quinta-feira, 21 de agosto de 2008

António Franco Alexandre lido por Óscar Lopes



    

POEMA INICIAL DE VISITAÇÃO
  
suponha que desprende desaprende
que só de si depende separar-se
em esse início a boca desatenta
em mudo ouvido
suponha que me inventa
  
o liminar deserto desenhando
num princípio de breves acidentes
suponham que conheço a sua terra
o aroma irrespirável dos teares
o azeite da ira e
suponham que os invento
  
suponha que nasci no mississipi
aprendi a falar no vão do vento
os lábios dos navios já não entendem
o amor às idades muito
lentas
suponho que o invento
  
suponha que o início não começa
suponha que o princípio não limita
as palavras são duros tornozelos
o sol ruiu nos vidros deslavados
quase ninguém ou nada
o mergulho da tarde inventa.
  
eu simplesmente ardi fui o retrato
das suas mãos que tecem pesadelos
na margem que deixaram
as migrações do vento
  
o meu país tem dormições abertas
o público dos seus
doces tormentos
eu simplesmente ouvi a luz dos ventos
  
António Franco Alexandre, Gota de Água, 1983.
  
  
   


Óscar Lopes (in Cifras do Tempo, Ed. Caminho, 1990) aponta sete graus, não de exata sucessão, mas de faseamento numa leitura deste poema:
  
  1. fruição de lúdicas recorrências de rimas internas ou finais, ressonâncias, assonâncias (desaprende, inventa), paranomásias (desprende, desaprende), aliterações (que só de si depende separar-se), de estribilhos modulados (supunha, supunham, suponho), etc.;  
  2. observação de imagens ou metáforas surpreendentes (o mundo ouvido, o azeite da ira, vão do vento, lábios dos navios, palavras-tornozelos, dormições abertas, etc.)
  3. saliência de incidências aleatórias: nasci no mississipi; amor às idades muito / lentas; ardi fui o retrato; o sol ruiu nos vidros deslavados; luz dos ventos; etc.  
  4. percepção de modulações básicas nos verbos supor inventar, frequentemente excitando o principal nervo do poema: a injunção/constatação de supor e ser suposto, de inventar e ser inventado, se supor que se inventa (por que não também inventar que se supõe?), ora na activa ora na passiva, com oscilação quanto a haver ou não alocutário;
  5. sugestão pervasiva de desprendimento pensante ou imaginante quanto a ser emissor, destinatário, meio ou mensagem do poema, quanto ao início ou duração, limitação ou ilimitação, presente ou pretérito, acção (só de si depende) ou passividade;
  6. globalmente, pouco mais pode compreender-se do que isto: um poema que sugere a perfeita gratuidade do dizer poético (boca atenta / em mudo ouvido; quase ninguém ou nada / o mergulho da tarde nos inventa; dormições abertas); um país onde quase ninguém diz e nada é dito, ou ouvido, ou percebido, mas esse quaseninguém ou nada está na base de uma asserção eventualmente personificável ou apreensível; há evidentes sugestões de uma fase do dia: o mergulho da tarde;
  7. impressão provisoriamente final: uma poesia do subliminar, mas de um subliminar que todavia acede à palavra, como configuração semi-inteligível e todavia flagrante.


Poderá também gostar de:

  «Entrevista: António Franco Alexandre. ‘Sou certamente um grande especialista em sublimação, hélas’», Inimigo Rumor, n.º 11, Rio de Janeiro, 7Letras, 2001, pp. 46-52. Entrev.: Américo António Lindeza Diogo e Pedro Serra.



Entrevista conduzida por Raquel Santos a António Franco Alexandre, poeta e docente de Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

  • Nome do Programa: António Franco Alexandre
  • Nome da série: Entre Nós
  • Locais: Portugal
  • Canal: RTP Int
  • Data: 2006-05-02
  • URL: https://arquivos.rtp.pt/conteudos/antonio-franco-alexandre/#sthash.XDP1zUJu.wZgMPtV8.dpbs

Resumo Analítico

Início da conversa com referência ao percurso académico do entrevistado; Relações entre a Poesia, a Filosofia e a Matemática; Relato das experiências como docente universitário; Temáticas da sua poesia e opinião sobre a auto-crítica dos escritores; processos criativos; Destaque para o livro de poesia Aracne do qual diz um poema em conjunto com Raquel Santos que lê a última parte desse poema; Destaque para o seu livro de poesia intitulado Poemas; Análise da sua poesia e do seu modo de escrever.  




“António Franco Alexandre lido por Óscar Lopes” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 21-08-2008. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2008/08/antonio-franco-alexandre-lido-por-oscar.html (2.ª edição). (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2008/08/21/AntonioFrancoAlexandre.aspx)


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