quarta-feira, 5 de julho de 2023

Jovens à porta do Chiado, Gastão Cruz

Moby&The Void Pacific Choir – Are You Lost In The World Like Me

 

JOVENS À PORTA DO CHIADO

Veem-se ao telemóvel como ao espelho
nos nomes e nos números buscando
o lodo morno dum profundo poço

O seu mundo está preso àquele fio
de presente irreal que não explica
o facto de ser a pele a pele ainda

Tudo fica no raio do olhar
brevemente fictício a vida reduzindo
ao enredo menor das chamas perdidas

das mensagens que vindas ou não vindas
fazem tremer do dia o edifício
Disso vivem fingindo que se veem

a si somente enquanto o mundo escorre
com a rapidez do dia para o poço

 

Gastão Cruz, Escarpas, Assírio & Alvim, 2010

 

Muitos livros de Gastão Cruz (1941-2022) têm como título uma só palavra, ou, quando não, duas palavras (o artigo e o nome). Hematoma (1961), Escassez (1967), Campânula (1978), O Pianista (1984), Crateras (2000), Fogo (2013), Óxido (2015), Existência (2017). A palavra nuclear que, do título aos poemas de um livro, faça irradiar a mensagem, essa uma das linhas da obra deste enorme poeta. Em 2010, Escarpas convidava-nos a lermos o tempo e o seu sentido ou a ausência de sentido no tempo. Nas suas cinco secções, na melodia dos ritmos e no trabalho rigoroso da frase, escrevendo-se sobre pianistas (Emil Gilels, Richter, Horowitz), pintura (Holbein), cinema (W. Allen), sobre o amor e o desencontro, o corpo e o desencanto, é da vida que a poesia sempre fala. Gastão Cruz, como nenhum outro poeta, leu a nossa época e, atualíssimo, sintetizou em versos impressionantes: "A perda real é a perda do sentido/Só se perde o sentido do que não/ foi nunca real senão quando perdido." Em tempo de preparação do verão, que se leia este poeta.

António Carlos Cortez, sinopse do livro Escarpas. In: Diário de Notícias, 02-07-2023. Disponível em https://www.dn.pt/opiniao/appetite-for-destruction-a-geracao-mais-bem-preparada-de-sempre-2-parte-16623307.html

 

Linhas de leitura

“Jovens à porta do Chiado”, de Gastão Cruz, é um poema que retrata a alienação dos jovens com o mundo digital.

  • Os jovens estão constantemente conectados ao telemóvel, vendo-se refletidos nele como se estivessem diante de um espelho.
  • Eles estão imersos num ambiente superficial, representado pelo "lodo morno dum profundo poço".
  • O seu mundo é limitado e dependente dessa conexão virtual, que não explica a verdadeira experiência da interação física.
  • Tudo o que lhes importa é o que está ao alcance dos seus olhos, reduzindo a vida a uma realidade momentaneamente fictícia, limitando-a ao enredo trivial das chamas perdidas.
  • Esses jovens dependem das mensagens, mesmo que não cheguem, para manterem a ilusão de estarem a viver.
  • Eles fingem que se veem e se conhecem, mas a verdade é que estão isolados na sua própria superficialidade, enquanto o mundo ao seu redor escorre rapidamente, como o tempo que passa, para o poço da insignificância.

 

Poderá também gostar de:

Opinião

Appetite for destruction: a "geração mais bem preparada de sempre" (2.ª parte)

Veem-se ao telemóvel como ao espelho
nos nomes e nos números buscando
o lodo morno dum profundo poço
Gastão Cruz, Escarpas, Assírio & Alvim, 2010, p. 39

 

Acrescento mais alguns argumentos ao artigo de 8 de junho aqui publicado. As críticas que tenho feito ao digital na escola e na universidade têm tido algum eco junto de professores e outros agentes educativos. Mas não era previsível a alienação, a ignorância, a incuriosidade dos "nativos digitais" quanto aos mais diversos saberes, uma vez imersos no mundo digital? Todos vemos que nada leem e pouco sabem, porque se tudo o que importa está "à distância de um clique", tudo o que exija esforço lhes é odioso. Jamais o "como" e o "para quê" das aprendizagens é questionado pelos estudantes. Decorar sem saber, dizer umas quantas coisas politicamente corretas, isso basta para garantir classificações acima do 16. Os professores, salvo raríssimas exceções, estão reféns desta lógica alienante. Todavia, ouve-se dizer que "esta é a geração mais bem preparada de sempre". Uma mentira soez. Propaganda pura. Estamos confrontados com um problema que Heidegger enunciou há décadas: a ausência de linguagem. "Débito e crédito", eis a novilíngua. O poeta António Ramos Rosa, nos anos 60, denunciava no Poema dum funcionário cansado o terror de vivermos num quotidiano que esmaga a imaginação e a curiosidade, tudo vendo sob a ótica do lucro imediato.

Os exames nacionais provam as consequências desta lógica alienante. A geração mais bem preparada de sempre é filha deste sistema, errado, assassino e corruptor. Os exames de Português e de Matemática relacionam-se, claro, porque revelam: 1.º não há como avaliar a expressão escrita e a análise do texto literário de forma séria e rigorosa, porquanto isso equivaleria a formular questões de natureza hermenêutica a que nenhum aluno sabe hoje responder com propriedade. Nas aulas de Português quase nunca leem ensaio e crítica, impera ainda o impressionismo como "método" de compreensão de um texto literário. Daí os verdadeiro-falso e as cruzinhas e a escolha múltipla, isto numa disciplina que já foi a base do ler e do escrever; 2.º as dificuldades do exame de Matemática devem-se à incompreensão dos enunciados. Linguagem, uma vez mais. É que "a geração mais bem preparada de sempre" à saída do 12.º ano pouco sabe ou mesmo nada. Redige uns quantos lugares-comuns sobre as obras do currículo, que não leu. Em Matemática, se não sabem o sentido dos verbos ou se se crê que armadilhar um exame é ser exigente, como não terão dificuldades? Que educação é esta?

A Suécia proibiu o uso de tablets e de quaisquer suportes multimediáticos na escola, investindo 60 milhões de euros em livros e manuais; nós por cá insistimos nos tablets e demais parafernália tecnológica. Somos um país progressista, pois claro. Somos modernos, pois então! Manuel Cruz, filósofo espanhol, escreveu em 2016, em Ser Sin Tiempo (ed. Herder, Barcelona), que a nossa época, desmaterializada, se caracteriza pela instantaneidade, pelo impensado. Tudo - das escolas às empresas, dos programas de televisão aos programas políticos - obedece à lógica do "não há tempo a perder, porque não há tempo". A geração "mais bem preparada de sempre" nunca será filha de Voltaire: "Na educação, a questão não é ganhar tempo, mas perdê-lo." Do TikTok às redes sociais, dos ecrãs à infantilização das aprendizagens, os nossos estudantes são desmemoriados e insensíveis. Viverão "cantando e rindo", olhando-se nos telemóveis como num espelho. No "profundo poço" de uma existência morna, serão incapazes de lidar com o "não", porque tudo foi "sim" nas suas vidas. Mais violentos e inconscientes, o pragmatismo destes "nativos digitais" é sinónimo de individualismo - o totalitarismo egóico. É o Portugal futuro? É o Portugal presente.

Gastão Cruz, pela mão da poesia, viu-os às portas do Chiado. A geração mais bem preparada de sempre não lerá poesia. Lerá simulacros. A sua música é a da pornografia. A imaginação, a beleza, o estranho da arte e das disciplinas que exigem escrita e leitura confronta-os com o que ignoram. Não gostam. Na escola da felicidade - onde todos são educados para serem "todos iguais" e geniais - o apetite pela destruição é a única linguagem com que dizem um mundo escarpado.

António Carlos Cortez, Diário de Notícias, 02-07-2023. Disponível em https://www.dn.pt/opiniao/appetite-for-destruction-a-geracao-mais-bem-preparada-de-sempre-2-parte-16623307.html




 ARE YOU LOST IN THE WORLD LIKE ME


Look harder, say it’s done
Black days and a dying sun
Dream a dream of god lit air
Just for a minute you’ll find me there
Look harder and you’ll find
The 40 ways it leaves us blind
I need a better place
To burn beside the lights

Come on and let me try

Are you lost in the world like me?
If the systems have failed?
Are you free?
All the things, all the loss
Can you see?
Are you lost in the world like me?
Like me?

Burn a courtyard, say it’s done
Throwing knives at a dying sun
A source of love in the god lit air
Just for a minute, you’ll find me there

Look harder and you’ll find
The 40 ways it leaves us blind
I need a better way
To burn beside the lights

Come on and let me try

Are you lost in the world like me?
If the systems have failed?
Are you free?
All the things, all the loss
Can you see?
Are you lost in the world like me?
Like me? [x2]

 

Moby & The Void Pacific Choir



terça-feira, 20 de junho de 2023

A negação da morte em Jorge de Sena

Não foi para morrermos que falámos,
que descobrimos a ternura e o fogo,
e a pintura, a escrita, a doce música. 
Jorge de Sena

Sputnik I

 

A Morte, O Espaço, A Eternidade

(ao José Blanc de Portugal, em memória de um seu ente querido, que eu muito estimava.) 

De morte natural nunca ninguém morreu.
Não foi para morrer que nós nascemos,
não foi só para a morte que dos tempos
chega até nós esse murmúrio cavo,
inconsolado, uivante, estertorado,
desde que anfíbios viemos a uma praia
e quadrumanos nos erguemos. Não.
Não foi para morrermos que falámos,
que descobrimos a ternura e o fogo,
e a pintura, a escrita, a doce música.
Não foi para morrer que nós sonhámos
ser imortais, ter alma, reviver,
ou que sonhámos deuses que por nós
fossem mais imortais que sonharíamos.
Não foi. Quando aceitamos como natural,
dentro da ordem das coisas ou dos anjos,
o inominável fim da nossa carne; quando
ante ele nos curvamos como se ele fora
inescapável fome de infinito; quando
vontade o imaginamos de outros deuses
que são rostos de um só; quando que a dor
é um erro humano a que na dor nos damos
porque de nós se perde algo nos outros, vamos
traindo esta ascensão, esta vitória, isto
que é ser-se humano, passo a passo, mais.

A morte é natural na natureza. Mas
nós somos o que nega a natureza. Somos
esse negar da espécie, esse negar do que
nos liga ainda ao Sol, à terra, às águas.
Para emergir nascemos. Contra tudo e além
de quanto seja o ser-se sempre o mesmo
que nasce e morre, nasce e morre, acaba
como uma espécie extinta de outras eras.
Para emergirmos livres foi que a morte
nos deu um medo que é nosso destino.
Tudo se fez para escapar-lhe, tudo
se imaginou para iludi-la, tudo
até coragem, desapego, amor,
tudo para que a morte fosse natural.

Não é. Como, se o fôra, há tantos milhões de anos
a conhecemos, a sofremos, a vivemos,
e mesmo assassinando a não queremos?
Como nunca ninguém a recebeu
senão cansado de viver? Como a ninguém
sequer é concebível para quem lhe seja
um ente amado, um ser diverso, um corpo
que mais amamos que a nós próprios? Como
será que os animais, junto de nós,
a mostram na amargura de um olhar
que lânguido esmorece rebelado?

E desde sempre se morreu. Que prova?
Morrem os astros, porque acabam. Morre
tudo o que acaba, diz-se. Mas que prova?
Só prova que se morre de universo pouco,
do pouco de universo conquistado.

Não há limites para a Vida. Não
aquela que de um salto se formou
lá onde um dia alguns cristais comeram;
nem bem aquela que, animal ou planta,
foi sendo pelo mundo este morrer constante
de vidas que outras vidas alimentam
para que novas vidas surjam que
como primárias células se absorvam.
A Vida Humana, sim, a respirada,
suada, segregada, circulada,
a que é excremento e sangue, a que é semente
e é gozo e é dor e pele que palpita
ligeiramente fria sob ardentes dedos.
Não há limites para ela. É uma injustiça
que sempre se morresse, quando agora
de tanto que matava se não morre.
É o pouco de universo a que se agarram,
para morrer, os que possuem tudo.
O pouco que não basta e que nos mata,
quando como ele a Vida não se amplia,
e é como a pele do ónagro, que se encolhe,
retráctil e submissa, conformada.
É uma injustiça a morte. É cobardia
que alguém a aceite resignadamente.
O estado natural é complacência eterna,
é uma traição ao medo por que somos,
áquilo que nos cabe: ser o espírito
sempre mais vasto do Universo infindo.

O Sol, a Via Láctea, as nebulosas,
teremos e veremos até que
a Vida seja de imortais que somos
no instante em que da morte nos soltamos.
A Morte é deste mundo em que o pecado,
a queda, a falta originária, o mal
é aceitar seja o que for, rendidos.

E Deus não quer que nós, nenhum de nós,
nenhum aceite nada. Ele espera,
como um juiz na meta da corrida
torcendo as mãos de desespero e angústia,
porque nada pode fazer nada e vê
que os corredores desistem, se acomodam,
ou vão tombar exaustos no caminho.
De nós se acresce ele mesmo que será
o espírito que formos, o saber e a força.
Não é nos braços dele que repousamos,
mas ele se encontrará nos nossos braços
quando chegarmos mais além do que ele.
Não nos aguarda – a mim, a ti, a quem amaste,
a quem te amou, a quem te deu o ser –
não nos aguarda, não. Por cada morte
a que nos entregamos ele se vê roubado,
roído pelos ratos do demónio,
o homem natural que aceita a morte,
a natureza que de morte é feita.

Quando a hora chegar em que já tudo
na terra foi humano — carne e sangue —,
não haverá quem sopre nas trombetas
clamando o globo a um corpo só, informe,
um só desejo, um só amor, um sexo.
Fechados sobre a terra, ela nos sendo
e sendo ela nós todos, a ressurreição
é morte desse Deus que nos espera
para espírito seu e carne do Universo.
Para emergir nascemos. O pavor nos traça
este destino claramente visto:
podem os mundos acabar, que a Vida,
voando nos espaços, outros mundos,
há-de encontrar em que se continui.
E, quando o infinito não mais fosse,
e o encontro houvesse de um limite dele,
a Vida com seus punhos levá-lo-á na frente,
para que em Espaço caiba a Eternidade.

Assis, 1 de abril de 1961, sábado de Aleluia

Jorge de Sema, Metamorfoses, 1963

 

Na poesia de Jorge de Sena é possível vislumbrar várias atitudes diante da morte, como bem aponta Ana Maria Gottardi (2002). No entanto, para a feitura deste trabalho, três são as que gostaria de me deter: a morte como aniquilamento do ser; como trânsito deste mundo para um além inescrutável; e, por fim, como término do possível de si. Na primeira, nitidamente nota-se uma atitude de recusa e resistência, por ser antinatural; na segunda, a resistência parte de outra nuança: da escrita enquanto continuidade da voz do sujeito; e, na última, o sujeito tem a morte como fim de sua existência.

Como exemplo da primeira atitude diante da morte apontada anteriormente, gostaria de destacar o célebre poema “A morte, o espaço e a eternidade”, parte da obra Metamorfoses (1963). Este poema é um claro exemplo de negação da morte, como nos diz o próprio sujeito poético:


De morte natural nunca ninguém morreu.
Não foi para morrer que nós nascemos,
não foi só para a morte que dos tempos
chega até nós esse murmúrio cavo,
inconsolado, uivante, estertorado,
desde que anfíbios viemos a uma praia
e quadrumanos nos erguemos. Não.
Não foi para morrermos que falámos,
que descobrimos a ternura e o fogo,
e a pintura, a escrita, a doce música.
Não foi para morrer que nós sonhámos
ser imortais, ter alma, reviver,
ou que sonhámos deuses que por nós
fossem mais imortais que sonharíamos.
Não foi. Quando aceitamos como natural,
dentro da ordem das coisas ou dos anjos,
o inominável fim da nossa carne; quando
ante ele nos curvamos como se ele fora
inescapável fome de infinito; quando
vontade o imaginamos de outros deuses
que são rostos de um só; quando que a dor
é um erro humano a que na dor nos damos
porque de nós se perde algo nos outros, vamos
traindo esta ascensão, esta vitória, isto
que é ser-se humano, passo a passo, mais.

A morte é natural na natureza. Mas
nós somos o que nega a natureza. Somos
esse negar da espécie, esse negar do que
nos liga ainda ao Sol, à terra, às águas.
Para emergir nascemos. Contra tudo e além
de quanto seja o ser-se sempre o mesmo
que nasce e morre, nasce e morre, acaba
como uma espécie extinta de outras eras.
[...]
(SENA, 2014, p. 355-356).

 

No poema, deparamos com uma explícita negação da morte: “A morte é natural na natureza. Mas/nós somos o que nega a natureza. Somos/esse negar da espécie, esse negar do que nos liga ainda ao Sol, às terras, às águas (SENA, 2014, p. 355-356). E isso pode relacionar-se ao facto de o ser humano, racional, diante dela – ou de sua possibilidade real – ser lançado em uma animalidade que já perdera há muitos séculos, acabando por esquecer que não é imortal. Para Bataille (2016, p. 106), “A morte é, num sentido, vulgar, inevitável, mas, num sentido profundo inacessível. O animal a ignora, embora ela lance o homem de volta à animalidade. O homem ideal que encarna a razão permanece-lhe estranho”.

O sujeito poético seniano assinala exatamente o caráter inumano, horrendo da morte: “Não foi para morrermos que falámos,/que descobrimos a ternura e o fogo,/e a pintura, a escrita, a doce música” (SENA, 2014, p. 355-356). Ela, tantas vezes negada, esquecida, conscientemente escondida nos mais recônditos espaços, exaspera no homem a angústia e o horror. Ela “não é menos o desejo desvairado de ser eu do que aquele de não ser mais nada” (BATAILLE, 2016, p. 106).

Diante do horror da morte, o eu poético se insurge. Ele resiste. Mesmo sabendo que vai morrer em algum momento, ele a recusa, apontando-a como irracional, ou seja, inumana. Em várias passagens, essa recusa se faz poema: “Tudo se fez para escapar-lhe, tudo/se imaginou para iludi-la, tudo/até coragem, desapego, amor/para que a morte fosse natural [...] Não há limites para a Vida” (SENA, 2014, p. 355-356).

A vida, nesse poema, é nada menos que negação da morte. É sua condenação, exclusão. Se, de acordo com Philippe Ariès, até o início do século XIX, a convivência com a finitude humana era relativamente pacífica, a partir de então o negar a morte tornou-se cada vez mais intenso. O ser humano busca a eternidade em vida, explora outros espaços, órbitas, desbrava mundos e realidades só imaginados em utopias ficcionais – como bem representado pela figura que acompanha o poema, imagem do Sputnik I, o primeiro satélite artificial lançado da Terra, em 1957. Apesar de todos os avanços científicos e tecnológicos, ainda não se descobriu nenhuma fórmula da vida, ou fonte da eterna juventude. Indignado, o sujeito poético profere:


É uma injustiça a morte. É cobardia
que alguém a aceite resignadamente.
O estado natural é complacência eterna,
é uma traição ao medo por que somos,
àquilo que nos cabe: ser o espírito
sempre mais vasto do Universo infindo.
[...]
(SENA, 2014, p. 355-356).

 

Ana Maria Gottardi (2002, p. 161) revela que, em Sena, a resistência à morte revela-se nas asserções negativas, na recusa, na reafirmação da recusa, na valorização do medo da morte e valorização da vida, “até a sua identificação com o infinito, ou Deus, mas um Deus produto do espírito humano”. Como é possível assinalar, em “A morte, o espaço e a eternidade”, Deus é convidado a encenar:


Não foi para morrer que nós sonhamos
ser imortais, ter alma, reviver
ou que sonhamos deuses que por nós
fossem mais imortais que sonharíamos.
[...]
E Deus não quer que nós, nenhum de nós,
nenhum aceite nada. Ele espera
como um juiz na meta da corrida,
Torcendo as mãos de desespero e angústia,
porque não pode fazer nada e vê
que os corredores desistem, se acomodam,
ou vão tombar exaustos no caminho.
De nós se acresce ele mesmo que será
o espírito que formos, o saber e a força.
[...]
(SENA, 2014, p. 355-356).

 

A encenação que traz à luz a presença divina nada mais é que vontade de humano, racionalização, é um verdadeiro convite ao desafio, de maneira tal que se assemelha a um novo caminho para as índias modernas em que o desejo maior é de ultrapassá-lo, de negá-lo, em que a ressurreição humana “é morte desse Deus que nos espera” (SENA, 2014, p. 355-356).

A morte em Sena aparece também como trânsito deste para outro mundo, circulação entre espaços e tempos que, mais que significar finitude existencial, pode também deixar resquícios de continuidade por meio da cultura e do próprio poema enquanto sua manifestação. Como exemplo desta outra face da morte, selecionei o poema “Sacrifício da imortalidade”, publicado em Tempo de Coroa da Terra, 1942-1944:


A minha voz quando estiver tão longe,
que apenas eruditos ma percebam,
no que, do tempo, eu não levei comigo,
já não dirá desilusões ou sonhos,
quantas esperanças dei não crendo nelas,
para que as vissem quem não via o mundo,
ou visse o mundo alguém, mesmo sem elas
– será como um silêncio do passado,
onde o futuro se advinha extremo,
e não sabemos qual, se será vosso,
se outro será, de que nasceu conosco
o erro de o julgar, como se fora
alheia a liberdade ao próprio tempo...
E só no tempo em vão me perderei.
[...]
(SENA, 2015, p. 501).

 

Este poema tem em si não só o performativo de um sujeito que se escreve na própria morte, como também um novo olhar diante dela, uma visão de continuidade. Por mais que ele sacrifique a sua imortalidade carnal, abra mão de sua existência no mundo, a sua permanência lhe será assegurada por meio da escrita, pela presença da sua voz. A morte neste poema não possui sentido de fim, uma vez que, mesmo sendo ouvida apenas por eruditos, se fará presente. Para Ernest Becker (1995), em A negação da morte, o desejo de continuação do nosso ser na eternidade, através de que modo se manifestar, atua para acalmar o ser humano, a fim de que ele não precise ter nenhuma angústia.

No poema, a voz metafórica se torna, pois, vida, carne em que confluem o sangue e o desejo de falar, como bem aponta o poema “Efêmero”, presente em Tempo de Perseguição, 1938-1942: “A carne que possuo é minha voz./É única, é suja... mas escorre/a baba, sangue, o suor e o mais que escorre/de um corpo humano sob e contra nós” (SENA, 2015, p. 399). Por meio da escrita, o sujeito materializa-se, dá formas e contornos às suas ideias e o poema, enquanto espaço erótico de tensões, passa a ser palco de desejo e de atrito voluptuoso entre aquele que fala e quem o lê.

O sujeito poético de “Sacrifício da imortalidade” se sabe enquanto ser que, temporalmente, sempre será de cultura, tendo o poema enquanto máxima representação de seus anseios, desejos e medos. Por esse motivo, a voz que depreende do peito-papel desse mesmo sujeito se recusa ao silêncio. Ela é vocalização de um movimento interior que ultrapassa esse ser no tempo e espaço, é som de passado com desejo de futuro: “Será mistério, escuridão, cansaço,/memória tênue de ansioso abraço,/em volta de um saber de coisa alguma [...]” (SENA, 2015, p. 501).

Esse eu poético se desnuda diante do leitor de modo a reconhecer que a sua voz no futuro não será retorno, justamente porque cada leitor que com ela travar contato escutará diferentes nuanças do som: “O que ficou/jamais dirá que tornarei a ser” (SENA, 2015, p. 501). Como bem destaca Octavio Paz (2012, p. 198), o poeta ao falar de factos, experiências, sentimentos e pessoas, fala-nos do próprio ato de criar e nomear, levando o leitor a repetir e recriar o poema e, assim, “o leitor recria o instante e cria a si mesmo”. Por isso, mesmo afastados anos ou séculos um do outro, na comunhão poética entre poema e leitor, o que há de ser lido é sempre outra coisa, e isso feito de distintas maneiras. Tendo a escrita enquanto permanência, a cada leitor que com ela travar contato o poema será modificado, indo ao encontro com o que diz Octavio Paz (2012, p. 198) em relação ao poema ser sempre uma obra inacabada, “sempre disposta a ser completada e vivida por um novo leitor”. Tendo em consideração esse caráter do poema ser algo sempre em devir, é possível sublinhar que em “Sacrifício da imortalidade” a morte não é um ato banal, porque não é o fim.

A terceira e última face da morte que desejo apresentar neste trabalho aparece na poesia de Jorge de Sena como término do sujeito, finitude existencial, sem em nenhum momento apontar para desejo de continuidade, seja por meio da escrita, seja em direção e uma existência post mortem. Essa visão é muito

bem representada pelo poema “Morte...”, parte da seção de Poesia 2, intitulada Primeiro Tempo, 1936-1938:


Quando morrer
não verei o mundo apagar-se,
enegrecer,
à minha volta.
Morrerei de olhos fechados.
Mesmo quando morrer
já estarão mais do que fechados
porque os fechei há muito
ao espaço que rodeia
a minha presença material
de cada instante...
Morrer para mim
não será deixar de ver,
nem de ouvir, nem de sentir qualquer coisa,
porque os meus outros sentidos
também descansam do cansaço
de não terem encontrado
o cansaço procurado...
Enfastiaram-se de monotonia...
Queriam outros perfumes...
outra gente...
outros horizontes...
e não tiveram nada,
tiveram mal,
ou tiveram para depois ficarem
com menos do que tinham...
Na minha morte
não há-de haver
despedida dos sentidos.
As despedidas já estão feitas.
A minha morte
há-de ser só morte,
uma simples morte de morrer...
(SENA, 2015, p. 200-201).

 

O primeiro elemento que me salta aos olhos na leitura deste poema é o facto de a aniquilação, finitude do ser, não estar relacionada apenas ao momento específico da morte. Em vida, o sujeito já se mostra desprovido de desejos, de liberdade, entregue a indignidade. Ao considerar este aspeto, é possível evocar o que diz Ernest Becker (1995) em relação às diferentes imagens que o ser humano pode traçar e escolher para si no tocante à morte; para ele, há aquela em que o indivíduo, atirado aos seus próprios parcos poderes, parece muito pouco livre para deslocar-se e muitíssimo desprovido de dignidade. E isso vai ao encontro do sujeito poético seniano que, de maneira um tanto quanto melancólica, vai revelando que a própria vida que vive já se assemelha a um apagamento: “Mesmo quando morrer/já estarão mais do que fechados/porque os fechei há muito/ ao espaço que rodeia/a minha presença material/de cada instante [...]” (SENA, 2015, p. 200-201). Nesse caso, a vida tornou-se lápide, espaço sepulcral em que o sujeito poético apenas respira à espera de “uma simples morte de morrer” (SENA, 2015, p. 200-201).

De alguma forma, esse eu poético tornado em pedra, em ser que performativamente se diz em estado vegetativo, vive em uma espécie de exílio auto-imposto causado pelo enfastiamento de uma vida monótona. Trata-se de um ser tomado por uma profunda melancolia diante de uma vida que poderia ter sido outra e à qual foram negados “[...] outros perfumes.../outra gente.../outros horizontes...”  (SENA, 2015, p. 200-201). Um sujeito que diz não ter tido nada ou, quando teve algo que desejou, “[...] tiveram para depois ficarem/com menos que tinham...” (SENA, 2015, p. 200-201).

O leitor deste poema se vê diante de uma morte como continuidade de um apagamento iniciado em vida, perante um poema tumular, em que o sujeito poético se fecha e anuncia que “As despedidas já estão feitas” (SENA, 2015, p. 200-201), mesmo antes de a vida findar. Mais que desejo de desaparecimento, o poema se faz enquanto constatação de um alguém que não verá as luzes do mundo apagarem-se, por estar nele de olhos fechados. Por isso, essa escrita não se assemelha a uma voz de um alguém que deseja permanência e, sim, como testemunho de uma vida vivida em desencanto, desespero e abandono.

 

Rodrigo Machado, “Faces da morte na poesia de Jorge de Sena” in Todas as Letras, São Paulo, v. 21, n. 2, p. 137-145, maio/ago. 2019 http://dx.doi.org/10.5935/1980-6914/letras.v21n2p137-145

 


segunda-feira, 19 de junho de 2023

Quem vê, Senhora, claro e manifesto, Camões


 


     Quem vê, Senhora, claro e manifesto1
o lindo ser de vossos olhos belos,
se não perder a vista só em vê-los,
já não paga o que deve a vosso gesto2.

     Este me parecia preço honesto;
mas eu, por de vantagem merecê-los,
dei mais a vida e alma por querê-los,
donde já me não fica mais de resto.

     Assi que a vida e alma e esperança
e tudo quanto tenho, tudo é vosso,
e o proveito disso eu só o levo.

     Porque é tamanha bem-aventurança3
o dar-vos quanto tenho e quanto posso
que, quanto mais vos pago, mais vos devo.

 

Luís de Camões, Rimas, edição de A. J. da Costa Pimpão, Coimbra, Almedina, 1994, p. 125.

 

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1 claro e manifesto – de forma clara e incontestável.
2 gesto – rosto.
3 bem-aventurança – grande felicidade.

 



1. Explicite, com base em dois aspetos significativos, o modo como o sujeito poético reage à figura feminina evocada no poema. Fundamente a sua resposta com transcrições pertinentes.

2. Considere as afirmações seguintes sobre o soneto.

(A) O sujeito poético dirige-se à Senhora através de uma apóstrofe.

(B) A expressão «perder a vista» (verso 3) é usada com sentido metafórico.

(C) O sujeito poético arrepende-se de desejar algo cujo preço elevado o impede de saldar a dívida.

(D) O poema ilustra o estilo engenhoso do poeta, nomeadamente no último terceto, quando recorre à

antítese e ao paralelismo alcançado através do jogo de palavras.

(E) Entre a Senhora e o sujeito poético existe uma relação de igualdade.

Identifique as duas afirmações falsas.

 

3. Selecione a opção que completa corretamente a frase seguinte.

Na segunda quadra, o sujeito poético pretende enfatizar

(A) a sua entrega incondicional, a fim de ser merecedor de admirar a beleza singular dos olhos da Senhora.

(B) o seu descontentamento por ter de pagar o «preço honesto» exigido a quem contempla a Senhora.

(C) o contraste entre o preço a pagar para contemplar a Senhora e a bem-aventurança que alcança.

(D) a ideia de que, ao dar a vida e a alma para ser merecedor da beleza da Senhora, se iguala aos outros.

 

4. Leia a cantiga de amor a seguir transcrita, tendo em vista o estabelecimento de uma comparação com o soneto camoniano “Quem vê, Senhora, claro e manifesto”.

 

A dona que eu am’e tenho por senhor
amostrade-mi-a, Deus, se vos en prazer for1,
     senom dade-mi2 a morte.

A que tenh’eu por lume3 destes olhos meus
e por que choram sempr’, amostrade-mi-a, Deus,
     senom dade-mi a morte.

Essa que vós fezestes melhor parecer
de quantas sei, ai, Deus!, fazede-mi-a veer4,
     senom dade-mi a morte.

Ai Deus! que mi a fezestes mais ca mim amar5,
mostrade-mi-a, u6 possa com ela falar,
     senom dade-mi a morte.

 

Cantigas Medievais Galego-Portuguesas, Vol. I, edição de Graça Videira Lopes, Lisboa, Biblioteca Nacional de Portugal, 2016, pp. 151-152.

 

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1 amostrade-mi-a, Deus, se vos en prazer for – mostrai-ma, Deus, se vos agradar. 
2 dade-mi – dai-me. 
3 lume – luz. 
4 fazede-mi-a veer – fazei-me vê-la. 
5 mi a fezestes mais ca mim amar – fizeste com que eu a amasse mais do que a mim próprio. 
6 u – onde.

 


4.1. Escreva uma breve exposição na qual compare os dois poemas quanto às ideias expressas.

A sua exposição deve incluir:

uma introdução;

um desenvolvimento no qual explicite um aspeto em que os poemas se aproximam e um aspeto em que os poemas se distinguem;

uma conclusão adequada ao desenvolvimento do texto.

 

Explicitação de cenários de resposta

Nota: Nos tópicos de resposta de cada item, as expressões separadas por barras oblíquas à exceção das utilizadas no interior de cada uma das transcrições correspondem a exemplos de formulações possíveis, apresentadas em alternativa. As ideias apresentadas entre parênteses não têm de ser obrigatoriamente mobilizadas para que as respostas sejam consideradas adequadas.

1. Devem ser abordados dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:

- o fascínio pela beleza da Senhora, refletida nos seus olhos, ideia patente em «o lindo ser de vossos olhos belos, / se não perder a vista só em vê-los» (vv. 2 e 3);

- a veneração da Senhora/a submissão à Senhora, evidente na entrega total do sujeito poético («tudo quanto tenho, tudo é vosso» – v. 10);

- a felicidade do sujeito poético que deriva da sua entrega plena/devoção à amada («é tamanha bem-aventurança / o dar-vos quanto tenho e quanto posso» – vv. 12 e 13).

2. Chave de correção: C e E.

3. Chave de correção: A.

4.1. Relativamente a cada aspeto, deve ser abordado um dos tópicos seguintes, ou outro igualmente relevante.

Os poemas aproximam-se, na medida em que:

- ambos os sujeitos poéticos revelam uma profunda devoção pelas suas senhoras, o que se evidencia no facto de o sujeito poético do soneto de Camões descrever a amada como aquela a quem deu «a vida e alma e esperança / e tudo quanto tenho, tudo é vosso» (vv. 9 e 10), enquanto o sujeito poético da cantiga de amor descreve a amada como a luz dos seus olhos (v. 4)/aquela que ama mais do que a si mesmo (v. 10)/aquela a quem serve/presta vassalagem (v. 1);

- ambos os sujeitos poéticos enaltecem as damas por quem estão apaixonados, destacando a sua beleza, o que está patente no facto de o sujeito poético do soneto de Camões descrever a «Senhora» como alguém cujos olhos belos fascinam quem a vê («o lindo ser de vossos olhos belos, / se não perder a vista só em vê-los» – vv. 2 e 3), enquanto o sujeito poético da cantiga de amor descreve a amada como um ser criado por Deus, que a fez a mais bela de todas as mulheres (vv. 7 e 8).

Os poemas distinguem-se, na medida em que:

- no soneto, o sujeito poético exprime comprazimento na entrega total de si à dama, o que se evidencia, por exemplo, nos versos 7 e 8 («dei mais a vida e alma por querê-los, / donde já me não fica mais de resto.») e nos versos 12 e 13 («é tamanha bem-aventurança / o dar-vos quanto tenho e quanto posso»), enquanto, na cantiga de amor, o sujeito poético expressa o seu sofrimento amoroso (coita d’amor), pedindo a Deus que lhe dê a morte, se não puder ver a amada (vv. 2 e 3, 5 e 6, 8 e 9) ou com ela falar (vv. 11 e 12);

- no soneto, o sujeito poético faz referência aos olhos femininos para enfatizar a beleza da «Senhora», como se constata em «Quem vê, Senhora, claro e manifesto / o lindo ser de vossos olhos belos» (vv. 1 e 2), enquanto, na cantiga de amor, o sujeito poético se refere aos seus próprios olhos para evidenciar o seu sofrimento devido à ausência da amada, como se verifica em «destes olhos meus / e por que choram sempr’» (vv. 4 e 5).

 

Fonte: Exame Final Nacional de Português n.º 639 (Versão 1) – Ensino Secundário, 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho | Decreto-Lei n.º 22/2023, de 3 de abril). República Portuguesa – Educação / IAVE– Instituto de Avaliação Educativa, I.P., 2023, 1.ª Fase

 

A outra noite, Rubem Braga


 

A OUTRA NOITE

Outro dia fui a São Paulo e resolvi voltar à noite, uma noite de vento sul e chuva, tanto lá como aqui. Quando vinha para casa de táxi, encontrei um amigo e o trouxe até Copacabana; e contei a ele que lá em cima, além das nuvens, estava um luar lindo, de Lua cheia; e que as nuvens feias que cobriam a cidade eram, vistas de cima, enluaradas, colchões de sonho, alvas, uma paisagem irreal.

Depois que o meu amigo desceu do carro, o chofer aproveitou um sinal fechado para voltar-se para mim:

– O senhor vai desculpar, eu estava aqui a ouvir sua conversa. Mas, tem mesmo luar lá em cima?

Confirmei: sim, acima da nossa noite preta e enlamaçada e torpe havia uma outra - pura, perfeita e linda.

– Mas, que coisa. . .

Ele chegou a pôr a cabeça fora do carro para olhar o céu fechado de chuva. Depois continuou guiando mais lentamente. Não sei se sonhava em ser aviador ou pensava em outra coisa.

– Ora, sim senhor. . .

E, quando saltei e paguei a corrida, ele me disse um "boa noite" e um "muito obrigado ao senhor" tão sinceros, tão veementes, como se eu lhe tivesse feito um presente de rei.

 

Rubem Braga, “A outra noite”, PARA gostar de ler: Crônicas. São Paulo, Ática, 1979

 

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Torpe: repugnante  

Veementes: animados




 

MENSAGEM A RUBEM BRAGA

Rio de Janeiro, 1954

 

Os doces montes cônicos de feno
(Decassílabo solto num postal de Rubem Braga, da Itália.)

A meu amigo Rubem Braga
Digam que vou, que vamos bem: só não tenho é coragem de escrever
Mas digam-lhe. Digam-lhe que é Natal, que os sinos
Estão batendo, e estamos no Cavalão: o Menino vai nascer
Entre as lágrimas do tempo. Digam-lhe que os tempos estão duros
Falta água, falta carne, falta às vezes o ar: há uma angústia
Mas fora isso vai-se vivendo. Digam-lhe que é verão no Rio
E apesar de hoje estar chovendo, amanhã certamente o céu se abrirá de azul
Sobre as meninas de maiô. Digam-lhe que Cachoeiro continua no mapa
E há meninas de maiô, altas e baixas, louras e morochas
E mesmo negras, muito engraçadinhas. Digam-lhe, entretanto
Que a falta de dignidade é considerável, e as perspectivas pobres
Mas sempre há algumas, poucas. Tirante isso, vai tudo bem
No Vermelhinho. Digam-lhe que a menina da caixa
Continua impassível, mas Caloca acha que ela está melhorando
Digam-lhe que o Ceschiatti continua tomando chope, e eu também
Malgrado uma avitaminose B e o fígado ligeiramente inchado.
Digam-lhe que o tédio às vezes é mortal; respira-se com a mais extrema
Dificuldade; bate-se, e ninguém responde. Sem embargo
Digam-lhe que as mulheres continuam passando no alto de seus saltos, e a moda das saias curtas
E das mangas japonesas dão-lhes um novo interesse: ficam muito provocantes.
O diabo é de manhã, quando se sai para o trabalho, dá uma tristeza, a
rotina: para a tarde melhora.
Oh, digam a ele, digam a ele, a meu amigo Rubem Braga
Correspondente de guerra, 250 FEB, atualmente em algum lugar da Itália
Que ainda há auroras apesar de tudo, e o esporro das cigarras
Na claridade matinal. Digam-lhe que o mar no Leblon
Porquanto se encontre eventualmente cocô boiando, devido aos despejos
Continua a lavar todos os males. Digam-lhe, aliás
Que há cocô boiando por aí tudo, mas que em não havendo marola
A gente se aguenta. Digam-lhe que escrevi uma carta terna
Contra os escritores mineiros: ele ia gostar. Digam-lhe
Que outro dia vi Elza-Simpatia-é-quase-Amor. Foi para os Estados Unidos
E riu muito de eu lhe dizer que ela ia fazer falta à paisagem carioca
Seu riso me deu vontade de beber: a tarde
Ficou tensa e luminosa. Digam-lhe que outro dia, na rua Larga
Vi um menino em coma de fome (coma de fome soa esquisito, parece
Que havendo coma não devia haver fome: mas havia).
Mas em compensação estive depois com o Aníbal
Que embora não dê para alimentar ninguém, é um amigo.
Digam-lhe que o Carlos
Drummond tem escrito ótimos poemas, mas eu larguei o Suplemento.
Digam-lhe que está com cara de que vai haver muita miséria-de-fim-de-ano
Há, de um modo geral, uma acentuada tendência para se beber e uma ânsia
Nas pessoas de se estrafegarem. Digam-lhe que o Compadre está na insulina
Mas que a Comadre está linda. Digam-lhe que de quando em vez o Miranda passa
E ri com ar de astúcia. Digam-lhe, oh, não se esqueçam de dizer
A meu amigo Rubem Braga, que comi camarões no Antero
Ovas na Cabaça e vatapá na Furna, e que tomei plenty coquinho
Digam-lhe também que o Werneck prossegue enamorado, está no tempo
De caju e abacaxi, e nas ruas
Já se perfumam os jasmineiros. Digam-lhe que tem havido
Poucos crimes passionais em proporção ao grande número de paixões
À solta. Digam-lhe especialmente
Do azul da tarde carioca, recortado
Entre o Ministério da Educação e a ABI. Não creio que haja igual
Mesmo em Capri. Digam-lhe porém que muito o invejamos
Tati e eu, e as saudades são grandes, e eu seria muito feliz
De poder estar um pouco a seu lado, fardado de segundo sargento. Oh
Digam a meu amigo Rubem Braga
Que às vezes me sinto calhorda mas reajo, tenho tido meus maus momentos
Mas reajo. Digam-lhe que continuo aquele modesto lutador
Porém batata. Que estou perfeitamente esclarecido
E é bem capaz de nos revermos na Europa. Digam-lhe, discretamente,
Que isso seria uma alegria boa demais: que se ele
Não mandar buscar Zorinha e Roberto antes, que certamente
Os levaremos conosco, que quero muito
Vê-lo em Paris, em Roma, em Bucareste. Digam, oh digam
A meu amigo Rubem Braga que é pena estar chovendo aqui
Neste dia tão cheio de memórias. Mas
Que beberemos à sua saúde, e ele há de estar entre nós
O bravo capitão Braga, seguramente o maior cronista do Brasil
Grave em seu gorro de campanha, suas sobrancelhas e seu bigode circunflexos
Terno em seus olhos de pescador de fundo
Feroz em seu focinho de lobo solitário
Delicado em suas mãos e no seu modo de falar ao telefone
E brindaremos à sua figura, à sua poesia única, à sua revolta, e ao seu cavalheirismo
Para que lá, entre as velhas paredes renascentes e os doces montes cônicos de feno
Lá onde a cobra está fumando o seu moderado cigarro brasileiro
Ele seja feliz também, e forte, e se lembre com saudades
Do Rio, de nós todos e ai! de mim.

 

Vinicius de Moraes

https://www.viniciusdemoraes.com.br/pt-br/poesia/poesias-avulsas/mensagem-rubem-braga