Quem vê, Senhora, claro e manifesto1
o lindo ser de vossos olhos belos,
se não perder a vista só em vê-los,
já não paga o que deve a vosso gesto2.
Este me parecia preço honesto;
mas eu, por de vantagem merecê-los,
dei mais a vida e alma por querê-los,
donde já me não fica mais de resto.
Assi que a vida e alma e esperança
e tudo quanto tenho, tudo é vosso,
e o proveito disso eu só o levo.
Porque é tamanha bem-aventurança3
o dar-vos quanto tenho e quanto posso
que, quanto mais vos pago, mais vos devo.
Luís
de Camões, Rimas, edição de A.
J. da Costa Pimpão, Coimbra, Almedina, 1994, p. 125.
_________
1 claro e
manifesto – de forma clara e incontestável.
2 gesto –
rosto.
3 bem-aventurança
–
grande felicidade.
1. Explicite, com
base em dois aspetos significativos, o modo como o sujeito poético reage à
figura feminina evocada no poema. Fundamente a sua resposta com transcrições
pertinentes.
2. Considere as
afirmações seguintes sobre o soneto.
(A) O
sujeito poético dirige-se à Senhora através de uma apóstrofe.
(B) A
expressão «perder a vista» (verso 3) é usada com sentido metafórico.
(C) O
sujeito poético arrepende-se de desejar algo cujo preço elevado o impede de
saldar a dívida.
(D) O
poema ilustra o estilo engenhoso do poeta, nomeadamente no último terceto,
quando recorre à
antítese e ao paralelismo alcançado através do
jogo de palavras.
(E) Entre
a Senhora e o sujeito poético existe uma relação de igualdade.
Identifique as
duas afirmações falsas.
3. Selecione a
opção que completa corretamente a frase seguinte.
Na segunda quadra, o sujeito poético pretende
enfatizar
(A) a
sua entrega incondicional, a fim de ser merecedor de admirar a beleza singular
dos olhos da Senhora.
(B) o
seu descontentamento por ter de pagar o «preço honesto» exigido a quem
contempla a Senhora.
(C) o
contraste entre o preço a pagar para contemplar a Senhora e a bem-aventurança
que alcança.
(D) a
ideia de que, ao dar a vida e a alma para ser merecedor da beleza da Senhora,
se iguala aos outros.
4. Leia
a cantiga de amor a seguir transcrita, tendo em vista o estabelecimento de uma
comparação com o soneto camoniano “Quem vê, Senhora, claro e manifesto”.
A dona que eu
am’e tenho por senhor
amostrade-mi-a, Deus, se vos en prazer for1,
senom dade-mi2 a morte.
A que tenh’eu por lume3 destes olhos meus
e por que choram sempr’, amostrade-mi-a, Deus,
senom dade-mi a morte.
Essa que vós fezestes melhor parecer
de quantas sei, ai, Deus!, fazede-mi-a veer4,
senom dade-mi a morte.
Ai Deus! que mi a fezestes mais ca mim amar5,
mostrade-mi-a, u6 possa com ela falar,
senom dade-mi a morte.
Cantigas
Medievais Galego-Portuguesas, Vol. I, edição de
Graça Videira Lopes, Lisboa, Biblioteca Nacional de Portugal, 2016, pp.
151-152.
___________
1 amostrade-mi-a,
Deus, se vos en prazer for – mostrai-ma, Deus, se vos agradar.
2 dade-mi
–
dai-me.
3 lume – luz.
4 fazede-mi-a
veer – fazei-me vê-la.
5 mi a
fezestes mais ca mim amar – fizeste com que eu a amasse mais do que a mim
próprio.
6 u – onde.
4.1. Escreva uma
breve exposição na qual compare os dois poemas quanto às ideias expressas.
A sua exposição deve incluir:
• uma
introdução;
• um desenvolvimento no qual explicite um aspeto em que os poemas se aproximam e um aspeto em que os poemas se distinguem;
• uma conclusão adequada ao desenvolvimento do texto.
Explicitação
de cenários de resposta
Nota: Nos
tópicos de resposta de cada item, as expressões separadas por barras oblíquas ‒
à
exceção
das utilizadas no interior de cada uma das transcrições ‒
correspondem a exemplos de formulações possíveis, apresentadas em alternativa.
As ideias apresentadas entre parênteses não têm de ser obrigatoriamente
mobilizadas para que as respostas sejam consideradas adequadas.
1. Devem ser abordados dois dos tópicos
seguintes, ou outros igualmente relevantes:
- o fascínio pela beleza da Senhora, refletida nos
seus olhos, ideia patente em «o lindo ser de vossos olhos belos, / se não
perder a vista só em vê-los» (vv. 2 e 3);
- a veneração da Senhora/a submissão à Senhora,
evidente na entrega total do sujeito poético («tudo quanto tenho, tudo é vosso»
– v. 10);
- a felicidade do sujeito
poético que deriva da sua entrega plena/devoção à amada («é tamanha
bem-aventurança / o dar-vos quanto tenho e quanto posso» – vv. 12 e 13).
2.
Chave
de correção: C e E.
3.
Chave
de correção: A.
4.1. Relativamente a cada
aspeto, deve ser abordado um dos tópicos seguintes, ou outro igualmente
relevante.
Os poemas aproximam-se, na medida em que:
- ambos os
sujeitos poéticos revelam uma profunda devoção pelas suas senhoras, o que se
evidencia no facto de o sujeito poético do soneto de Camões descrever a amada
como aquela a quem deu «a vida e alma e esperança / e tudo quanto tenho, tudo é
vosso» (vv. 9 e 10), enquanto o sujeito poético da cantiga de amor descreve a
amada como a luz dos seus olhos (v. 4)/aquela que ama mais do que a si mesmo
(v. 10)/aquela a quem serve/presta vassalagem (v. 1);
- ambos os sujeitos poéticos enaltecem as damas por quem estão
apaixonados, destacando a sua beleza, o que está patente no facto de o sujeito
poético do soneto de Camões descrever a «Senhora» como alguém cujos olhos belos
fascinam quem a vê («o lindo ser de vossos olhos belos, / se não perder a vista
só em vê-los» – vv. 2 e 3), enquanto o sujeito poético da cantiga de amor
descreve a amada como um ser criado por Deus, que a fez a mais bela de todas as
mulheres (vv. 7 e 8).
Os poemas distinguem-se, na medida em que:
- no soneto, o sujeito poético exprime comprazimento na entrega
total de si à dama, o que se evidencia, por exemplo, nos versos 7 e 8 («dei
mais a vida e alma por querê-los, / donde já me não fica mais de resto.») e nos
versos 12 e 13 («é tamanha bem-aventurança / o dar-vos quanto tenho e quanto
posso»), enquanto, na cantiga de amor, o sujeito poético expressa o seu
sofrimento amoroso (coita d’amor), pedindo a Deus que lhe dê a morte, se não
puder ver a amada (vv. 2 e 3, 5 e 6, 8 e 9) ou com ela falar (vv. 11 e 12);
- no soneto, o sujeito poético faz
referência aos olhos femininos para enfatizar a beleza da «Senhora», como se
constata em «Quem vê, Senhora, claro e manifesto / o lindo ser de vossos olhos
belos» (vv. 1 e 2), enquanto, na cantiga de amor, o sujeito poético se refere
aos seus próprios olhos para evidenciar o seu sofrimento devido à ausência da
amada, como se verifica em «destes olhos meus / e por que choram sempr’» (vv. 4
e 5).
Fonte: Exame Final Nacional de Português n.º 639 (Versão 1) – Ensino
Secundário, 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho |
Decreto-Lei n.º 22/2023, de 3 de abril). República Portuguesa – Educação / IAVE– Instituto de Avaliação Educativa, I.P., 2023, 1.ª Fase
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