DAWN
Agónica noite estremece
e despedaça-se
lá fora em chuva
nas vidraças.
Das sombras, das solidões
dos recantos recônditos
da noite e da chuva
saem homens.
Pela crosta da terra passa
um frémito de arrepio.
Chove.
Chove em África.
É noite
É noite em África.
Mão desmedida ergue-se
no breu,
corpo da terra que as águas
fecundam, impregnam.
Silêncios, hesitações,
sono de séculos, jugos,
racham em surdina.
Jogamos bridge na tepidez
do living,
reclinamo-nos na morna
penumbra erótica
dos cinemas,
ou dormimos em calma
digestão.
Para lá
da noite angustiada
monótono acalanto ergue
a voz.
No inescrutável, nas sombras,
nos recantos recônditos de agónica noite
África desperta...
Rui Knopfli, O País dos Outros, 1959
LINHAS DE LEITURA:
- No poema «Dawn», de Rui Knopfli, o sujeito poético entrega-se a uma visão lúgubre, personificando com tons agrestes a terra africana.
- Note-se a antítese entre um nós, colonizadores, descendentes de Próspero («Jogamos bridge na tepidez / do living, / reclinamo-nos na morna /penumbra erótica /dos cinemas, /ou dormimos em calma / digestão.») e os «homens» que estão «Para lá /da noite angustiada». E com eles está a própria terra africana («Mão desmedida ergue-se / no breu, / corpo da terra que as águas / fecundam, impregnam.»).
- A noite é simbolicamente propícia a um ambiente de congeminação de revolta («Silêncios, hesitações, / sono de séculos, jugos, / racham em surdina.»).
- O conjunto das imagens e metáforas simboliza o declínio de uma era por oposição ao nascimento de outro ciclo.
- As reticências finais reforçam o estabelecimento de um paralelo entre o «amanhecer» («Dawn») e o «despertar» nacionalista de África.
- No cômputo geral, a imagística criteriosa que estrutura o poema revela a posição anticolonial do sujeito de escrita.
PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE LER:
► Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da poesia de Rui Knopfli, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo. Disponível em: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/Lit-Afric-de-Ling-Port/Lit-Mocambicana/Knopfli, 2020 (3.ª edição).
«[…] os povos humilhados, pela noite, Para a vingança aguçam os punhais» Cesário Verde |
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/07/12/dawn.aspx]
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