quarta-feira, 17 de julho de 2013

PALAVRAS TANTAS VEZES PERSEGUIDAS (Manuel Alegre)


 Manuel Alegre 
               
               
AS PALAVRAS

Palavras tantas vezes perseguidas
palavras tantas vezes violadas
que não sabem cantar ajoelhadas
que não se rendem mesmo se feridas.
Palavras tantas vezes proibidas
e no entanto as únicas espadas
que ferem sempre mesmo se quebradas
vencedoras ainda que vencidas.
Palavras por quem eu já fui cativo
na língua de Camões vos querem escravas
palavras com que canto e onde estou vivo.
Mas se tudo nos levam isto nos resta:
estamos de pé dentro de vós palavras.
Nem outra glória há maior do que esta.
            
Manuel Alegre, O Canto e As Armas, 1967
          
            
A perseguição feita à palavra [durante o Estado Novo] implicou que se estabelecesse uma empatia entre o leitor e os desígnios do autor para que o primeiro descodificasse o texto na sua total amplitude. Essa empatia do leitor com os desígnios do autor é bem evidente em “As Palavras” de Manuel Alegre.
Ao longo do poema são referidas as diversas tentativas de impedir as palavras de comunicar, de ter outros sentidos que os que o Estado quer veicular. Por isso, elas foram “tantas vezes perseguidas”, “tantas vezes violadas”, “tantas vezes proibidas”, ato dilacerador realçado pelo uso da anáfora associado à aliteração das sibilantes. Porém, apesar de vítimas da censura, as palavras resistiram porque “não sabem cantar ajoelhadas”, “não se rendem mesmo se feridas”, nestas personificações profundamente expressivas. Ao contrário dos homens, que são silenciados dessa forma, as palavras resistem dado não ser possível anular a sua significação que está sempre dependente da sua interpretação por alguém.
Decorrente desse facto, mesmo quando parecem “vencidas”, as palavras são “vencedoras” na medida em que é nelas que o homem se projeta para não se anular: “Mas se tudo nos levam isto nos resta:/estamos de pé dentro de vós palavras./Nem outra glória há maior do que esta.” Independentemente dos esforços do poder instituído para escravizar as palavras – expurgá-las dos significados considerados incómodos para o regime -, esse ato torna-se inviável porque é nas palavras que o poeta “[está] vivo” e é com elas que ele manifesta a sua posição mesmo que de forma implícita. Elas são as “espadas” que restam aos homens para derrubar o silêncio imposto pelo Estado e conquistar a sua própria liberdade já que querem transformá-las em “escravas”.
              
Portugal sob a égide da ditadura: o rosto metamorfoseado das palavrasTese de mestrado de Paula Fernanda da Silva Morais. Universidade do Minho – Instituto de Letras e Ciências Humanas, julho de 2005.
             
            
                         



         

No meu país há uma palavra proibida.
Mil vezes a prenderam mil vezes cresceu.
E pulsa em nós como o pulsar da própria vida
sabe ao sal deste mar tem a cor deste céu
no meu país há uma palavra proibida.
No meu país há uma palavra que se diz
com a mesma ternura da palavra irmã.
Palavra quente como o sol do meu país
palavra clara como é cada manhã
apesar da tristeza lá no meu país.
No meu país há uma palavra que se escreve
sobre os muros à pressa pela noite dentro.
Uma palavra assim nenhuma língua a teve
tão ausência-presença tão feita de vento
tão impossível de apagá-la onde se escreve.
No meu país há uma palavra onde se guarda
tudo o que se não teve tudo o que não foi.
Por ela a humilhação fabrica uma espingarda
e há um tempo de luta no tempo que dói
nessa palavra que nos guia que nos guarda.
Palavra que murmura nos verdes pinheiros
o recado que o mar vem escrever nas areias.
Se já em nós morreram velhos marinheiros
há uma palavra que semeia em nossas veias
um país que murmura nos verdes pinheiros.
No meu país em cada homem há uma palavra
que rasga as trevas e as prisões: palavra-chave
capaz de transformar em asa a mão que lavra.
E é inútil prenderem-na que é luz e ave
no meu país em cada homem essa palavra.
Palavra feita de montanhas praias vento.
De verde pinho e mar azul. De sol. De sal.
Não vale a pena proibirem o pensamento.
Há uma palavra clandestina em Portugal
que se escreve com todas as harpas do vento.
         
Manuel Alegre, O Canto e As Armas, 1967
            

Todos os que não eram coniventes com os ideais do Estado [Novo], que não permaneceram alheados das atrocidades infligidas à população, acabavam por ser silenciados nas celas das prisões. Porém, muitos escritores, como é o caso de Manuel Alegre, optaram por referir metaforicamente aqueles que estavam incumbidos dessa tarefa: eles são os “fantasmas”, os que não são corpóreos e invadem o sono de cada prisioneiro:
«Os fantasmas tinham entrado no meu sono, invadiram a minha casa no cimo da ternura; os fantasmas eram donos do país. E se eles viessem de repente, a meio da noite, e eu chamasse:
- Mãe!
a voz (tão calma) de minha mãe já nada poderia contra eles. Era um trabalho para mim, uma tarefa para todos aqueles que não podem suportar a sujeição. Eu nunca pude suportar a sujeição. Acaso poderia ter escolhido outro caminho?
Por isso, em maio de 1963, eu estava na cadeia, isto é, de certo modo, eu estava no meu posto.» (Manuel Alegre, Praça da Canção/O Canto e As Armas, 1.ª ed. de bolso, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2000, pág. 19-20)
             
Todos os textos eram alvo de uma depuração linguística com o único objetivo de os tornar úteis ao regime ou, pelo menos, inofensivos. Tal situação fez com que o material linguístico dos autores fosse reduzido a um determinado número de vocábulos.
A pré-seleção do material linguístico pelo aparelho de Estado é também evidenciada no poema de Manuel Alegre “No Meu País Há Uma Palavra Proibida”.
Nesse poema, Manuel Alegre não procurou camuflar as suas intenções, razão pela qual mais facilmente se deteta a crítica ao regime, à forma como ele silenciava certas palavras, neste caso a palavra liberdade.
Apesar de nunca ser, de facto, escrita, as referências que são utilizadas facilmente são associadas a ela: é “uma palavra proibida”, foi presa “mil vezes” e outras tantas cresceu, existe dentro de cada ser como a “própria vida”, “sabe ao sal deste mar tem a cor deste céu”, é dita com a mesma “ternura da palavra irmã”, é “quente” e “clara”, é escrita nos muros de noite e à pressa, não é possível apagá-la e é simultaneamente “ausência-presença”, é o símbolo de tudo “o que não se teve tudo o que não foi”, é o motor que permite superar a “humilhação” e guiar os homens, ela é constituída por toda a essência de Portugal e, por isso mesmo, não é possível rasurá-la nem omiti-la do pensamento porque este é inviolável. Ao unir-se ao próprio destino português, essa inaudível palavra aparece associada a diversos referentes históricos: a época dos descobrimentos, visível nos “verdes pinheiros”, no “mar”, no “sal” e nos “velhos marinheiros” que morreram. Imbuída desse espírito, ela ergue-se “espingarda” num tempo de luta e dor e apesar das tentativas de a aprisionarem, ela persiste “clandestina” a incentivar a hora em que todos poderão usá-la.
           
Portugal sob a égide da ditadura: o rosto metamorfoseado das palavrasTese de mestrado de Paula Fernanda da Silva Morais. Universidade do Minho – Instituto de Letras e Ciências Humanas, julho de 2005.
           
               

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  Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro

                             

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/07/17/as.palavras.manuel.alegre.aspx]         

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