MADRIGAL
Se acrescentares a isto a labial de um istmo
península de lava entendes o que eu digo
Se vires como se alonga em minhas mãos a música
entendes o que eu digo acordeão da lua
Se puseres neste grito a gutural de um rito
Se te lembrar o circo entendes o que eu digo
península de lava acordeão da lua
turíbulo de amor trapézio da ternura
Se acrescentares a isto a labial de um istmo
península de lava entendes o que eu digo
Se vires como se alonga em minhas mãos a música
entendes o que eu digo acordeão da lua
Se puseres neste grito a gutural de um rito
Se te lembrar o circo entendes o que eu digo
península de lava acordeão da lua
turíbulo de amor trapézio da ternura
David Mourão-Ferreira, Do tempo ao coração, 1966
ANÁLISE DO POEMA
Madrigal, do italiano madrigale, possivelmente derivado do latim tardiomatricalis, palavra que evoca a função matricial da mulher, é uma pequena composição poética, diz o dicionário, em que, engenhosa e galantemente, se celebra uma dama.
Muito em voga no Renascimento italiano, tal forma poética geralmente musicada, é revivescida pela pena neoclassicizante do poeta David Mourão-Ferreira, de modo particularmente belo e sugestivo.
Constituída por quatro dísticos alexandrinos (dodecassílabos), com acento na 6ª e 12ª sílabas, a composição desenvolve-se em ritmo binário, de acordo com a mensagem expressa pela sintaxe bimembre: à oração condicional, anaforicamente iniciada pela conjunção se (1º membro) corresponde a oração principal, de teor assertivo ou declarativo (2º membro), veiculadora da decodificação da mensagem pelo destinatário feminino ‑ «entendes o que eu digo».
A rima toante, de sabor arcaizante, tem uma estrutura igualmente binária (2 vozes): -io/-ua, sugerindo um efeito musical alternado, a que não é alheia uma mensagem laudatória e afetiva comum.
Ainda quanto à técnica de construção poética, atente-se em alguns artifícios paralelísticos, em lugares estróficos diversificados, como o efeito geométrico em ziguezague da oração principal:
............ entendes o que eu digo
entendes o que eu digo ............
............ entendes o que eu digo
entendes o que eu digo ............
............ entendes o que eu digo
ou o efeito trovadoresco do dobre em «península de lava» (início de verso) e «acordeão de lua» (fim de verso).
Do ponto de vista fónico, além das sonoridades da rima, saliente-se o recurso da aliteração da ápico-alveolar I em labial, península, lava, alarga, lua, lembrar, turíbulo; da gutural (digo, alarga, grito, gutural); e do efeito das nasais (em, in, ão).
Esta incidência em sons fortes como os guturais, em contraste com a leveza das líquidas, bem como o jogo entre sílabas orais e nasais cria uma linha melódica a que não são alheios outros contrastes, agora semânticos, entre masculino e feminino, força e elegância, convenção («rito») e imaginação («lua»).
As figuras geográficas de «istmo» e «península», bem como o gesto alargado das mãos, sugerem precisamente esse elemento masculino, bem pronunciado ao longo do poema, em contraste com as figuras geométricas curvilíneas («lua», «circo»), associáveis ao elemento feminino que se quer cantar.
O amor, tema fundamental do madrigal, é visivelmente notório tanto na carga simbólica dos vocábulos «lava», de origem vulcânica, e «turíbulo», instrumento de culto («rito»), um amor simultaneamente erótico e religioso, espiritual, quanto nos vocábulos abstratos, mas denotativos, «amor» e «ternura».
E porque é um amor cantado, ao mesmo tempo que usufruído, a referência ao elemento e à função comunicativos não pode faltar: os lábios da articulação fónica, o «grito», a «gutural de um rito»; a «música» do «acordeão da lua», e a causa instrumental das «mãos».
Assim, dirigida ao destinatário feminino, investido da função comunicativa de descodificar a mensagem (função apelativa da linguagem), a composição em causa é bem uma celebração engenhosa e galante do amor:
«península de lava acordeão de lua
turíbulo de amor trapézio da ternura».
turíbulo de amor trapézio da ternura».
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Nota: Para além dos aspetos referidos, a propósito da estrutura, pode perguntar-se qual o valor significativo da construção sintática e da própria mancha do poema.
António Moniz e Olegário Paz, Ler para ser. Percursos em Português B. 10º Ano
Lisboa, Editorial Presença, 1993, pp. 102-103
Lisboa, Editorial Presença, 1993, pp. 102-103
ACERCA DO AUTOR
► “David Mourão-Ferreira”, por Teresa Martins Marques.
http://cvc.instituto-camoes.pt/conhecer/bases-tematicas/figuras-da-cultura-portuguesa/1404-david-mourao-ferreira.html
http://cvc.instituto-camoes.pt/conhecer/bases-tematicas/figuras-da-cultura-portuguesa/1404-david-mourao-ferreira.html
► David Mourão-Ferreira ‑ a Obra e o Homem, José Martins Garcia. Lisboa, Editora Arcádia, 1980.
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/06/11/madrigal.aspx]
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