MÃE ILHALimão aceso na meia-noite ilhada,O relógio na torre da MatrizPõe o ponteiro na hora atraiçoadaDa ilha que me deram e eu não quis.Mas, ó de alvos umbrais Ponta Delgada!Meu prefixo de pastos, a raizÉ de calhau e de onda encabritada:Um triz de hortênsia e estala-me o verniz.Atamancada em fama a tosca ilhoa,Só na praça e no prelo é de Lisboa,Seu gesto, cãibra de garça interrompida.No mais, osso campesino e duroÉ fervor, é fogo e fé que juroAo lume e às flores da Graça recebida.
Natália Correia (1923-1993), Sonetos românticos,
Lisboa, Edições O Jornal, 1990.
Natália Correia (1923-1993), poeta, escritora, natural da ilha de S. Miguel residiu em Lisboa onde faleceu.
TÓPICOS DE ANÁLISE
- Segundo a concepção de Natália Correia, esta composição poética é um “Soneto Romântico”.
- O conceito nataliano de “Mátria”.
- “ilhoa” e “Lisboa” opõem-se e atraem-se.
- O sujeito poético, por contiguidade ou proximidade, espelha ambos os espaços (“ilhoa” e “Lisboa”).
- A conjunção adversativa “Mas” (verso 5) marca uma dualidade do sujeito poético entre oquerer (1ª estrofe) e o ser (2ª, 3ª e 4ª estrofes), pelo que a escrita do poema corresponde a uma autoconsciencialização, aceitação e superação desta dualidade interior.
- A “Graça” (verso 14) corresponde a uma força superior (pagã/cristã?) de que o sujeito poético foi, ao longo da vida, receptáculo passivo.
José Carreiro
TEXTOS DE APOIO
Logo ao começar, lê-se em epígrafe “Visando a unidade,/ o soneto é o ouro/ da culminação da Obra Poética.”
O soneto, forma que já muito dissera a Florbela Espanca, Antero de Quental, Camões ou Bocage, é o assunto central do primeiro capítulo deste livro. Quatro sonetos sobre sonetos, “Ars Aurifera”. Interessante será citar precisamente o início “Do soneto que sémen e ovo inclui”, ou seja, o soneto é aqui chave por representar o uníssono do masculino e do feminino, esse “Misterioso nó que em sacra escrita/Cismos e abismos une.”
A outra parte do título diz respeito ao “romântico”. À vista desarmada poder-se-ia pensar que se trata de um livro de sonetos de amor. Mas a palavra “românticos” assume aqui um outro significado, englobando também este primeiro: a apropriação de uma linguagem mais ligada à poesia romântica de Garrett, por exemplo. E, ainda que continuemos a sentir um forte eco do surrealismo e até de um certo simbolismo, aqui, a linguagem é realmente outra, mais interior, menos imagética, mais psíquica. Não é uma característica que se aplique a todos os poemas, mas à maior parte.
[…]
Mas, sendo este um espírito de reflexão e de derradeira retrospectiva, não é de estranhar que o terceiro capítulo, “Mãe Ilha” vá resgatar as figuras marcantes não na obra poética de Natália, mas em toda a sua obra, precisamente a Mãe e a Ilha. Há que não esquecer que Natália era açoreana de origem e que foi criada pela mãe, pianista, uma vez o seu pai teria fugido para o Brasil. Aliás, o quarto soneto tem como subtítulo “sempre que ouço piano”, referência inequívoca á figura da Mãe: um e outro são indissociáveis nas obras de Natália.
*
Raízes geográficas e regionalistas, bem como uma recuperação dos valores do passado, são marcas distintivas de "Mãe Ilha" (p. 23), transfiguração simbólica de um telurismo insular.
Composta esta parte por cinco sonetos, evoca o pentágono em que se inscreve o homem, o sexo ao centro, assegurando a continuidade e também o términus de uma evolução biológica e espiritual de harmonia e de equilíbrio.
Uma onda de magia, um certo secretismo envolve esta "Mãe Ilha"; aqui convoca sentimentos simultaneamente carnais e espirituais, num jogo de ocultação e desvendamento indelevelmente perceptível; da carne se intui o espírito; da dimensão insular se intui a universal. De uma comunhão panteísta se depreende a por demais conhecida imagem da "Mátria", da ilha, confessa Natália, "que me deram e eu não quis" (p. 23). Mas esta rejeição, enforma, acima de tudo, o eterno retorno, porto de abrigo para onde convergem todas as forças centrípetas e de onde divergem as centrífugas que levam a autora a afirmar: "Ó mãe completa da manhã ao ocaso, / Pastora dos meus sonhos, minha haste." (p. 24). Exausta e ferida, nela encontra o abrigo "de mãe esperando". "Ilha de fadas", onde "Reinava o Amor e não havia Rei." (p. 25). Ilha "da infância oclusa", onde a música do piano impunha a plenitude e a harmonia com a vida cósmica, tornando-se mediadora do divino, em busca da perfeição.
“Entre Eros e Thanatos (em torno de Sonetos Românticos de Natália Correia)”, Isabel Vaz Ponce de Leão in Natália Correia 10 anos depois, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2003, p. 63 http://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/7039/3/nobracompletanatalia000119637.pdf
SUGESTÕES DE LEITURA
► SIGNO INSULADO
o sofrimento está dentro da ilha
o sofrimento é da ilha
a ilha está no fundo dum poço
no fundo dum poço sofre uma ilha
o sofrimento é da ilha
a ilha está no fundo dum poço
no fundo dum poço sofre uma ilha
o sofrimento está dentro do poço
o sofrimento é do poço
o poço está no fundo da ilha
no fundo da ilha sofre um poço
o sofrimento é do poço
o poço está no fundo da ilha
no fundo da ilha sofre um poço
o poço secou no fundo da ilha
o sofrimento é a secura da ilha
a secura está no fundo dum poço
no fundo dum poço secou uma ilha
o sofrimento é a secura da ilha
a secura está no fundo dum poço
no fundo dum poço secou uma ilha
o mar está todo por fora da ilha
o mar é quanto não cabe na ilha
o mar é quanto não cabe no poço
no fundo do mar morreu uma ilha
o mar é quanto não cabe na ilha
o mar é quanto não cabe no poço
no fundo do mar morreu uma ilha
enlouquecer é morrer numa ilha
na ilha morta no fundo do mar
no poço secura por dentro da ilha
no fundo do poço correcto lugar
na ilha morta no fundo do mar
no poço secura por dentro da ilha
no fundo do poço correcto lugar
José Martins Garcia (1941-2003), Invocação a um poeta e outros poemas
Angra do Heroísmo, Col. Gaivota, 1984
José Martins Garcia nasceu na Criação Velha, Ilha do Pico, a 17 de Fevereiro de 1941. Professor, ensaísta, escritor e poeta. Faleceu em Ponta Delgada, em 2003.
Inquietação insular e figuração satírica em José Martins Garcia,
Urbano Bettencourt.
Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 2013.
► Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise
literária de textos de Natália Correia, por José Carreiro. In: Lusofonia
– plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo. Disponível
em: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/Natalia_Correia
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2010/05/13/ilha.aspx]
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