POEMA DE UMA VIAGEM AO PORTO E DE UMA PARTIDA PARA A BÉLGICA
As filhas do filho ‑ e o Mundo largamente a elas.
Do Porto, a um céu de banho (o inverno desdourou folha e vinho),
Vai, molhada e rodada, a fita do caminho.
Com essa cor nos pneus, as três ao colo, abalam.
Um sonho ainda, homem avô! e a porta bate,
Bate o destino, o relógio dos Clérigos, o peito,
E mil gotas na chuva podem passar por lágrimas.
Quando voltas, amor que as fez e mas separas,
Filho e mulher do filho pai dos quatro e meu?
Que um filho de homem velho é pai do seu cansaço,
Mão na sua testa tornada ao silêncio e ruga nova:
O caminho que vai sulca o seu coração.
Tão simples, um seguir pela direita e ser testa de ventos!
Volante é o velho que vê voar o que lhe pesa e a noite,
Corpo que tem consigo para durar e dizer.
Como uma estrada é o nosso ser de agora, logo e ontem,
Pedra aberta ao que transe e luze e desaparece:
A cidade nocturna enfia no Douro algumas pérolas,
A ponte que separa vibra, e a água do rio a estrada esquece.
Ó nossa vida, quanto? ‑ um lanço ainda, e a via vai
Como a quadriga a quatro e a oitenta à hora (um sopro a cruza);
Desdobram-se nos vales as árvores; aldeias sem gente lembram o que em suas casas seríamos:
Sossego, lenha, um pouco de tudo e a paz por nada.
Mas não, que já no vento um carro desenhou
Meninas de capuz, sacos e servas (Meu Amor diz um bibe).
Nossa saudade é o antes por agora
Que tudo se suspende e a pausa pesa
Mais que o mundo no adeus.
Se um fogo pega nas palavras que nos ficam,
Ah! não é de lareira a chama do chamado!
Um leve ardor de esperar o regresso nas pombas
Talvez desse vagar e viga à casa vaga.
Mas que faremos nós da chuva contrário ao acalento?
Ao separado e cerce, que aspas achar senão os braços
Nus e caídos sem o peso das meninas?
Deus! tu nisto estás como o horário no incerto,
O que envolve no envolto (e os coelhos se espantam nos faróis).
Nosso ir-sempre é que rasga a lonjura da esperança:
Humidade no chão, um pouco de sangue nos transforma;
Só na casa, à chegada, o cuidado de frente se fez pó.
Se me ficar da vida o tê-la certa noutros,
Como a brasa que passa ao pinhal o clarão,
Fica-me muito: à morte compareço
Pálido do sangue adiante, aonde eles já vão.
É só esse o poema que mereço
Pelos muitos que fez a minha mão.
Do Porto, a um céu de banho (o inverno desdourou folha e vinho),
Vai, molhada e rodada, a fita do caminho.
Com essa cor nos pneus, as três ao colo, abalam.
Um sonho ainda, homem avô! e a porta bate,
Bate o destino, o relógio dos Clérigos, o peito,
E mil gotas na chuva podem passar por lágrimas.
Quando voltas, amor que as fez e mas separas,
Filho e mulher do filho pai dos quatro e meu?
Que um filho de homem velho é pai do seu cansaço,
Mão na sua testa tornada ao silêncio e ruga nova:
O caminho que vai sulca o seu coração.
Tão simples, um seguir pela direita e ser testa de ventos!
Volante é o velho que vê voar o que lhe pesa e a noite,
Corpo que tem consigo para durar e dizer.
Como uma estrada é o nosso ser de agora, logo e ontem,
Pedra aberta ao que transe e luze e desaparece:
A cidade nocturna enfia no Douro algumas pérolas,
A ponte que separa vibra, e a água do rio a estrada esquece.
Ó nossa vida, quanto? ‑ um lanço ainda, e a via vai
Como a quadriga a quatro e a oitenta à hora (um sopro a cruza);
Desdobram-se nos vales as árvores; aldeias sem gente lembram o que em suas casas seríamos:
Sossego, lenha, um pouco de tudo e a paz por nada.
Mas não, que já no vento um carro desenhou
Meninas de capuz, sacos e servas (Meu Amor diz um bibe).
Nossa saudade é o antes por agora
Que tudo se suspende e a pausa pesa
Mais que o mundo no adeus.
Se um fogo pega nas palavras que nos ficam,
Ah! não é de lareira a chama do chamado!
Um leve ardor de esperar o regresso nas pombas
Talvez desse vagar e viga à casa vaga.
Mas que faremos nós da chuva contrário ao acalento?
Ao separado e cerce, que aspas achar senão os braços
Nus e caídos sem o peso das meninas?
Deus! tu nisto estás como o horário no incerto,
O que envolve no envolto (e os coelhos se espantam nos faróis).
Nosso ir-sempre é que rasga a lonjura da esperança:
Humidade no chão, um pouco de sangue nos transforma;
Só na casa, à chegada, o cuidado de frente se fez pó.
Se me ficar da vida o tê-la certa noutros,
Como a brasa que passa ao pinhal o clarão,
Fica-me muito: à morte compareço
Pálido do sangue adiante, aonde eles já vão.
É só esse o poema que mereço
Pelos muitos que fez a minha mão.
Vitorino Nemésio, 25-11-1960
Canto de Véspera, 1966.
Canto de Véspera, 1966.
As pontes que separam vibram. O que, simultaneamente, aproxima e distancia aquele que se sabe passageiro daquilo que vai passando provoca uma íntima vibração, que é este poema, este canto de véspera em Canto de Véspera, quando o anúncio da noite, daquela, do ano e da vida, se torna uma presença a pedir voz. Ouve-se assim o lamento e a celebração do transir na vida e da vida, pela voz do que, enquanto e porque tudo passa, fica suspenso na despedida e nessa suspensão do tempo suporta, comovidamente, o peso do mundo. Mas esta é uma sustentação que, ao embate da porta que se fecha, se funda no abalamento com o abalo das meninas, no estremecimento das horas, na agitação do e no caminho, no balanço do mundo, no tremor do coração, na pulsação do sangue. Vibram as pontes que separam.
[…] Se, por um lado, esses dois caminhos se dirigem para direcções opostas, na evidência da separação a que o tempo obriga, por outro, essa linearidade divergente acaba por ser revertida: é a linha que leva as meninas que sulca, fecundando-o, o coração, abrindo nova ruga (vv. 10-11), mas com esse mesmo traço aí se inscreve, cumprindo-se, desta forma, o regresso desejado. […] É o «ir-sempre» que «rasga a lonjura da esperança» e com esse rasgo, também sulco, ao mesmo tempo se desfaz uma distância, a do que é futuro, e se cava ainda mais uma outra, a daquilo que é esperado, o regresso das meninas.
Nesse «ir-sempre» que é a viagem e que é a vida, a casa é o símbolo por excelência da desejada permanência no mundo. É nas casas entrevistas que se idealiza uma aurea mediocritas apaziguante (vv. 23-24). Nas estradas cruzadas pelo vento (vv. 13, 21, 24), o homem que passa é ele mesmo «volante» (v. 14), vai naquilo que lhe vai, evanescente. O que lhe restam são palavras em que, se incendiadas, se reconhece um acendimento de cuja inflamação o próprio não é responsável: «Se um fogo pega nas palavras que nos ficam, I Ah! não é de lareira a chama do chamado!». E o fogo ateia o que se chama, o chamado, as palavras convocadas que permanecem naquele que de tudo o mais se vê despojado. E dessa chamada surge uma chama que não é de lareira e que é clarão, relâmpago, revelação súbita. Fogo todavia efémero e incapaz de iluminar o mundo. Este lume verbal, se contagiasse o estado da espera tornando-o num «leve ardor de esperar», tornaria possível suportar o que pesa (vv. 27-28) na leveza de «esperar o regresso nas pombas». […] Como o que a um tempo se inflama se apaga, na casa da chegada, nessa casa vaga, «o cuidado de frente se fez pó» e ficam as cinzas a lembrar o fogo que já se foi. Quando bater a porta da última morada (w. 43-44), essa casa inevitável que é a morte, o exangue sabe que a única chama que pode ficar, «como a brasa que passa ao pinhal o clarão», a verdadeira chama de vida, é a que anima «o sangue adiante», é esse tempo a pulsar «onde eles já vão». Essa contemplação da vida futura descansa o cansaço que percorre todo o poema e reconcilia com o mundo aquele que nele se sente derrelicto.
[…] O homem, em trânsito, procura um sentido para a sua viagem. Deus é sentido no mundo: porque está «nisto», ainda que não se veja; porque é significado oculto desse 'isso'; porque é rumo na rotação do tempo; porque a direcção desejada; porque orientação para o Ser. Mas é um sentido suspenso. Um sentido suspenso que vibra. Uma ponte que separa.
[…] A fluência do poema não é de narrativa, mas decorre dessa simultaneidade, da sujeição desse discurso, por um lado, à cronologia dos vários elementos que aparecem na estrada a quem nela passa e, por outro, ao fluxo de pensamento do viajante, o que, por sua vez, é determinado por esses eventos. […] Entre os lugares deste poema, as pontes que separam vibram.
[…] Esta é uma viagem pelos lugares que Nemésio reconheceu, no «Prefácio: Da Poesia», mapa para a poesia nemesiana, como territórios comuns à poesia e à metafísica: o Ser, o Nada, o Tempo, a Morte.
Essa reflexão comporta uma outra: a que se ocupa da própria natureza da poesia. Como tantas vezes acontece na poesia de Nemésio, a palavra poética volta-se sobre si mesma, no próprio momento de se dizer (v. 7), contempla-se, interroga-se, vê-se a ser poesia. E este olhar, neste texto, comporta, por um lado, a celebração desse fogo que emerge, mas, por outro, o lamento da sua imersão no tempo que tudo apaga.
[…] Mas, neste poema, essa poesia não é mais do que fogo só vislumbrado. Entre aquele que fala e essa plenitude na linguagem há um vazio. E, no poema, esse vazio vibra.
Rita Patrício
Século de Ouro. Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XX
Século de Ouro. Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XX
Organização de Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra
Braga/Coimbra/Lisboa, Angelus Novus & Cotovia, 2002.
Braga/Coimbra/Lisboa, Angelus Novus & Cotovia, 2002.
Poderá também gostar de ler
► Canto de Véspera (obra completa)
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/06/12/poema.de.uma.viagem.aspx}
Sem comentários:
Enviar um comentário