sábado, 7 de janeiro de 2023

Ela canta, pobre ceifeira, Fernando Pessoa

Ceifeira, Rosa Pomar, 2010-07-19, https://flic.kr/p/8kdcgy


 






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Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anónima viuvez,

Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.

Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões p’ra cantar que a vida.

Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente está pensando.
Derrama no meu coração
A tua incerteza voz ondeando!

Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção! A ciência

Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro! Tornai
Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!

 

Fernando Pessoa, Ficções do Interlúdio. 1914-1935 (ed. Fernando Cabral Martins), Lisboa, Assírio & Alvim, 1998

(1.ª publ. in Athena, n.º 3. Lisboa: dezembro 1924)

 

 

Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas aos itens que se seguem.

1. Indique três dos traços que caracterizam a figura feminina, fundamentando a sua resposta em elementos do texto.

2. Refira dois efeitos do canto da «ceifeira» no sujeito poético.

3. Explicite o significado das exclamações no contexto das três últimas estrofes.

4. Identifique dois recursos estilísticos presentes no poema, analisando o efeito expressivo de cada um deles.

 

Explicitação de cenários de resposta:

1. Indica três traços caracterizadores da figura feminina, fundamentando a resposta em elementos do texto.

A figura feminina representada no poema é caracterizada, entre outros, pelos seguintes traços:

– é uma «pobre ceifeira» (v. 1), isto é, uma humilde trabalhadora do campo;

– talvez julgue ser feliz, pois «canta» (v. 1);

– anima o seu trabalho com o canto (v. 3);

– exprime-se, cantando com modulações de voz – som ondulante, cristalino, suave (vv. 3-8);

– tem um canto que reflete a natureza – «o campo» – e o trabalho – «a lida» (v. 10);

– parece ultrapassar a pequenez da sua vida pela força do seu canto (vv. 11-12);

– canta espontaneamente, sem pensar (v. 13);

– ...

2. Refere, adequadamente, dois dos efeitos requeridos.

O canto da «ceifeira» provoca no sujeito poético os seguintes efeitos:

– vivência de sentimentos paradoxais de alegria e de tristeza (v. 9);

– reflexão sobre as razões misteriosas que a movem (vv. 11-13);

– consciência da indissociabilidade do sentir e da consciência do sentir, mesmo perante o canto «sem razão» da figura feminina (vv. 13-14);

– desejo de sintonização perfeita com a «ceifeira», formulando o «eu» a vontade de que o seu «coração» seja invadido por aquela «incerta voz ondeando» (vv. 15-16);

– vontade de «ser» como a «ceifeira», de ter a sua «alegre inconsciência» (v. 18), sem perder nem a identidade (v. 17) nem o exercício da razão («E a consciência disso!» – v. 19);

– ...

3. Explicita, adequadamente, o significado das exclamações no contexto das três últimas estrofes do poema.

Incapaz de prescindir do seu lugar de lucidez e de «ciência» e, perante a alegre inconsciência da «ceifeira», sentindo a sua condição como um peso que dramatiza a brevidade da vida (vv. 20-21), o «eu» aspira a evadir-se do seu drama, apelando ao «céu», ao «campo» e à «canção» – entidades simbólicas do espírito, da natureza e da arte – para que o libertem, levando-o consigo, depois de o transformarem numa sua «sombra leve» (v. 23).

Neste contexto, as exclamações exprimem a intensidade do desejo, bem como a hiperconsciência em relação a ele (estrofe 5), e sublinham o aspeto retórico de um apelo que não pode ser correspondido.

4. Identifica dois recursos estilísticos, interpretando, adequadamente, o efeito expressivo de cada um deles.

Estão presentes no poema, entre outros, os seguintes recursos estilísticos:

– a adjetivação – «pobre» (v. 1), «feliz» (v. 2), «cheia», «alegre e anónima» (vv. 3-4), «limpo» (v. 6), «suave» (v. 7), «incerta» (v. 16), «alegre» (v. 18), «breve» (v. 21), «leve» (v. 23) –, ora descrevendo (antiteticamente) a ceifeira e o seu canto, ora sublinhando o drama íntimo do «eu»;

– a comparação («Ondula como um canto de ave / No ar limpo como um limiar» – vv. 5-6), associando o canto da ceifeira ao trinar modulado da «ave», que se estende pelo «ar» límpido, como que acedendo à transposição para outro espaço («limiar»);

– a antítese («Ouvi-la alegra e entristece» – v. 9), e expressões antitéticas contrastantes («pobre ceifeira, / Julgando-se feliz», «alegre e anónima viuvez» – vv. 1-4), «Pesa tanto» / […] / sombra leve» – vv. 21 e 23), sublinhando a natureza contraditória tanto do canto da ceifeira como da reação do «eu»;

– a metáfora (por exemplo: «Ondula», «E há curvas no enredo suave / Do som», «Na sua voz há o campo e a lida», «Derrama no meu coração / A tua incerta voz ondeando» – vv. 5, 7-8, 10 e 15-16), exprimindo o movimento sinuoso do canto, que envolve o «coração» com a sua extrema limpidez (e mimetizando a impressão visual da seara ondulante que ela ceifa);

– o paradoxo («O que em mim sente stá pensando», «Ah, poder ser tu, sendo eu!», «Ter a tua alegre inconsciência, / E a consciência disso!» – vv. 14, 17 e 18-19), evidenciando o carácter dilemático do sujeito poético (experimentando simultaneamente o pensar e o sentir, a inconsciência e a lucidez);

– a apóstrofe («Ó céu! / Ó campo! Ó canção» – vv. 19-20), numa invocação de entidades simbólicas;

– a personificação do «céu», do «campo» e da «canção» («Entrai», «Tornai», «levando-me, passai» – vv. 22 e 24), revestidos de um poder sobre-humano (o de resolverem o drama do «eu» e de lhe permitirem a libertação);

– …

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 734 - 10.º e 11.º Anos de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de março). Prova Escrita de Literatura Portuguesa, Lisboa, GAVE-Gabinete de Avaliação Educacional, 2010, 1.ª Fase

 


Leia o enunciado com atenção e responda às questões com clareza, rigor e correção formal, fundamentando as suas afirmações.

1. "Ela canta, pobre ceifeira, / [...] / Mais razões p'ra cantar que a vida." (vv. 1-12).

1.1. Indique as características que, no poema, são atribuídas à ceifeira e à sua voz.

1.2. Explicite os efeitos produzidos pela audição do canto da ceifeira.

1.3. Aponte dois recursos estilísticos utilizados nesta parte do poema, interpretando a sua expressividade.

2. "Ah, canta, canta sem razão! / [...] / Depois, levando-me, passai!" (vv. 13- 24).

2.1. Saliente os anseios do sujeito lírico.

3. "O que em mim sente 'stá pensando." (v. 14).

3.1. Diga em que medida este verso é representativo da temática da poesia ortónima de Fernando Pessoa.

4. As três primeiras estrofes do poema são afirmativas e as três últimas exclamativas.

4.1. Comente a mudança do tom afirmativo para o exclamativo.

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 337. Disciplina Específica. Cursos Complementares Diurnos (11.º ano). Formação Geral – Áreas A, B, C e E. Prova Escrita de Português. Portugal, 1997, 2.ª fase

  

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Ela canta, pobre ceifeira, Fernando Pessoa” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 07-01-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/01/ela-canta-pobre-ceifeira-fernando-pessoa.html


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