AEROPORTO
É o fatídico mês de Março, estou
no piso superior a contemplar o vazio.
Kok Nam, o fotógrafo, baixa a Nikon
e olha-me, obliquamente, nos olhos:
Não voltas mais? Digo-lhe só que não.
Não voltarei, mas ficarei sempre,
algures em pequenos sinais ilegíveis,
a salvo de todas as futurologias indiscretas,
preservado apenas na exclusividade da memória
privada. Não quero lembrar-me de nada,
só me importa esquecer e esquecer
o impossível de esquecer. Nunca
se esquece, tudo se lembra ocultamente.
Desmantela-se a estátua do Almirante,
peça a peça, o quilómetro cem durando
orgulhoso no cimo da palmeira esquiva.
Desmembrado, o Almirante dorme no museu,
o sono do bronze na morte obscura das estátuas
inúteis. Desmantelado, eu sobreviverei
apenas no precário registo das palavras.
Rui Knopfli, O Monhé das Cobras, 1997
SOBRE O POEMA DO RUI PARA O KOK
DUAS PÁTRIAS E NENHUMA
1. O êxodo português de Moçambique iniciou-se em 1959.O ano anterior fora fatal, se olharmos bem: a candidatura de Humberto Delgado avança, enquanto Craveiro Lopes era afastado e substituído por Américo Thomaz.É o ano da célebre carta do bispo do Porto a Salazar e o início do seu exílio, que iria até 1970.Em Agosto, o II Plano do Fomento, destinado ao quinquénio de 1959 a 1964, acentuava a necessidade de preservar o espaço nacional, compreendendo a Metrópole e as Colónias, e, a18 de dezembro falha um golpe (cuja figura inspiradora é, ainda Humberto Delgado) destinado a derrubar o regime. Era o trigésimo aniversário de Salazar como timoneiro lusitano. Logo no início o novo ano, milhares de portugueses pedem-lhe que se demita. Mas o Estado tem outras preocupações: processar judicialmente Aquilino Ribeiro, por exemplo, pela publicação de Quando os Lobos Uivam. O massacre de Pidjiguiti, em Bissau, configura o que seria a guerra aberta que chegava de Angola, onde a UPA e MPLA se organizavam. E o Cristo-Rei era inaugurado, à vista de Lisboa (o bispo o Porto tinha iniciado o seu longo exílio no ano anterior, e prolongá-lo-ia até 1970), na mesma altura em que Fidel se torna líder absoluto de Cuba e De Gaulle regressa ao poder em França.
Mas era, antes disso, perdoem-me, o ano de Aparição de Vergílio Ferreira, de A Cidade das Flores, de Augusto Abelaira, de Léah e Outras Histórias, de José Rodrigues Miguéis, de Nobilíssima Visão, de Mário Cesariny, de O Verbo e a Morte, de Nemésio, deThe Mansion, William Faulkner, de Advertisement for Myself, de Maller, desses dois magníficos filmes O Nosso Homem em Havana, de Carol Reed, e de La Dolce Vita, de Fellini. Em Portugal liam-se ainda Fidelidade, de Jorge de Sena, e O Amor em Visita, de Herberto Helder, publicados no ano anterior, e liam-se Gaivotas em Terra, de David Mourão-Ferreira, ou os Ensaios de Domingo, de Mário Sacramento. E era o início do êxodo português de Moçambique ‑ porque esse foi o ano de Rui Knopfli e de o País dos Outros, um livro publicado nesse longínquo ano de 1959, em Lourenço Marques.
Por vários motivos, a opção por esse título marca o êxodo português de Moçambique e o reconhecimento da ocupação de um território que viria a ser chão sagrado para alguma da melhor poesia em língua portuguesa, independentemente do passaporte que os seus autores utilizem. As letras moçambicanas merecem esse reconhecimento — de Rui Knopfli a José Craveirirtha, de Alberto de Lacerda a João Pedro Grabato Dias, de Noémia de Sousa às canções tocadas à viola por Daíco (esse magnífico músico que está na memória da geração dos maiores escritores moçambicanos) ou, mais tarde, aos poemas de Luís Carlos Patraquim.
Se em todos eles está presente a doçura ou a amargura de uma pátria, a verdade é que em nenhum deles, poetas ou ficcionistas (como Honwana, como Mia Couto), é tão evidente a sua ausência — por motivos alheios. Uma ausência decretada por terceiros mas dramaticamente vivida em cada um dos versos que, no caso de Rui Knopfli, transmitiam esse vírus da extraterritorialidade e do transplante. De O País dos Outros, de 1959, até 1972, ano em que Rui Knopfli publica a segunda edição de Mangas Verdes com Sal e esse livro emblemático que é A Ilha de Próspero, o sentimento nunca adormece — toma-se uma suspeita incessante: a de abandono previsto, a de uma despedida que anteciparia o exílio real que viveria depois de 1975, quando abandona Moçambique e a então Lourenço Marques para mais tarde se instalar em Londres, de onde agora regressa. É a partir dessa data que fazem sentido — que provocam sentido no leitor — os sinais anteriores dessa nostalgia vivida antes de tempo. Antes, a exegese atribuiria um carácter descritivo aos belos poemas de A Ilha de Próspero, o luminoso conjunto de poemas que elege a Ilha de Moçambique, Muípti, como capital de uma cultura e de um trânsito abençoado pelo Índico, rente à mais azul luz do mar, praça onde se vão estabelecendo religiões, comércios e paixões que sobreviveram aos anos mais cruéis do Império e — hoje — do esquecimento.
Mas nessa altura a Ilha é ainda a imagem de um paraíso que o poeta recolhe para o seu dicionário particular. Neste século, e provavelmente em todos os séculos de «presença portuguesa» além-mar, como era costume dizer-se — e não vem mal algum que se diga —, nenhum poeta filtrou para os seus versos essa respiração de plenitude e de multiplicidade do mundo conhecido pela língua portuguesa, com o tom de serenidade e, simultaneamente, de nostalgia que só o conhecimento da História possibilitava: «Não vem sequer// da tua voz a opressão que cerra/ as almas de quantos de ti/ se acercam. Não demonstras.// não afirmas, não impões./ Elusiva e discretamente altiva// fala por ti apenas o tempo.»
Se o destino pessoal de Rui Knopfli o afastou de Moçambique e das suas cidades (Lourenço Marques, Inhambane — onde nasceu —, Ilha de Moçambique), a sua biografia está ligada para sempre a esse território. E não só a essa referência, que está longe de ser apenas literária, mas a esses aromas, e a uma memória até hoje fragmentária e que em O Monhé das Cobras adquire um retrato de conjunto, imperfeito naquilo que a recordação transporta, intenso e inapagável porque são, em certa medida, as primeiras imagens de infância e adolescência que aqui regressam para justificar aquilo que é central em toda a obra de Rui Knopfli: a extraterritorialidade, o não pertencer a uma pátria, a colisão obrigatória e inevitável com uma linguagem pura, retificada, censurada. Moçambique é a dor e o deleite transportado nessa bagagem de exilado. Exilado por dentro e por fora.
Eugénio Lisboa, um dos melhores e mais atentos críticos do nosso tempo, sintetizou admiravelmente esse dilema. «Africano e profundamente europeu — mas um europeu cultural e não geográfico, Moçambique fora sempre o lugar onde, e a Europa o horizonte espiritual a integrar. Viver a Europa em África, para tantos de nós, a fórmula encontrada e a mais viável.»1 Mas Knopfli sempre desconfiou. Os poemas deMangas Verdes com Sal acentuam essa desconfiança e passam a premonição. Knopfli escreve muitas vezes sobre essa inevitabilidade («um tempo de lanças nuas/ espera por nós») que a peripécia político-militar que ditou o seu expatriamento, em 1975, veio confirmar.
2. Alguma coisa de pessoal caberá nesta homenagem a Rui Knopfli e à sua poesia. Sendo necessário explicar que Knopfli foi, à distância, o meu guia de Moçambique, e que os seus livros foram meus quando visitei África, é preciso dizer, também, que a sua poesia criou um território e uma geografia próprios, uma orografia sentimental e afetuosa que tem na Ilha de Moçambique um epicentro que convém conhecer, e na sua trajetória literária moçambicana ( com os cadernos Caliban — onde publicavam João Pedro Grabato Dias, Ramos Rosa, Herberto, Sena, Assis Pacheco, Sebastião Alba ou Craveirinha, por exemplo —, com os suplementos literários que coordenou).
Eduardo Pitta assinalava, a propósito, que, com A Ilha de Próspero (que merece nova e cuidadíssima edição, respeitando a qualidade do material fotográfico originalmente produzido pelo poeta) e a segunda edição de Mangas Verdes com Sal, o «apertado crivo da cultura “ocidental”, vai, a partir dos anos setenta, moldar a sua escrita». Mas esse molde não retira aos seus versos o sabor de uma enternecida desordem musical nem deixam de desencadear neles o combate, umas vezes tempestuoso, outras vezes apenas inevitável e consentido, entre as duas tradições culturais de que Knopfli é intérprete, evitando o excesso, a contaminação fácil, a comodidade do uso da língua.
O Monhé das Cobras é, por isso mesmo, o livro que vem habitar um silêncio, assinalar o que perdura no meio da tempestade e do abandono. O seu universo é o da recordação dessa espécie de paraíso minado pela suspeita, ora oferecendo saborosíssimas narrativas ora recuperando a voz pressagiadora, sabendo que «o futuro é um jogo de acasos, nele uns se salvam, outros se perdem». A própria recuperação da figura real e mítica do Monhé das Cobras, poisado entretenimento do antigo Jardim Vasco da Gama, no centro da capital moçambicana, se ajusta a esse universo que se revisita em busca da felicidade. Porque a felicidade está onde as coisas aconteceram pela primeira vez, algum dia, nesse quadro vivo das manhãs de praia da Polana, dasmatinées do Cinema Scala, dos caminhos que vêm da Mafalala e de Xipamanine, das cantilenas escutadas nas noites de subúrbio africano, dos amores recordados e logo vencidos, no enumerar das teias que nos prendem a uma terra e a uma lealdade. Retrato de nostalgia? Mas não só: fresco de toda a memória, entre a ironia e a maldição, percorrendo as emoções mais invisíveis e as mais feridas, como nesse poema «Aeroporto», rescendendo a despedida, diante de Kok Nam, o fotógrafo de Lourenço Marques e de Maputo: «Não voltarei, mas ficarei sempre,/ algures em pequenos sinais ilegíveis,/ a salvo de todas as futurologias indiscretas,/ preservado apenas na exclusividade da memória/ privada. Não quero lembrar-me de nada,// só me importa esquecer e esquecer/ o impossível de esquecer. Nunca/ se esquece, tudo se lembra ocultamente. […] Desmantelado, eu/ sobreviverei apenas no efémero bronze das palavras.»
O resto é indizível e imperdoável. Entre a ironia e a maldição, nesse lugar onde se aceita o destino e se confirmam, ou não, os presságios («Tínhamo-lo quiçá, pressentido./ Nunca de forma tão súbita e brutal.») que, ainda assim, fazem da memória uma forma de sobrevivência («ainda resiste, na memória, uma cidade») e da encenação do passado uma forma digna de juntar ao nosso convívio, eleitos que fomos para comungar destes versos. Com eles nos acrescentamos, juntando-nos ao olhar «cinzento, disforme mas obstinado» que Knopfli descreve como o derradeiro guardião/ da memória». Nada mais justificado do que falar-se de memória, justamente; e é ela o magro espólio do poeta.
Francisco José Viegas, Junho de 1997
“Duas pátrias e nenhuma”, prefácio a O Monhé das Cobras
Lisboa, Editorial Caminho, 1997
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(1) Eugénio Lisboa, «Os Eldorados», Ler, nº 34, pp. 66-67. Prefácio à edição de Le Pays des Autres (Orfeu, Bruxelas), que colige, com tradução de Marie Claire Vromans, os três primeiros livros de Knopfli: O País dos Outros, Reino Submarino e Máquina de Areia.
A PRATA DAS IMAGENS
Há muita lenda à roda de todas as pessoas, disse um dia, numa entrevista, David Mourão-Ferreira. É verdade. Talvez tenha sido por isso que o João Francisco Vilhena me pediu que lhe falasse do Rui Knopfli, de quem ia fazer um portefólio. O Vilhena é um excelente fotógrafo, e conhecia os versos do Rui, mas queria saber como era o homem. O que é que eu lhe podia dizer? Olha João, o Rui é uma espécie de agente duplo (britânico, naturalmente). Ele ficou desconcertado, mas fiz-lhe ver que era um elogio. Não obstante o sarcasmo, o «sorriso duro, maxilar,/ ou a catadura agreste de ver cinzento», tem «um coração grande e sensível». Eu diria que o Rui é um personagem perdido algures entre as páginas de Anthony Burgess ou John Le Carré. Vejo-o sempre assim.
Uma tarde o telefone tiniu na fortaleza, era ele do outro lado do fio, tinha acabado de chegar à ilha de Moçambique, e queria jantar comigo. Foi uma noite memorável, é quase sempre assim quando o Rui está para ali virado. A guerra tão perto, e nós dois entretidos com o Borges, a má-língua literária, os solavancos da administração colonial. Alguns meses depois eu estava de regresso a casa e via o Rui quase todos os dias. Era exatamente assim: «Meu verso cínico é minha terapêutica/ e minha ginástica. Nele me penduro/ e ergo, em sua precisão de barra fixa./ Nele me exercito em pino flexível,/ sílaba a sílaba, movimento controlado/ de pulso, e me volteio aparatoso/ na pirueta lograda, no lance bem ritmado». Vendo bem, damos por ele quase sempre ao arrepio das maiorias dominantes: "Cago na juventude e na contestação/ e também me cago em Jean-Luc Godard./ Minha alma é um gabinete secreto/ e murado à prova de som/ e de Mao-Tsé-Tung. Pelas paredes/ nem uma só gravura de Lichtenstein / ou Warhol». Intransigente na escolha dos livros, das gravatas e dos whiskies? não necessariame nte por esta ordem?, cozinheiro e gourmet, com «o olhinho malandro, concuspicente/ e plurirracial, lesto na mirada ao seio/ entrevisto, à nesga de perna, à fímbria de nádega». Diplomata bissexto, durante os últimos vinte e dois anos, no nº 11 de Belgrave Square, recebia com generosidade na casa de Lennox Gardens (Knightsbridge), como, mais tarde, na de South Kensington. Londres era uma cidade à sua medida. Abastecia-se em Beauchamp Place, passeava o Ben pelos parques, e, aos amigos de passagem, recomendava com critério os restaurantes? The Ivy, Bibendum, Clarke's, Zen Central, Quaglino's, Kastoori, La Tante Claire, etc. Eram sugestões capazes de transfigurar qualquer viagem.
Falava muito de Moçambique, as recordações deixavam-no como aqueles «meninos, paralisados de medo/ e espanto», de que nos fala no último livro, O Monhé das Cobras (1997), que teremos oportunidade de comentar.
Agora voltou para perto dos seus. Em Miraflores a hospitalidade mantém-se. É ali que divide obsessões comuns: a querela da poesia, o afeto dos cães, o travo do Black Bush, a língua acerada: «Não te arrependas de nada./ Não torças o verso, não obrigues/ a palavra: um poeta está // sempre certo. Não permitas que o óxido dos políticos entre na lâmina/ dos teus versos. Um poeta não se vende,/ não se compra, não se emenda.// A um poeta corta-se-lhe/ a cabeça. E uma cabeça/ cortada não dói, mas tem/ uma importância danada». A alma ficou algures, inscrita «em pequenos sinais ilegíveis.» Tendo, como poucos, intuído o fragor da borrasca imperial, avisou: «Um tempo de lanças nuas/ espera por nós, riso/ cruel de maxilas em riste./ Entanto a vida desabrocha/ tenra e tépida,/ fruto e flor na ânsia secular/ de quem tanto esperou em vão./ Para nós, todavia,/ o tempo é de lanças impiedosas,/ de lâminas em cujabrancura/ se adivinha já um indício/ do nosso sangue [...] Falamo-nos/ e nas palavras mais comuns/ há rituais de despedida. Falamos/ e as palavras que dizemos/ dizem adeus.» É sempre difícil falar dos amigos com uma distância justa. Neste caso, o talento do João Francisco Vilhena conseguiu suprimir todas as lacunas.
Como num passe de mágica, o Rui desapareceu no dia de Natal. E fez-nos ir a todos a Vila Viçosa, «onde tudo terá começado». A tarde estava fria, vinha de Espanha um vento fino, e nada perturbava o «silêncio solar e vertical» daquele magro retângulo de terra. Agora, infelizmente, acabou tudo: palavras e imagens.
Eduardo Pitta, “A Prata das Imagens” in LER. Livros & Leitores nº 40. Outono/Inverno 1997/1998.
Texto que acompanha as fotografias de João Francisco Vilhena: “Rui Knopfli. Um poeta não se emenda.”
O REGRESSO DO CAMBACO
O Monhé das Cobras põe fim a um silêncio de treze anos. Tanto bastou para que o regresso do velho elefante solitário viesse baralhar algumas certezas instaladas. Num poema emblemático, Rui Knopfli diz: «aprendi // apenas a ser o derradeiro guardião / da memória no escalracho da mata.» É nessa qualidade de «avaro zelador deste magro espólio», que o poeta, uma vez mais, e de novo com inexcedível maestria, nos dá conta da sua «preocupação com a problemática do tempo e do desengano, a discórdia do mundo, a vida e a morte», fazendo nossa a síntese de Luís de Sousa Rebelo.
Nunca como agora a memória teve um peso tão decisivo. Dir-se-ia um ajuste de contas com as inquietações da juventude, os anos de brasa, o passo trocado com a História, o chão de nunca mais, o exílio. Tudo é passado. E o obstinado cambaco sabe, como poucos, guardar «incólume na dura memória/ o que haveria a preservar contra a efeméride/ das rápidas bestas que cruzam a salto,/ no salto gracioso do antílope, a savana// escarolada». Moçambique ficou imobilizado na distância, mas Rui Knopfli consegue recuperar desse mítico não-lugar o «trajecto sangrento das acácias […] por tardes de longa canícula». Talvez por essa razão, Francisco José Viegas, autor do prefácio, faça notar que «O Monhé das Cobras é, por isso mesmo, o livro que vem habitar um silêncio, assinalar o que perdura no meio da tempestade e do abandono». Não se trata de um roteiro sentimental. Este livro é um testamento.
Rui Knopfli nasceu em lnhambane, a 10 de Agosto de 1932, mas, pouco depois, a família transferiu-se para Lourenço Marques. Era um adolescente de dezassete anos quando começou a colaborar no Itinerário, mensário de oposição ao regime colonial. Tudo começou com «Sumina», uma ingénua short story. Há, por esses tempos, um curto intervalo português para os lados de Coimbra. E, no início dos sixties, o tirocínio sul-africano em Johannesburg (três anos de rebeldia with cause no bairro boémio de Hillbrow). Os anos passam. Delegado de propaganda médica, esquadrinha Moçambique. Premonitório, o título do primeiro livro ‑ O País dos Outros, 1959 – sinaliza a diferença. António Ramos Rosa, na Seara Nova, fala de agressividade corrosiva, sarcasmo e rudeza viril. Depois, durante quinze anos, sempre na primeira linha da intervenção cultural: crítica literária e de cinema, polémica, atividade cineclubista, edição de suplementos literários em jornais e revistas, tradução (Auden, Blake, Char, Dylan Thomas, Eliot, Kavafis, Pound, Robert Lowel, etc.), mais quatro livros, a aventura dos cadernos Caliban (até ao dia em que a PIDE mandou guilhotinar o nº 5), homem a abater durante o pronunciamento «branco» do 7 de Setembro, os trabalhos da comissão de descolonização (integrou, como adido de imprensa, a delegação portuguesa à assembleia-geral das Nações Unidas, em 1974), a direção de um vespertino heterodoxo ‑ A Tribuna ‑, ao arrepio das «orientações» do alto-comissário português e da sensibilidade criptomaoísta do governo de transição. O affaireMacintosh, em Fevereiro de 1975, foi a gota de água. Rui Knopfli partiu logo a seguir: «É o fatídico mês de Março, estou/ no piso superior a contemplar o vazio./ Kok Nam, o fotógrafo, baixa a Nikon/ e olha-me, obliquamente, nos olhos:/ Não voltas mais? Digo-Ihe só que não». Cumpriu a promessa. (Em 1989, Cavaco entalou-o entre Eusébio e Coluna e levou-os como troféus de caça na sua entourage.) Porém, ficou para sempre «em pequenos sinais elegíveis». A partir daí ia fazer parte da diáspora dos moçambicanos, ao lado de alguns companheiros de geração, como o pianista Sequeira Costa, o cineasta Ruy Guerra, os poetas Alberto de Lacerda e Helder Macedo, os irmãos Gil (Fernando e José, filósofos), o fotógrafo Pepe Diniz, o arquiteto «Pancho» Miranda Guedes, o jornalista Guilherme de Melo, entre outros. O destino seguinte seria Londres, como conselheiro de imprensa na embaixada de Portugal. Foi lá que viveu nos últimos vinte e dois anos: «Ao anoitecer regresso a casa, dobram/ os sinos do London Oratory […] lembrando que a morte/ se vai inscrevendo nos rostos, de forma / cada vez mais nítida […] Diga-se// ainda que não tenho passado nada bem. Subo/ a escada e ao topo do último lance,/ na pausa resfolegante, ocorre-me/ que, no seu microcosmos, o Newsagent,/ qual peça de precisa relojoaria (no meio// do quadrante o sorriso intemporal de Mr. Shah),/ é registo implacável da passagem do tempo./ De jornal na mão, o copo ao lado,/ aguardarei que cansaço e sono me vençam,/ protelando a vinda do fogo purificador.»
Sobre O Monhé das Cobras, disse o autor que o livro foi escrito em discurso direto, num registo muito próximo da fala, e que a sua construção é dramática, no sentido teatral: três atos e um epílogo. Esse epílogo corresponde aos dois últimos poemas do livro e obedece ao illodelo da Tempest: «... quebrada a vara mágica, exorcismam-se sortilégios e fantasmas, tudo regressa ao silêncio» (cf. Shakespeare). Ao silêncio e a uma decantada mordacidade: «Vão repondo a tragédia, ano após ano/ e eu, obstinadamente, a perseguir/ o papel que persisto ali me competia/ para além de espectador passivo.// Rosencrantz? Guildenstern? A nem tanto/ ambicionaria […] Agora, angustiado, começo/ a entender porque não fora chamado antes./ Estava-me reservada a derradeira, irrecusável/ apoteose: serei Yorick, o jogral amigo». A figura do monhé das cobras abre e fecha o volume. Os «meninos, paralisados de medo/ e espanto», recordam o dia em que, «cumprido o papel exacto que lhe coube e executou com paciente sageza hindu», o viram enrolar a esteira: «Dura um instante no trémulo contraluz// do lume a que se acolhe, antes da sombral derradeira». Os trinta e três poemas do livro constituem, afinal, como diz o autor do prefácio, um «retrato de conjunto, imperfeito naquilo que a recordação transporta, intenso e inapagável porque são, em certa medida, as primeiras imagens de infância e adolescência que aqui regressam para justificar aquilo que é centraI em toda a obra de Rui Knopfli: a extraterritorialidade». Essa especial circunstância, isso de ter duas pátrias e nenhuma, tem servido de álibi a alguns sectores da crítica portuguesa. Nada mais extravagante, sobretudo desde que (isto é, nos últimos vinte anos) o chamado discurso do quotidiano tem sido enfaticamente sobrevalorizado. Afinal, o autor de Mangas Verdes com Sal(1969) encontra-se entre os que, em português, primeiro deram voz a essa tradição. Não é de admirar. Leitor e admirador confesso de Eliot, William Carlos Williams, Drummond e Robert Lowell (para só citar alguns autores fétiche), Knopfli antecipou aquilo a que Joaquim Manuel Magalhães chamou «progressivo afastamento da noção de […] o poema ter de valer como espaço conceptual» (cf. Os Dois Crepúsculos, 1981).
Vejamos: entre o primeiro e o segundo livro, ou seja, entre O Pais dos Outros (1959) e Reino Submarino (1962), título elipticamente sibilino, aparecem dois movimentos catalisadores da opinião dominante: Poesia 61 e Poesia Experimental. Gastão Cruz e E. M. de Melo e Castro dão visibilidade a cada um deles. Os formalistas da poesia concreta não conseguem impor a sua hegemonia. Mas Gastão Cruz, Fiama Hasse Pais Brandão e Luiza Neto Jorge (ao contrário dos outros, hoje esquecidos) estabelecem o cânone de então.
Vai ser preciso esperar pelos seventies para que a tradição do «discurso quotidiano» ganhe direito de cidade. Quando isso acontecer ‑ e acontece com O Ruy Belo de Homem de Palavra[ s ], com o João Miguel Fernandes Jorge de Turvos Dizeres, com o António Franco Alexandre de Sem Palavras nem Coisas, com o Joaquim Manuel Magalhães dePelos Caminhos da Manhã ‑, já Knopfli publicou as duas edições de Mangas Verdes com Sal. Não está em causa o conseguimento individual de cada obra, ou o dos respetivos autores. Importa apenas dizer que «o novo» já era. É um facto quase sempre omitido.
Não deve portanto surpreender o tom prosaico de poemas como «O Halterofilista». «Oliveira», «O Holocausto», «Matinés do Scala», «Artemisa e Não» ‑ «Verde profundo, o olhar olha/ por cima da gula babosa dos machos./ estátua com pouco de grego, erigida/ num pedestal argamassado em gleba humilde,/ para nós só Hedy Lammar dos Pés-Sujos» ‑, «Miradouro», «Cair da Noite», «Praça Mac Mahon», «O Tempo e o Newsagent» (o meu preferido), «As Origens», etc. Não obstante o maneirismo da forma, sempre o poeta falou de si e dos outros com desenvoltura: «À luz do petromax/ leio os livros do Salgari reinventados// na Romano Torres (custavam sete e quinhentos)/ Ouro vacilante, no crepúsculo moribundo,/ elásticos, indolentes tigres da Hircânia/ distendem o dorso e as garras./ Principia, lento, o agonizar dos dias». Eu não diria que OMonhé das Cobras é o melhor livro do autor. Mas uma coisa é certa: encontramos nele alguns dos melhores poemas de Rui Knopfli. Julgo que não é dizer pouco.
Eduardo Pitta, “O Regresso do Cambaco” in LER. Livros & Leitores nº 40. Outono/Inverno 1997/1998.
GLOSSÁRIO DE O MONHÉ DAS COBRAS
Cambaco: velho elefante solitário.
Ganguissela: namorar, arrastar a asa.
Kepe-chacal: mulato que passa por branco. Kepe é corruptela de Cape, como em Kape Town. Pelo cruzamento com colono holandês, o mestiço do Cabo é aloirado e de olhos claros. Chacal o menino branco nascido em Moçambique. Os atributos são criação de um apertado código mulato (Inf. de José Craveirinha).
Maçala: fruto típico da savana, de polpa muito rica, redondo e de casca grossa dura.
Madala: ancião, avô.
Majengo: rato palmeira.
Matapa: espécie de esparregado, à base de folhas de abóbora.
Micaia: espinheiro silvestre.
O’canhe: fruto que, por fermentação, produz forte bebida alcoólica, do mesmo nome.
Passanoute: espírito noturno maléfico que habita a floresta, vivendo no cerne as árvores. Do português: aquele que passa à noite.
Seruma: haxixe, marijuana, canábis.
Shiguêvengo: em ronga, o mesmo que passanoute.
Uançate: mulher casadoira.
Xipocué: v. passanoute. Provavelmente do inglês spooky.
Glossário de O Monhé das CobrasLisboa, Editorial Caminho, 1997
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[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/06/15/o.monhe.das.cobras.aspx]