temática da poesia ortónima de Fernando
Pessoa.
4. As três
primeiras estrofes do poema são afirmativas e as três últimas exclamativas.
4.1. Comente a mudança
do tom afirmativo para o exclamativo.
Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 337. Disciplina
Específica. Cursos Complementares Diurnos (11.º ano). Formação Geral – Áreas A,
B, C e E. Prova Escrita de Português. Portugal, 1997, 2.ª fase
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Fernando Pessoa
- Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da
obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.
“Ela canta, pobre
ceifeira, Fernando Pessoa” in Folha de Poesia, José Carreiro.
Portugal, 07-01-2023. Disponível em:https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/01/ela-canta-pobre-ceifeira-fernando-pessoa.html