terça-feira, 10 de janeiro de 2023

«Ah, que maçada o piano», Fernando Pessoa







Ah, que maçada o piano
Eternamente a tocar
Lá em cima, no outro andar!


5



Ah, que tristeza o cessar!
Sempre era gente a tocar!
Sempre tinha companhia
Nessa constante arrelia.



10



Vizinha, se não morreu,
Que aquele piano seu
Volte de novo a maçar!
Sem ele penso e sou eu,
Com ele esqueço a sonhar…



15



Má música? Sim, mas há
Até na música má
Um sentimento de alguém.
Não sei quem o sente ou dá,
Não sei quem o dá ou tem.



20



Não deixe de me maçar
Com o contínuo tocar
Do seu piano frequente.
Ah, torne-me a arreliar
E mace-me eternamente!



25




30

A quem é só, tudo é mais
Que o que está naquilo que é.
Notas falsas, desiguais —
Não se importe: a minha fé,
Meu sonho, vão a reboque
Do que toca mal e até
Do piano, do não sei quê…
Toque mal; mas toque, toque!


Fernando Pessoa, Poesia do Eu, edição de Richard Zenith, 2.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 2008, pp. 313-314

 

Questionário sobre o poema “Ah, que maçada o piano”, Fernando Pessoa

1. Explique o modo como o sujeito poético perceciona o som do piano, de acordo com o conteúdo das duas primeiras estrofes.

2. Explicite o sentido dos versos «Sem ele penso e sou eu, / Com ele esqueço a sonhar…» (vv. 11-12).

3. Refira três das marcas linguísticas que, a partir da terceira estrofe, sugerem a existência de um diálogo e transcreva um exemplo de cada uma dessas marcas.

 

Explicitação de cenários de resposta

1. Tópicos de resposta:

Explicação do modo como o sujeito poético perceciona o som do piano:

- primeira estrofe – manifestação de desagrado/incómodo face ao som contínuo do piano; segunda estrofe – manifestação de desagrado/tristeza ou de lamento face ao silenciar do som do piano;

- a música, encarada inicialmente como uma «constante arrelia» (v. 7), era, contudo, sinal de presença humana, uma «companhia» (v. 6).

Exemplo de resposta:

O modo como o sujeito poético perceciona o som do piano é, aparentemente, contraditório, visto que, na primeira estrofe, expressa o incómodo provocado por um piano a tocar continuamente no andar superior;

já na segunda estrofe, em tom de lamento, o sujeito poético exprime a sua tristeza por ter deixado de ouvir o piano, dado que a música, ainda que incómoda, era uma manifestação de presença humana e, por conseguinte, uma companhia.

2. Tópicos de resposta:

- Verso 11: a ausência do som do piano conduz o sujeito poético ao pensamento e à consciencialização

de si mesmo.

- Verso 12: a presença do som do piano conduz ao esquecimento de si, ao devaneio/sonho.

Exemplo de resposta:

Com o verso «Sem ele penso e sou eu» (v. 11), o sujeito poético revela a dolorosa tomada de consciência de si mesmo, acentuada pela ausência do som do piano, o que agudiza o seu sofrimento e a sua solidão.

Por seu lado, o verso «Com ele esqueço a sonhar» (v. 12) traduz o desejo de o sujeito poético ouvir o som do piano, que o conduz ao devaneio, ao «esquecimento de si» e, por conseguinte, ao apaziguamento da dor.

Deste modo, os versos 11 e 12 evidenciam a oposição pensar/sentir (ou a oposição pensar/sonhar), característica temática da poesia de Pessoa ortónimo.

3. Tópicos de resposta:

Na resposta, devem ser abordadas três das marcas linguísticas seguintes, ou outras igualmente relevantes, cada uma delas devidamente fundamentada com uma transcrição pertinente:

- o vocativo (usado para interpelar a interlocutora) – «Vizinha» (v. 8);

- os determinantes e pronomes pessoais (em expressões que remetem para uma relação «eu-você») – por exemplo, «aquele piano seu» (v. 9); «Não deixe de me maçar» (v. 18);

- o presente do conjuntivo com valor de imperativo (nos pedidos dirigidos à interlocutora) – por exemplo, «Volte de novo a maçar!» (v. 10);

- a interrogação (que configura uma réplica a uma fala que se subentende) – «Má música?» (v. 13);

- o advérbio de afirmação (como resposta à interrogação) – «Sim» (v. 13).

Nota – Nas situações em que o examinando reconhece inequivocamente as marcas linguísticas solicitadas, ainda que não utilize a metalinguagem adequada, as respostas devem ser classificadas em igualdade de circunstâncias com as respostas em que essa metalinguagem é utilizada.

Exemplo de resposta:

A partir da terceira estrofe, o sujeito poético parece dialogar com a vizinha. Esse diálogo é sugerido pelo uso do vocativo – «Vizinha» (v. 8) – e do presente do conjuntivo com valor de imperativo para exprimir um pedido: «Não deixe de me maçar» (v. 18). Também a frase interrogativa «Má música?» (v. 13) dá a entender que o sujeito poético estará a responder a uma observação da vizinha sobre a qualidade da música ouvida.

Fonte: Exame Final Nacional de Português n.º 639 - 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho). Portugal, IAVE– Instituto de Avaliação Educativa, I.P., 2017, Época Especial

 

Poderá também gostar de:

Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.



Ah, que maçada o piano, Fernando Pessoa” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 10-01-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/01/ah-que-macada-o-piano-fernando-pessoa.html


segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Às vezes, em sonho triste, Fernando Pessoa


 

 

Às vezes, em sonho triste,
Nos meus desejos existe
Longinquamente um país
Onde ser feliz consiste
Apenas em ser feliz.

Vive-se como se nasce
Sem o querer nem saber.
Nessa ilusão de viver
O tempo morre e renasce
Sem que o sintamos correr.

O sentir e o desejar
São banidos dessa terra.
O amor não é amor
Nesse país por onde erra
Meu longínquo divagar.

Nem se sonha nem se vive:
É uma infância sem fim.
Parece que se revive
Tão suave é viver assim
Nesse impossível jardim.

 

21-11-1909

Fernando Pessoa, Novas Poesias Inéditas, 6.ª ed., Lisboa, Editorial Nova Ática, 2006, pp. 15-16



 


Questionário sobre o poema “Às vezes, em sonho triste”, de Fernando Pessoa:

1. No poema, o sujeito poético faz referência a um lugar imaginado.

Fundamente esta afirmação, ilustrando a resposta com elementos textuais pertinentes.

2. Explicite o modo como é vivida a passagem do tempo, tendo em conta a segunda estrofe do poema.

3. Relacione o verso «É uma infância sem fim.» (v. 17) com o sentido global do poema.

 

Explicitação de cenários de resposta:

1. Fundamenta, adequadamente, a afirmação apresentada, ilustrando a resposta com elementos textuais pertinentes.

O poema refere um «país» imaginado – «em sonho triste» (v. 1); «Nos meus desejos existe» (v. 2) –, vago e impreciso, dado que só existe em sonhos – «longinquamente» (v. 3); «Nesse país por onde erra / Meu longínquo divagar.» (vv. 14-15).

A imagem final que é dada desse país – um «impossível jardim» (v. 20) – acentua o seu carácter irreal.

2. Explicita, adequadamente, o modo como é vivida a passagem do tempo, tendo em conta a segunda estrofe do poema.

De acordo com a segunda estrofe, a experiência da passagem do tempo é marcada pela espontaneidade ou inconsciência – «Vive-se como se nasce / Sem o querer nem saber» (vv. 6-7) – e pela renovação cíclica da vida – «O tempo morre e renasce / Sem que o sintamos correr.» (vv. 9-10).

Deste modo, tratando-se de um tempo circular, não-linear, não há consciência da sua passagem.

Nota – Não é obrigatório o recurso a citações, ainda que estas figurem, a título ilustrativo, no cenário de resposta.

3. Relaciona, adequadamente, o verso transcrito com o sentido global do poema.

O verso «É uma infância sem fim.» (v. 17) constitui uma representação metafórica própria do «ser feliz» (v. 5) e relaciona-se com vários elementos:

– a anulação do «sentir» (v. 11), do «desejar» (v. 11) e do «amor» (v. 13);

– a ausência de sofrimento – «Tão suave é viver assim» (v. 19);

– a não consciência da passagem do tempo – «Sem que o sintamos correr.» (v. 10);

– o carácter onírico dessa felicidade.

Nota – Não é obrigatório o recurso a citações, ainda que estas figurem, a título ilustrativo, no cenário de resposta.

 

Fonte: Exame Final Nacional de Português n.º 639 - 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho). Portugal, IAVE– Instituto de Avaliação Educativa, I.P., 2015, Época Especial



 


Poderá também gostar de:

Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.

 

 


Às vezes, em sonho triste, Fernando Pessoa” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 09-01-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/01/as-vezes-em-sonho-triste-fernando-pessoa.html


domingo, 8 de janeiro de 2023

Em toda a noite o sono não veio, Fernando Pessoa


 

Em toda a noite o sono não veio. Agora
                   Raia do fundo
Do horizonte, encoberta e fria, a manhã.
                   Que faço eu no mundo?
Nada que a noite acalme ou levante a aurora,
                   Coisa séria ou vã.

Com olhos tontos da febre vã da vigília
                   Vejo com horror
O novo dia trazer-me o mesmo dia do fim
                   Do mundo e da dor –
Um dia igual aos outros, da eterna família
                   De serem assim.

Nem o símbolo ao menos vale, a significação
                   Da manhã que vem
Saindo lenta da própria essência da noite que era,
                   Para quem,
Por tantas vezes ter sempre ’sperado em vão,
                   Já nada ’spera.

 

Fernando Pessoa, Poesias, 15.ª ed., Lisboa, Ática, 1995

(1.ª publ. in Athena, nº 3. Lisboa: dezembro 1924)

 

Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas aos itens que se seguem.

1. Caracterize os momentos temporais representados na primeira estrofe do poema.

2. Refira um dos sentidos produzidos pela interrogação «Que faço eu no mundo?» (v. 4).

3. Atente nos três primeiros versos da terceira estrofe. Explicite, sucintamente, a relação entre a «noite» e a «manhã» estabelecida nos versos 14 e 15.

4. Tendo em conta todo o poema, identifique duas das razões do sentimento de «horror» referido no verso 8.

 

Explicitação de cenários de resposta:

1. Os momentos temporais representados são:

– a noite (passado recente), caracterizada como um tempo longo, de vigília, de insónia – «Em toda a noite o sono não veio.» (v. 1);

– a madrugada (instante presente), descrita por meio dos dois adjetivos «encoberta e fria» – «Agora / Raia do fundo / Do horizonte, encoberta e fria, a manhã.» (vv. 1-3).

2. A interrogação produz, entre outros, os seguintes sentidos:

– sublinha um dos temas centrais do poema – o autoquestionamento do «eu» sobre o valor da sua existência;

– enfatiza o desespero e a angústia do sujeito poético face ao seu lugar no mundo;

– acentua o estado de agitação interior do «eu» (agravado pela insónia);

– …

Nota – Recorda-se que o enunciado do item requer a explicitação de um dos sentidos produzidos pela interrogação.

3. Os versos 14 e 15 representam a «noite» como o lugar de onde emerge a «manhã» ou, de forma mais precisa, a «manhã» surge como uma realidade gerada na «noite» e que, saindo lentamente de dentro desta, a anula.

4. As razões do «horror» referido pelo sujeito poético no verso 8 são, entre outras, as seguintes:

– a certeza de que cada novo dia lhe traz sempre a mesma vivência decetiva («o mesmo dia do fim / Do mundo e da dor» – vv. 9-10);

– a consciência da indiferenciação do tempo, da repetição incessante dos dias sempre iguais («Um dia igual aos outros, da eterna família / De serem assim» – vv. 11-12);

– o cansaço de «tantas vezes ter sempre ’sperado em vão» (v. 17), levando à desistência total de qualquer tipo de esperança («Para quem / [...] / Já nada ’spera» – vv. 16 e 18);

– …

Nota – Recorda-se que o enunciado do item requer a explicitação de duas das razões.

 

Fonte: Exame Final Nacional do Ensino Secundário n.º 639 (Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de março). Prova Escrita de Português - 12.º Ano de Escolaridade. Portugal, GAVE-Gabinete de Avaliação Educacional, 2007, 2.ª Fase

 

Poderá também gostar de:

Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.

 


Em toda a noite o sono não veio, Fernando Pessoa” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 08-01-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/01/em-toda-noite-o-sono-nao-veio-fernando.html