VER CLARO
Toda a poesia é luminosa,
até
a mais obscura.
O leitor é que tem às vezes,
em lugar de sol, nevoeiro dentro de si.
E o nevoeiro nunca deixa ver claro.
Se regressar
outra vez e outra vez
e outra vez
a essas sílabas acesas
ficará cego de tanta claridade.
Abençoado seja se lá chegar.
Eugénio de Andrade, Os Sulcos da Sede, 2001
Consoante a evolução histórica dos modelos de leitura e interpretação, o leitor intérprete privilegiou a intentio auctoris, operis ou lectoris como se cada uma delas possibilitasse uma interpretação distinta do texto1. Em meados do século XX, a tónica incide sobre a responsabilidade do leitor enquanto construtor de sentidos; por isso mesmo, há inclusivamente quem acredite que não há limites para a interpretação, que todas elas são plausíveis. Essa tarefa ativa da competência do leitor torna-se evidente, por exemplo, no poema “Ver Claro” de Eugénio de Andrade.
Este poema indicia, desde logo, a consciência de que ao leitor compete a difícil tarefa de interpretar o texto. Por isso mesmo, a obra em si – neste caso a poesia – é “luminosa,/até/a mais obscura”; o material que a compõe (linguístico e ideológico) é suscetível a que o leitor o revisite “outra vez e outra vez/e outra vez” até descobrir a sua clara significação. Quando o leitor dissipar o “nevoeiro dentro de si” conseguirá “ver claro”, descobrir o(s) sentido(s) do texto e essa conquista cegá-lo-á. O leitor que não desistir perante a adversidade da interpretação que alguns textos propiciam, será “Abençoado” já que viu para lá da mera sucessão de palavras. No entanto, essa capacidade de descodificação de um texto por parte do leitor não deve ser encarada como uma atividade ilimitada e caracterizada pela contínua ebulição de leituras já que “…toda a liberdade necessita de disciplina para não cair na libertinagem (entendida em mau sentido, é claro). O leitor deve aprender a usar com eficácia os seus poderes e liberdades.”2
Portugal sob a égide da ditadura: o rosto metamorfoseado das palavras. Tese de mestrado de Paula Fernanda da Silva Morais. Universidade do Minho – Instituto de Letras e Ciências Humanas, julho de 2005.
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(1) Paul Ricoeur, em Teoria da Interpretação, defende essa dissociação entre o sentido que o autor pretendia veicular e aquele que o texto transmite, dado que o texto escrito tem uma autonomia própria ao nível semântico que “resulta da desconexão da intenção mental do autor relativamente ao significado verbal do texto.” Porém, não deixa de relembrar que valorizar apenas o texto é esquecer que ele corresponde a um discurso de alguém, destinado a um recetor e sobre algo (Cf. RICOEUR, Paul - Teoria da Interpretação, Lisboa: Edições 70, 2000, pp. 41-42).
(2) Cf. MENEZES, Salvato Telles de - O que é Literatura, Lisboa: Difusão Cultural, 1993, pág. 30.
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- “A metáfora em Eugénio de Andrade” - apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da lírica de Eugénio de Andrade, por José Carreiro. In Folha de Poesia, 2018-04-23. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/04/a-metafora-em-eugenio-de-andrade.html
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/07/16/ver.claro.eugenio.de.andrade.aspx]
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