la geisha, Antonio Mora, 2019 |
AO LONGE OS BARCOS DE
FLORES
Só,
incessante, um som de flauta chora,
Viúva,
grácil, na escuridão tranquila,
‑ Perdida voz que de entre as mais se exila,
‑ Festões de som dissimulando a hora.
Na
orgia, ao longe, que em clarões cintila
E
os lábios, branca, do carmim desflora...
Só,
incessante, um som de flauta chora,
Viúva,
grácil, na escuridão tranquila.
E
a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora,
Cauta,
detém. Só modulada trila
A
flauta flébil... Quem há-de remi-la?
Quem
sabe a dor que sem razão deplora?
Só, incessante, um som de flauta chora...
Camilo Pessanha, «Ao longe os barcos de flores»,
in Novidades, n.º 4931, 28 de abril de 1900.
in Novidades, n.º 4931, 28 de abril de 1900.
_________________________
Glossário:
Barco de flores: "O delicado eufemismo chinês «barco das flores» designa bordel flutuante." (Stephen Reckert, "A fono-estilística de Camilo Pessanha". In: Revista Colóquio/Letras. Ensaio, n.º 129/130, jul. 1993.
Carmim: vermelho intenso.
Cauta: cautelosa, acautelada, com cautela.
Deplora: lastima.
Festões: ramalhetes de flores, e folhagens, grinaldas.
Flébil: lastimosa, lacrimosa, débil.
Grácil: delicada, fina.
Modulada: melodiosa, harmoniosa.
Remir: recuperar, resgatar, tirar do cativeiro, livrar dos sofrimentos
TEXTOS DE APOIO
A MUSICALIDADE DA POESIA DE CAMILO PESSANHA
«Ao longe os barcos de flores» - predominam os sons I, fl, s, aqueles a sugerirem o som da flauta, com tons altos - o i e baixos, om, o, oe, ão, este um ciciar de sofrimento. Destacado da orgia que se vive, o som choroso da flauta, a ouvir-se «na escuridão tranquila». No barulho, no turbilhão isola-se o som da flauta. Poderemos pensar em Pessanha - o viúvo, o isolado / e a vida, o mundo? Claro que outras sugestões nos oferece o poema - «Na orgia, ao longe, que em clarões cintila / E os lábios, branca, do carmim desflora ... » - a noite festiva escoa-se e com ela o esplendor do começo murcha e até pode murchar a pureza de alguma virgem. Mas o que mais realça na poesia é a sensação de isolamento traduzida pelo som dominante da flauta. Lembramos, de Pessoa, «Trila na noite uma flauta».
Lilás Carriço, Literatura Prática 11º Ano, 1986 (4ª ed.)
*
O poema tem uma estrutura circular para recriar, com a repetição regular de versos inteiros, o som monótono da flauta, incessante, obsessiva, que com o seu som choroso rompe a obscuridade tranquila, evocando o exílio. A referência a instrumentos musicais é frequente nos poetas simbolistas e na poesia a melodia prevalece sobre a significação
Dominam as líquidas e as sibilantes, que dão ao poema uma subtil impressão de fluidez de melodia ininterrupta;
Alternam-se os i’s e os o’s para reproduzir a modulação grave-aguda do som da flauta, a que junta-se a repetição de versos inteiros (1-7-13; 2-8), de palavras singulares (som, versos 1-7-13; flauta, versos 1-7-11-13), de rimas (chora, versos 1-7-13; tranquila, versos 2-8; som, versos 1-4), que dão à poesia uma ressonância e um singular «efeito-eco».
“Clepsidra, de Camilo Pessanha (1867-1926) e o movimento do Decadentismo e Simbolismo em Portugal.”,
J.G. Elzenga, Universidade de Utrecht, 7 de outubro de 2009.
Trabalho final do estudo mestrado na Literatura e Cultura da Europa Ocidental.
*
A musicalidade é uma questão fundamental no Simbolismo, pois “a música surge como o meio de o artista sugerir impressões ao ouvinte” (GOMES, 1994, p. 45). Na obra poética de Camilo Pessanha, a musicalidade dos versos “resulta de expedientes técnico‐estilísticos conjugados entre si de diferentes maneiras, e que interessam quer à roupagem fônica da poesia quer o ritmo do verso” (SPAGGIARI, 1982, p. 57). Dessa forma, Camilo Pessanha conseguiu, como nenhum outro, fundir música e poesia.
Os poemas “Ao Longe os Barcos de Flores”, “Viola Chinesa” e “Violoncelo” representam o vínculo com a tradição reconhecidamente simbolista: a musicalidade. Os títulos dos poemas são bem sugestivos, pois, ao fazer menção aos instrumentos musicais – flauta, viola e violoncelo –, mostram a importância da musicalidade na construção dos poemas de Pessanha.
Nos poemas Ao Longe os Barcos de Flores e Viola Chinesa, observa‐se o esquema métrico do rondel, ou seja, além do uso das rimas fixas – no caso, interpoladas (ABBA) –, os dois primeiros versos da primeira quadra vão ser os dois últimos versos da segunda quadra e o primeiro verso da primeira quadra será o último verso do poema. Ao fazer uso desse esquema de disposição dos versos ao longo dos poemas, Camilo Pessanha faz com que eles alcancem uma estrutura cíclica, como ocorre com a música. Essa aproximação do verso à música, “surpreende a lei subentendida nas relações entre sujeito e objeto, entre matéria e ideia, entre realidade e sonho” (SPAGGIARI, 1982, p.10). […]
A respeito de Ao Longe os Barcos de Flores, Álvaro Cardoso Gomes comenta que Camilo Pessanha “imita os movimentos de uma melodia, com a repetição de um mesmo tema e de suas variações” (GOMES, 1994, p. 34).
in Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, Ricardo Germano, UNIPAM, vol. 5, nº 1, março 2012
SÍMBOLOS CONVENCIONAIS CHINESES
Em "Ao longe os Barcos de Flores" está-se pois perante uma irresistível e deliciosa evidência: por todo o poema se encontram disseminados símbolos convencionais verdadeiramente chineses, núcleos de onde irradia uma série de imagens, poeticamente aproveitadas por Pessanha. Senão vejamos: hua (flor) é o termo que designa eufemisticamente a cortesã, a prostituta e também o bordel: ´In a "flower list" courtesans are listed in terms of price and attractiveness and "flower boats" are the floating brothels in the Hong-Kong area and off the Middle China coast on which courtesans sing and play and entertain guests.” (Eberhard, Wolfram, A Dictionary of Chinese Symbols, London, Routledge & Kegan Paul, 1986, p.110).
Uma rapariga virgem pode ser referida como uma flor amarela (crisântemo), huáng hua , enquanto yan hua, fumo flor, designa "la fille de joie", para além de poder ser a expressão para "animado, animação e fogo de artifício" (Dict. Ricci). Significativamente, o componente semântico yan pode querer dizer não só fumo, vapor, tabaco mas também ópio.
Com efeito este poema de Pessanha é um texto dominado sabiamente pela ambiguidade, e o campo semântico instaurado pelo símbolo/imagem convencional dos "barcos de flores" leva a que no som da flauta que "Só, incessante,…chora", para além do "som plangente de uma flauta (que) metaforiza o seu ser só num exílio (…)" (Oliveira, António F. R., in O Simbolismo de Camilo Pessanha, Lisboa, Ática,1979, pg. 76), se ouça o lamento feminino de uma yuan-hua contrastando com a animação orgíaca do fogo de artifício.
Na orgia, ao longe, que em clarões cintila /E os lábios, branca, de carmim desflora… Só, incessante, um som de flauta chora,…viúva…grácil…" A voz da flauta? A rapariga-flor que toca a flauta... na orgia? "To play with the jade and blow the flute refers to sexual practices especially fellatio" (Eberhard, 1986:111). Branca..., a claridade cintilante da orgia?, a rapariga desflorada pela flauta flebil? Plangente é o seu som.
O branco é cor de luto na China. A flor abandonada, vendida ou viúva. Quem há-de remi-la?
A ambiguidade é conseguida não só pelo duplo sentido de certos termos/imagens, como pela subversão das regras morfossintáticas da escrita: palavras em "liberdade morfológica", funcionando, não é bem claro, se como verbos, substantivos ou adjetivos; desarticulação dos períodos, elipse de conjunções subordinativas e de outras palavras ‘vazias’; inversão da ordem dos termos. Efeitos de surpreendente e simbólica eficácia a nível da micro-estilística visual e fónica, (que foram já referenciados por alguns autores, nomeadamente por Esther de Lemos, Bárbara Spaggiari e Stephan Reckert) tudo processos usuais da escrita poética chinesa e igualmente utilizados pelos poetas ocidentais na sua revolução de linguagem poética.
Mas neste poema para além disso, e como se demonstrou, há também inegavelmente um núcleo temático especificamente oriental, com símbolos chineses convencionais de fácil descodificação.
“O oriente na poesia de Camilo Pessanha”, Manuela L. Ramos. Revista Macau, janeiro 2001
Nota: este texto encontra-se desenvolvido em: “Camilo Pessanha, orientalizado e dilletanti da sinologia”, Manuela D. L. Ramos.
Nobuyoshi Araki |
CAMILO PESSANHA E O TAO TE CHING
Os “barcos de flores” existiram, no sul da China, desde o século V a C., até 1959, mas há pouca documentação, acerca desses notáveis bordéis: sabemos que certos barcos eram grandes, com cerca de 35 pés, onde dezenas de convidados podiam se alojar; e outros, menores, com cerca de 10 pés, que comportavam apenas oito pessoas. O aspeto exterior das embarcações, para além da lanterna de papel colorido, que as anunciava à distância, marcava-se pela ornamentação exuberante, carregada de flores multicoloridas – peônias, dálias e crisântemos, símbolos de amor, fertilidade e felicidade –, entrelaçadas em frisos, envolvendo toda a nave, e emoldurando-lhe as janelas. Famosas por sua educação e cultura, as mulheres dos barcos floridos ofereciam, aos poetas, o vinho, o ópio, e inspiração para suas obras (NUNES, 1990, p. 103). Segundo Manuela Delgado RAMOS (2001), hua, para além de significar flor, designava, eufemisticamente, em Chinês, a prostituta: assim, uma moça virgem podia ser referida como “flor amarela” ( huáng hua), enquanto uma moça “explosiva”, alegre e descontraída, podia ser chamada yan hua– sendo yan uma palavra que também se refere ao tabaco, ao ópio, ao fumo, à animação e aos fogos-de-artifício (p. 125).
Em sua coleção de arte chinesa, Camilo PESSANHA tinha “1 ornato para mesa (redução de um flower boat) em filigrana de prata”, item 37 de seu “Catálogo ...” (1993, p. 64).
O poema “Ao longe os barcos de flores” foi publicado em 1900, com uma indicação do local e da data de sua composição: “Cantão, Hotel em Ilha-Min, 1899”. Cantão.. . A mesma cidade onde, cem anos antes, Shen Fu teria escrito o seu célebreRelatos de uma vida fugitiva, sem tradução para o Português – língua que também se ressente da falta de outro clássico da literatura chinesa :O sonho da câmara vermelha, também do século XVIII. Os “barcos de flores”, segundo Gil de CARVALHO (1996, p. 203), comparecem nesse livro de Shen Fu, mas não sabemos “como”... Não sabemos em que “perspetiva”... A perspetiva que conhecemos é a de Pessanha: uma perspetiva “de fora”, mas que inclui a sensação de estarmos “dentro” do barco, sentindo os seus “festões de som”, sua “orgia”, os seus “clarões”.
Céu e Terra não são bondosos.
Para eles, os homens são como cães de palha, destinados ao sacrifício.
O Sábio não é bondoso.
Para ele, os homens são como cães de palha, destinados ao sacrifício.
O espaço entre o Céu e a Terra
é como uma flauta;
vazia, ainda assim, inexaurível; soprada, mais e mais sons produz.
Porém palavras em demasia se esgotam ao serem proferidas.
O melhor é guardar o que está no coração.
(LAO-TZU, capítulo 5, grifos nossos).
Nesse capítulo de Lao-tzu, os termos thuó üè não designam, especificamente, umaflauta – nem um fole, como vimos em outra tradução. Designam uma espécie de instrumento musical antigo, tal como uma gaita de foles: deixada sozinha, ela podia soar, caso o vento soprasse... Entre o Céu e a Terra (entre o yang e o yin, respetivamente) há um espaço. Esse espaço é como uma “flauta”, que soa à medida em que é soprada. Mas, soar não é o importante: o importante é guardar o que está no Centro (zhong)...
Em “Ao longe os barcos de flores”, um som de flauta chora, sozinho e ininterrupto, exilado das alegrias e dos divertimentos da vida: à parte, circundando as festas, sem delas participar...
Antes que houvesse Céu e Terra, já estava ali,
tão silenciosa e solitária.
Ela continua sozinha, imutável.
Corre em círculo e não se põe em risco.
Pode ser chamada de “Mãe do Mundo”.
Não conheço o seu nome.
Qualifico-a de Tao.
Dando-lhe a muito custo um nome,
Chamo-a de Grande.
“Grande” quer dizer “sempre em movimento”.
“Sempre em movimento” quer dizer “distante”.
“Distante” quer dizer “de volta”.
Assim, o Tao é grande, o Céu é grande, a Terra é grande,
e o Homem também é grande.
No espaço, há quatro grandes,
e o Homem é um deles.
O Homem orienta-se pela Terra,
a terra pelo Céu.
O Céu orienta-se pelo Tao.
O Tao orienta-se por si mesmo
“Correr em círculo” lembra-nos a reiteração do verso “Só, incessante, um som de flauta chora”. “Não se põe em risco” lembra-nos “perdida voz, que de entre as mais se exila”...
Richard WILHELM, analisando a obra de LAO-TZU, diz que a grandeza do Sábio (do Santo) consiste em penetrar na unidade primordial da coe são do universo, em cujo silêncio já não existem mais antagonismos que possam ser explorados ([s/d], p. 140-1). Desse modo, o que tem o Tao levará a sua vida como uma pessoa comum, mas, o que é pessoal, a máscara do eu, não o enganará mais: ele representará o seu papel, como os outros, mas se manterá distante da agitação deles, porque se libertou da ilusão e aprecia nutrir-se unicamente da Mãe...
As ressonâncias do Tao Te Ching, observadas em “Ao longe os barcos de flores”, não constituem, no momento, a razão de uma exegese do poema. Não sabemos como coadunar essas ressonâncias de modo a produzir uma reinterpretação. Se o fizéssemos, correríamos o risco de sermos parciais, num poema que é multifacetado, poliédrico, complexo demais para uma tal redução. Mas, pode ser que os poemas “poliédricos” nos deem justamente essa oportunidade (e não outra): a de os abordarmos em um aspeto, cuja análise, facilmente, poderá ser negada por inconsistente. Não importa: esgotar o poema não é, absolutamente, a nossa intenção. Sem o microscópio, e observando-o do alto de um telhado, bem ao chão, o poema de Pessanha nos aparece assim: um lamento do “eu-lírico” por não poder participar das “festas da vida”, solidário que está com a “Mãe”, viúva, grácil, sozinha, incessantemente plangente.. .
“Viúva”, porque, na “mitologia” chinesa, a “Mãe” é a Terra, e o Céu é o “Pai”. Se o “Céu” morreu (ou, na terminologia nietzscheana, se “Deus” morreu...), resta, à “Terra” (“Mãe”), chorar de viuvez...
[…]
Camilo Pessanha e o ‘Tao Te Ching’: um capítulo, Paulo De Tarso Cabrini Júnior,
Assis, Faculdade de Ciências e Letras de Assis,
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, 2009, pp. 89-91.
"AO LONGE OS BARCOS DE FLORES" ADEQUA-SE A UMA LEITURA WAGNERIANA DO MITO DE TRISTÃO.
[…] os mitos aparecem-nos na poesia simbolista sempre de modo parcial ou alusivo (é ver Mallarmé, o mais direto e digno antecessor de Pessanha), e nomeadamente nos casos que observámos na Clepsidra. Ora um dos seus mais belos e mais misteriosos poemas, "Ao longe os barcos de flores", adequa-se a uma leitura wagneriana do mito de Tristão. A começar pela flauta ("Só, incessante, um som de flauta chora! Viúva, grácil, na escuridão tranquila"), prolongada melodia que enche, isolada, a noite do início do Terceiro Ato, quando Tristão, ferido de morte, espera Isolda, refugiando-se da cólera do rei no castelo de seus antepassados. Toda a dialética da noite e do dia, da morte e do amor, que constituem o drama na ópera, aparece no poema, onde a "hora" se dissimula em "festões de som" e a orgia "em clarões cintila", "e os lábios, branca, do carmim desflora" - numa emergência da figura feminina que é a tentação da traição fatal de Isolda, mas que é simultaneamente a sugestão do eterno conflito "branco e vermelho" de Pessanha: também aqui a morte contra a vida da dor (a morte da paixão por Tristão, a dor da necessidade de vingança do Morholt), a morte aproximando-se, na mais lenta duração que a história da arte conhece, numa já grande serenidade do seu conhecimento. É a necessidade desse conhecimento que comanda as questões de Camilo Pessanha: "E a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora! Cauta detém". A noite, com a morte, comanda, no prolongado processo que as repetições e uma complexa sistemática das insistências acentuam. A notação do pecado, alheia à mundividência de Camilo Pessanha, é outro dos fatores que apontam para Tristão, assim como o símbolo da flauta, na sua fragilidade, solidão, beleza e persistência. O poema acaba com a insistência do verso da flauta, anquilosado do dístico em que se insere (Isolda chega tarde, depois da morte e para a morte...), sugerindo assim o prolongamento da melodia e a própria figura da morte cara a Pessanha - a morte processo e transmutação insensível. Antes, porém, reativa-se o apelo ao conhecimento: "Quem sabe a dor que sem razão deplora?" - desistência, sugestão de busca, desvalorização final da vida como dor e afirmação da música como morte e quietação? O título traz-nos o barco, o de Pessanha e o de Tristão (no caso, o de Isolda); o barco na distância que não chega, as flores com que Tristão sonha Isolda ("Auf wonniger Blumen/ lichten Wogen/ Kommt sie sanft/ ans Land gezogen"); num plural que significa a multiplicação do mito em símbolo, numa nominalização que plasticiza a capacidade de evocação do olhar, ou imobiliza o anelo de escuta - da música, da lenda, da poesia; consagração definitiva da morte como anulação, ou da anulação da morte em função da universal corrente de harmonia. Aliás, recordemo-lo, Isolda dirá, quando chegar, quando morrer: "ln dem wogenden Schwal,/ in dem tonendem Schall,/ in des Welt-Atems/wehendem All-/ ertrinken) versinken-/ unbewusst/ hochste Lust!". Fala que, em muitas das suas componentes, se adequa ao pensamento da morte que estudamos em Camilo Pessanha. (Não se trata de sugerir que Pessanha leu ou ouviu Wagner; essa é matéria, interessante aliás, que deixarei ao cuidado erudito de biografistas e historiadores da cultura; trata-se de mostrar que estes textos dialogam com rigor e entendimento, pressupondo obviamente que, sendo Wagner um dos estetas e pensadores mais estimados e assimilados pelos simbolistas, estranho - e talvez ofensivo - seria o desconhecimento da problemática do Tristão por parte do poeta português.)
Maria Alzira Seixo, “O pensamento da morte na poesia de Camilo Pessanha”,
Análise n.º 13, 1989. ApudOutros erros, Porto, Edições Asa, 2001, pp. 114-115
ANÁLISE CRÍTICA
1. O facto de o poema vir ao nosso encontro com um título nunca seria despiciendo; mas no caso da Clepsidra, onde isso raramente acontece, a carga catafórica do título merece acrescida atenção do leitor, que logo se sente estimulado e embaraçado na suspensa prospeção das relações entre esse título e o corpo do poema.
1.1. Condicionando o impacto da realidade (ou da sua perceção) seguidamente designada com um dinamismo acentuado pela eliminação da vírgula que na primeira publicação conhecida (1900, diário Novidades) demarcava a locução adverbial, «Ao longe» significa seguramente distância, mas não assegura que se trate apenas de lonjura com que a subjetividade se defronte, pois pode tratar-se de separação consumada por essa subjetividade, isto é, distanciamento.
Em qualquer dos casos ‑ distância objetiva, distanciamento subjetivo ‑, nova frente dúplice se abre no domínio das consequências relacionais (do eu com a circunstância e/ou com o Mundo, da realização interpessoal) : «Ao longe» pode valer como apelo fruitivo, e logo vislumbre de senda eufórica, ou como fator de impossibilidade fruitiva, e logo marco de melancolia, ou de frustração, ou de nostalgia. As conexões retroativas que a leitura linear do poema depois suscita (ou que a leitura tabular do texto exige) juntam a essa dúplice significação uma outra potencialidade sémica, paralela mas em nível diferente: «Ao longe» pode anunciar a coexistência ou o confronto de desejo e temor perante certo regime existencial, a oscilação entre a insatisfação e a renúncia, mas também pode incubar o prenúncio ou o propósito de alternativa. Assim acontece na nossa leitura, mesmo se a sequência que lhe damos não coincide com a da oposição que Lélia Parreira Duarte estabelece entre o canto triste e solitário da flauta e a sinfonia feérica da orquestra na expressão do antagonismo entre atitude de interrogativa insatisfação e de desencantada aceitação.
1.2. Mas como objeto artístico, «Ao longe» demarca aquele ponto de olhar ou ângulo de visão que o poema de C. Pessanha exige para provocar o efeito de toda a pintura que só de longe se unifica e esclarece: é que, podendo e devendo também ser lido como narração elusiva de um episódio (carregado, sem dúvida, de sugestões simbólicas mais ou menos crípticas), o poema proporciona evidentemente a leitura como quadro de uma cena (então se sobrevalorizando o espaço, o visual, o descritivo, em desfavor dos todavia correlatos elementos de tempo, de audição, de narração); e nessa decodificação e recodificação como equivalente semiótico-literário de texto pictórico, há-de prevalecer a arte de Impressionismo (de que o poema também transcodifica processos e desígnios de realização em textos musicais, segundo um vetor que atravessa toda a lírica de C. Pessanha, isto é, o de traduzir por associação a dados auditivos um visualismo antiparnasiano, particularmente sensível às virtudes da luz).
Neste poema encontramos uma especial manifestação das afinidades do lirismo schopenhaueriano de C. Pessanha com o Impressionismo catalisado pela soberania do momento e do fluxo evanescente sobre a continuidade e a permanência e, por outro lado, destacando-se do Realismo (e do objetivismo parnasiano) pela interferência decisiva do sujeito na perceção da realidade que na criação artística se refrata. Neste poema confirma-se-nos, por conseguinte, o que desde Ester de Lemos melhor se captou na intencionalidade artística de C. Pessanha: como a rapidez do olhar, a fluidez do traço, a indeterminação de contornos, a interpenetração dos tons, a primazia dos efeitos luminosos em função da mobilidade das aparências, a ausência do descritivo minucioso, o esbater dos cenários, a temporização dos espaços, dão características impressionistas ao texto poético; mas desse Impressionismo poético (para nós, estrato a ser integrado superadoramente, primeiro, na arte da crise decadentista e, depois, na arte da iniciação simbolista) relevam igualmente as associações que transformam as perceções em sugestões de estados de alma (e o espaço de representação em ambiência difundida musicalmente).
1.3. Com «os barcos de flores» o título acena-nos (e parece querer aliciar-nos) com uma via de propiciação eufórica ‑ quer se refira a pequeno barco, quer menos verosimilmente se refira a paquete em viagem de longo curso. Nesta última opção a leitura conotaria com a sugestão intranquilizadora de passagem a mais lata simbologia existencial do barco como figuração do corpo humano enquanto veículo do jaspersiano «ser para o naufrágio» ou do heideggeriano «ser para a morte» que, com Lélia Parreira Duarte, podemos ativar para a exegese do poema; em qualquer das opções, fica-nos a preponderante antevisão do clima festivo, depois sujeita a modulações diversas. Nessa promessa de fruição, o relevo do adornamento floral no encanto festivo participa da preferência do esteticismo epocal pela beleza resultante não apenas do dado natural mas sobretudo do artefacto cultural; e, por outro lado, a feição hegemónica desse esteticismo finissecular rever-se-ia nas potencialidades de plural estimulação sensória e de recriações sinestésicas que nas flores residem.
Não é despiciendo, entretanto, levarmos em conta a precisão interpretativa introduzida por Christine Pâris-Montech em relação aos «barcos de flores», pois se os identificarmos com as casas de passe flutuantes então comuns nas paragens chinesas intensificamos antecipadamente as implicações orgiásticas de certa linha de leitura do corpo do poema, reforçamos as possibilidades de sugestões de distância/distanciamento e de não-fruição/alternativa como situação/atitude do sujeito poético (consubstancial ou não à flauta), enfim comprometemos em sugestões amoralmente hedonistas ou axiologicamente negativas o contrapolo da dialética proposta por Lélia Parreira Duarte para a leitura da relação entre a flauta e a orquestra ao longo do poema.
1.4. De qualquer modo, o título contém um indício exótico para o leitor eurocêntrico. Nem esse indício nem a sua prossecução no corpo do poema se confundem com a exploração, entre realista e neorromântica, do pitoresco da geografia física e humana. Por consequência, não contrariam quantas advertências temos retomado contra os equívocos que comportaria ler em clave exótica a excentricidade outra desta poesia, isto é, a excentricidade de um subjetivismo oblíquo ou de umaépoché poética, que é também vertigem encantatória e iniciática de um discurso alusivo e estranhizante. Todavia, a assimilação hermenêutica da aura exótica deve efetivar-se, não na aceção de exornação prestigiosa, nem na de compensação evasiva, mas sim vagamente no sentido em que F. Pessoa considerava «o decorativismo do longínquo nos persegue como uma infância sonhada» e, sobretudo, no sentido de contributo para o que G. Durand distingue como regime noturno da imagem e como «mística» conjugação de «vontade de união e um certo gosto da secreta intimidade».
1.5. Entre o título e o corpo estrófico do poema surge o primeiro tempo suspenso na construção da leitura ‑ intervalo em branco no espaço de realização textual, pausa no curso de realização textual. Como as seguintes ocorrências desse elemento estrutural, após cada uma das estrofes, esse primeiro tempo suspenso traz consigo um efeito de aprofundamento dos nexos intratextuais e um efeito de distensão do sentido parcialmente indeterminado. Mas neste primeiro momento de suspensão surge para alguns leitores um sinal mais forte de descontinuidade, pois precederia o abandono do valor semântico do título por parte do corpo estrófico do poema.
Na verdade, esse abandono pode ser tido por apenas aparente. É certo que o poema não mais se refere a barcos nem a flores; é certo que não sobrevém a explicitação, assertiva ou figurada, de que a orquestra e/ ou a orgia se localizam nos barcos de flores. Todavia não faltam indícios que conduzem à exploração hermenêutica dessa implícita coincidência.
Por um lado, como apontou Ester de Lemos, a frase «Ao longe os barcos de flores» vai, com a sua configuração fónico-rítmica já marcada pelo depois recorrente timbre fl, ecoar no poema que intitula; e a sua imagem visual, simultânea da imagem auditiva, continuar-se-á nos festões de som que dissimularão a hora, enquanto a orquestra, a orgia, os beijos, a sugestão de ambiente de prazer e talvez de festa oriental se entreveem ou se imaginam «ao longe».
Em contrapartida, tal não impede que a fugaz impressão de descontinuidade atue positivamente como introdução da valência hermenêutica de «abertura» ou «falha» no sentido patente do texto, a explorar subsequentemente como espaço semiótica disponível para a gestação dialética ou analógica de um sentido outro.
2. O corpo estrófico do poema, a que acedemos assim condicionados, assume a forma cultivada do rondel ou rondó antigo. Esse rasgo possibilita que «Ao longe os barcos de flores» se distinga como realização excelente de uma das qualidades cimeiras da poesia de C. Pessanha, isto é, que a configuração prosódico-versificatória amolde perfeitamente a forma da expressão à forma do conteúdo ‑ ora induzindo amenidade na cadência suave, se não dolente, ora induzindo crispação na cadência sacudida, senão inquieta.
A circularidade formal que assim ganha o texto poético traz consigo uma sugestão de homologia no desenlace da reação da subjetividade à sua circunstância e na conformação da sua mundividência. Nessa configuração circular, de fecho inconcluso aliás, inserem-se os valores fónico-rítmicos dos versos decassilábicos e os valores estilísticos inerentes a esses sáficos e à variabilidade da sua escansão, a articulação intra-estrófica desses versos e as reiterações de alguns deles em estrofes diferentes, as pausas que com a pregnância atrás anunciada atuam não apenas após o 4° e o 8° versos, mas também e sobretudo, ressalta mais, como veremos, após o 12°.
Com acentos secundários para além dos das sílabas 4ª, 8ª e 10ª, ou por vezes deslizando o primeiro acento principal da 4ª para a 3ª ou a 2ª sílaba (caso dos versos 2° e 8°), os sáficos deste rondel aparecem enriquecidos por rimas internas e por variações rítmicas, por recorrências pertinentes de fonemas fricativos, líquidos e sibilantes, e por alternâncias vocálicas, daí resultando efeitos de harmonia imitativa e de sugestão plurissignificativa. Sobre a melodia mantida na rede de reiterações (versos, palavras, rimas finais e internas) e de aliterações pelas nasais das sílabas rítmicas acentuadas e pela continuidade do grupo fl (onde converge o predomínio das líquidas e o das fricativas) no efeito ondulatório dos sáficos, inscrevem-se as particularidades fónico-rítmicas de cada verso e os seus inerentes contributos para a harmonia imitativa (da flauta e da orquestra, da festa e da noite).
Logo os dois primeiros versos ‑ que depois se revelarão o leitmotiv exequível na exiguidade do corpo textual própria do rondel ‑ evidenciam as alterações de acentuação eficazes funcionalmente: tão adequada é a cadência lenta do verso 1°, com seus nítidos acentos e suas pausas bem marcadas, quão apropriada se mostra a quebra de ritmo sáfico e a rápida sucessão de sílabas não acentuadas no verso 2°. E essa pertinente diferenciação reforça-se quando, com a cadência dominante difundida pelo verso 1° e pela sua recorrência como leitmotiv, vem contrastar o sáfico «E a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora,» tão diverso nas elisões e nas ligações, dando um tom ansioso (et pour cause, como veremos) às interrogações.
3. Nesta mestria de cratilismo secundário, a exploração do código ótico-grafemático secundariza-se, embora sem se anular, como já apontámos para os espaços em branco na mancha tipográfica do texto. A pontuação tem um papel relevante e, nalguns casos, um alcance que, não sendo inequívoco, importa problematizar. Logo a abertura do primeiro verso ‑ «Só, incessante, um som» ‑ nos traz um desses casos, pois as vírgulas, além de concorrerem com as pausas rítmicas, isolam uma das palavras-chave do vocabulário de C. Pessanha: a palavra Só que significa somente, mas que pode (e em nosso entender deve) significar também sozinha. Daí advirá não apenas uma intensificação do efeito da significação adverbial, mas também uma significação adjetiva de isolamento (no espaço e sobretudo na atitude existencial) e, portanto, uma separação da orquestra que, contrariando o entendimento do seu som como contraste saído do próprio seio da orquestra, faz da réplica dessa flauta um canto alternativo. Assim, o som da flauta torna-se melodia contrapolar, que emerge noutro espaço físico e anímico e que se contrapõe ao que de festivo e orgiástico na orquestra se centra. Mas opõe-se-lhe não só como expressão de uma vivência disfórica (de solidão sofredora), e sim também como catálise da propiciação cognata (via ascese dolorista) de Conhecimento transracional e da plácida euforia dessa condição esotérica.
4. O mesmo início de verso ‑ «Só, incessante, um som » ‑ permite-nos e exige-nos enfatizar o cratilismo secundário neste poema de C. Pessanha, pois que nos oferece um dos melhores exemplos de harmonia imitativa e, ao mesmo tempo, a sucessão de sibilantes, que figura a continuidade da melodia da flauta pode ser ainda rececionada noutro plano de sugestão de perenidade e valer, então, como primeiro elo de uma isotopia de nostalgia e demanda de arquetípico. E assim encetamos as incidências neste poema da compreensão mais profunda do desígnio simbolista de refontalização da linguagem - a transmutação órfica da língua corrente em recuperação intencional da linguagem dos arcanos «de haut language» mallarmeano) ‑, em inalienável congruência com o valor noético que atribuímos à melodia alternativa da flauta.
5. Esse «som de flauta» é elemento artístico que, polarizando toda a estruturação temático-formal, mais faz este poema relevar da ordem de literatura esteticista que, com o Decadentismo e o Simbolismo, hegemonizaram o fim-de-século e na viragem do século condicionaram o advento do Modernismo. De resto, esse «som de flauta» (e as suas conexões metonímicas, metafóricas e simbólicas) estão no centro das relações paragramáticas que têm sido mobilizadas para a leitura de «Ao longe os barcos de flores».
O mais importante, porém, na close reading deste rondeI é entender a polivalência que a música nele detém. Por um lado, é a música do som da flauta que protagoniza o episódio ou o quadro evocado onde outras produções musicais intervêm; e, por consequência, é a presença da flauta e da orquestra que exige boa parte da excelente exploração dos significantes no rondel e, em simultâneo, catalisa os outros elementos de harmonia imitativa. Logo, é a música que acaba por interferir decisivamente no poema mesmo quando o rececionamos como recriação impressionista (nomeadamente num paralelo da busca verlainiana de envolvência por um ritmo lânguido, fascinante pela própria persistência).
Com isso, todavia, estamos ainda num plano instrumental da pregnância da música ‑ o daquele uso impressionista da música num âmbito micro-textual (sintagma, verso, estrofe), propenso a uma integração sistémica no Decadentismo (e, logo, objeto de integração superadora no Simbolismo), que Camilo Pessanha tão bem conheceu e admirou em Paul Verlaine e Ruben Darío (e noutros menores como Albert Samain). Mas «Ao longe os barcos de flores» ilustra bem que para um simbolista como Camilo Pessanha quase sempre a música se instaura e alude ou interroga para além dessa subtil e inebriante musicalidade; trata-se então da música mallarmeana na dupla mas indissociável vertente de estrutura musical do texto como unidade orgânica ‑ aqui com o rondel a reger a sua circularidade pelo leitmotiv e, em particular, pela recorrência isócrona do verso «Só, incessante, um som de flauta chora» nas posições determinantes de abertura, charneira e fecho da unidade poemática (1°, 7°, 13° versos) ‑ e de harmonia arquetípica do real (Cosmos e equação do Eu e do Todo). Com uma relação biunívoca, no poema simbolista aquela sugere esta, ou esta exige o poder sugestivo daquela. Só assim se pode aspirar ao que Mallarmé chamava Poesia como decifração órfica do Mundo; e só assim este poema de C. Pessanha pode cumprir em regime simbolista a função que Schopenhauer atribuíra à Arte e maxime à Música ‑ pacificando até à plenitude e falando do ser transfenoménico.
6. Não obstante, a flauta chora. Assim, esse verso inaugural e depois estruturante abre uma isotopia de animação antropomórfica e de potencial personificação; e fá-lo parecendo confortar a disforia latente. No entanto, permanece indeterminado o sentido, pois podemos estar perante uma vibração emocional perturbadora mas não negativa (que, in limine, poderia constituir pranto jubiloso).
Todas estas modulações e virtualidades semântico-pragmáticas se confirmam e esclarecem no verso seguinte (complementar no leitmotiv), através da já referida eficácia fónico-rítmica e da figuração da flauta e do seu entorno. «Viúva», mediante a personificação que depois também se dará com a «noite, cauta», a flauta vê-se metaforizada não apenas para acentuar, sob o signo da morte, a componente disfórica da condição existencial simbolizada no rondel ‑ e , na sua forma particular, lançando o papel da cor negra no devir do poema. Uma coisa e outra alastram de imediato na «escuridão». Mas a viuvez, que é em sentido primeiro a quebra da unidade amorosa dos seres pela morte do cônjuge, pode, tal qual a morte vale a um tempo como perda e como passagem, vir a valer como modalidade existencial da falha que, sendo carência, é também aberta para a plenitude.
Ora, justamente a flauta é «Viúva, grácil» e a noite é «escuridão tranquila» (e a escansão do sáfico leva a valorizar o contraste dos significantes de grácil com os de escuridão e a sua síntese nos de tranquila). Nesse verso belíssimo a persona recebe uma qualificação de beleza tornada mais tocante ao emergir do horizonte da morte; e a escuridão noturna torna-se entorno de beleza plácida que, podendo ser de irónica indeferença a envolver a dolorosa condição humana ali figurada, será pelo contrário aliada sage. Nem por prosseguir a linhagem pós-romântica (baudelairiana, pré-rafaelita, decadentista) de C. Pessanha a coabitação de beleza e morte deixa de ser associação insólita na figuração da flauta como viúva grácil; e, por isso, não deixa de atuar, ao jeito simbolista, como moderno processo de estranhamento do texto literário, apelando na leitura a uma perceção diferente do real. Se aligarmos à escuridão tranquila - interpretável como indefinida sugestão ou vago prenúncio de um genius loci e de umgenius horae propiciatórios ‑ somos então levados ao encontro de uma emoção dolorosa mas não agónica nem absurda; e somos conduzidos à perspetiva não só da conquista de uma qualquer serenidade na amargura ou no sofrimento, mas sim de uma superação do ceticismo pela recognição e da angústia pela reintegração ôntica (tal como a iniciação analógica do Simbolismo se cumpre através da superação do desencantamento naturalista e da crise decadentista).
7. Na transformação do «som» da flauta em «voz» (marca de intencionalidade textual surgida pela alteração da versão publicada em 1900 nas Novidades) a personificação prossegue para conotar com o motivo do exílio uma condição errática. Esse é o ponto menos incerto quando o sentido da qualificação «perdida» fica parcialmente indeterminado. Mas a nossa leitura da unidade orgânica deste rondei simbolista não se coíbe de ver, sobre essa indeterminação semântica, a temática da cisão dos seres (e da sua dolorosa impossibilidade de comunicação ou de comunhão) e, pela sequência do verso seguinte, a aspiração a outro estádio de conhecimento que viabilizaria a reunificação dos seres. Trata-se de «a hora» que ‑ com aquela sugestão das visões extáticas que a poesia de Pessanha várias vezes atinge através da averbalidade ou do indicativo presente, e com o efeito estilístico do artigo definido nas leituras posteriores ao final da Mensagem pessoana ‑ se impõe como tempo qualificado: hora de revelação e aparição para o espírito desalienado, isto é, afastado e liberto da condição existencial de que é expoente a orgia onde os «festões de som» obliteram o momento epifânico. Assim a festa, que paronimicamente os sinestésicos festões de som tomam mais viva, logo recebe as conotações negativas da orgia, que é simulacro de plenitude e, enquanto tal, manifestação regressiva no património de símbolos que parece corresponder à estrutura antropológica do imaginário. E por isso fica «ao longe» e, embora luzindo pela intermitência dos clarões (em mais um êxito impressionista da arte de Pessanha) com uma plurivocidade que a versão de 1900 «que, doida, cintila») debilitava, logo se vê responsabilizada pela ação negativa figurada no verso seguinte «E os lábios, branca, do carmim desflora...»). Neste, a ambivalência que dá ao adjetivobranca (impressão de claridade cintilando na noite e impressão de tristeza nos lábios descoloridos) um poeta que em lugar da nítida hipálage tradicional cultiva a deslocação sintática com irradiação sémica, associa-se ao sentido translato de desflorar, para provocarem ambos a sugestão de uma corrosiva perda (de beleza pura, ou inocência, ou virgindade... ) ‑ que bem pode simbolizar a alienação dos seres em violação simbólica da humanidade vocacionada para o processo de recognição e de reintegração ôntica.
Mas, dissimulada pelos festões de som, «a hora» epifânica fica em compensação resguardada para a experiência iniciática com que «Só, incessante» o som de flauta doleitmotiv vem, na articulação central do poema, reagir àquela perda, oferecer alternativa àquela alienação e porventura relançar aquela superação noética em ordem à comunhão amorosa.
Tal só é possivel em condições de distanciação e recolhimento «fora») propícias à concentrada relação com o Mundo ao jeito de uma ritualidade esotérica transposta para o templo baudelairiano da Natureza, tal como, erguendo barreira contra os festões de som e da orgia, isto é, proscrevendo a condição existencial aí simbolizada, a vem oferecer a noite nos versos magistrais que de seguida instauram a serenidade gnóstica contra o ímpeto perturbador das perguntas ansiosas «E a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora,/ Cauta, detém. Só modulada trila/ A flauta flébil... »).
8. Ao passo que à noite que «detém» é atribuída firmeza de atuação (reforçada pela substituição do ponto final às reticências da versão na Centauro), o adjetivo «flébil...» denuncia a vulnerabilidade da energia cognitiva e adunatória que na arte da flauta se recupera e transcende. Vulnerabilidade que se indefine e estende nas reticências, mas que fruímos como alastramento de melancolia no plano impressionista e decadentista da concretização literária e que articulamos prospectivamente no plano simbolista da nossa cooperação interpretativa.
Ambivalente será ainda essa articulação prospetiva: por causa da Queda na alienação e na cisão monádica, e por causa do exílio enorme que o secular tempo de não-conhecimento acarretou, a via artística, musical e poética, de recognição e de reintegração ontocosmológica será contingente e falível, ou terá de ser discreta e subtil?
Em todo o caso, essa arte salvífica conquista a deteção e sugestão da vida analógica dos seres e esta há-de constituir-se em mediação para o resgate da dor do Homem e do Mundo, como confirma a nova inquietude das interrogações (quase) finais. Na forma interrogativa transparece a margem de dúvida inerente ao transfenoménico ou o halo de mistério próprio do transcendente; mas, em ambos os casos manifesta-se a modulação finissecular e pós-anteriana do pampsíquismo com que a grande arte romântica acompanhara o Idealismo objetivo de Schelling, oferecendo-se-nos conotações de uma indefinida transposição da doutrina cristã da comunicação dos santos para o plano ontocosmológico ou para o plano ético da intersubjecividade.
É de poesia, porém, que se trata ‑ e de grande poesia simbolista, com seu inalienável património críptico. Por isso, sucedendo-se em aparente intuito de enfatização, as duas interrogações não se equivalem no alcance semântico-pragmático. Na primeira ‑ «Quem há-de remi-la?» ‑ avulta o valor do resgate pela comunhão dos seres, com a conotação forte de apropriação do vocabulário sacrificial e redentivo da soteriologia cristã. Na segunda ‑ «Quem sabe a dor que sem razão deplora?» ‑ avulta o valor problemático de «sem razão».
Num ímpeto precipitado de leitura, podemos considerar «sem razão» como o vislumbre negativo, maxime enquanto suspeita do absurdo, que armadilha a concretização do poema em discurso de analógica recognição e de amorosa adunação dos seres. Todavia, há que ter em conta que «sem razão» não qualifica a dor, mas o ato de a deplorar. Logo, «sem razão» ou vale como sugestão da via dolorista para a superação adunatória, ou interfere como reforço da irredutível indeterminação semântica.
Ambos os efeitos se veem corroborados pelo insólito final aberto do rondeI. Contrariando a organização estrófica canónica do rondó antigo -onde a duas quadras se segue uma quintilha ‑, «Ao longe os barcos de flores» prefere encerrar com a dupla interrogação uma terceira quadra, introduzir de imediato uma pausa para interiorização das intuições aludidas e/ou para expansão da inquietude persistente e findar (?!) em da capo, com a retoma do leitmotiv. Retoma sincopada (e reticente, ao contrário da versão de 1900 nas Novidades) que deixa ao verso «Só, incessante, um som de flauta chora...» a missão de sustentar sortilegamente a aura de fecunda indeterminação do sentido.
José Carlos Seabra Pereira, Século de Ouro. Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XXOrganização de Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra
Braga/Coimbra/Lisboa, Angelus Novus & Cotovia, 2002, pp. 264-274.
Braga/Coimbra/Lisboa, Angelus Novus & Cotovia, 2002, pp. 264-274.
LEITURA METÓDICA DO POEMA AO LONGE OS BARCOS DE FLORES
I
Flores de Xangai (Hai shang hua), Hou Hsiao-hsien. Taiwan, 1998.
Hou Hsiao-hsien tem nesse filme uma aposta estética principal: compor os climas de um mundo povoado por desejos, ebriedades, comércios, jogos, gestos, vaidades e muito, muito luxo. Somos transportados às casas de flores, como eram chamadas na Xangai do século XIX as luxuosas casas de prostituição, onde os ricos "mestres" da época vinham encontrar amor e descanso, um refúgio do mundo exterior. [...] Em Flores de Xangai, tudo se passa dentro de quatro casas de flores, [...] territórios separados do meio que os rodeia, pelos costumes, pelos modos, pelo constante uso de ópio, pelos jogos, pelos rituais gastronômicos e amorosos, pela profusão de mobiliárias, bibelôs e luminárias trabalhadíssimas, índices da opulência simbólica daquele ambiente.
A intertextualidade percetível entre o soneto Ao longe os barcos de flores e a resenha do filme Flores de Xangai revela que ambas as produções dialogam com a cultura da China do século XIX, onde, naquele período, os prostíbulos eram chamados de casas de flores. Em seu soneto, bem ao gosto simbolista, Camilo Pessanha prefere a imagem do barco (ao invés de casas) e sugere a dor existencial por meio: [selecione a opção correta]
a) do objetivismo pelo qual sugere o tema metafísico da morte.
b) do apelo sensorial e místico criado pela profusão de imagens olfativas.
c) de alusões à religiosidade cristã católica sugerida por imagens litúrgicas.
d) da sugestão decadentista contida na sonoridade da flauta e em sua adjetivação.
e) de uma análise negativa da prática da prostituição.
(Universidade do Estado do Pará, Boletim de questões . PROSEL - 3ª etapa / Prise X. Prova tipo 1)
II
A Clepsidra, com toda a evidência, programa em alguns dos seus textos a releitura. Em dois, concretamente (Ao longe os barcos de flores e Viola chinesa), a última estrofe aparece reduzida a um verso, que é de facto o primeiro verso da primeiraestrofe, bastando, portanto, voltar ao princípio a esse sinal, e aí ler a última e primeiraestrofes coincidentes do poema sempre recomeçado. Mas uma tal circularidade deleitura pode ser menos evidente.
Fernando Cabral Martins
1. Concorda com a opinião acima expressa?
2. Relacione o recurso às repetições de versos e à aliteração, no 1.° poema, com o som da flauta.
3. Que aspetos nos remetem para o carácter mágico da flauta?
5. Que verso(s) nos reenviam para uma certa apreensão do sofrimento sem motivo?
(Cf. Ser em Português 12 A. Coord. A. Veríssimo. Porto, Areal Editores, 1999, p. 194)
6. Que elementos simbolistas estão presentes no poema?
7. Transcreva o verso que representa a intensificação de sensações vagas e indefinidas.
8. Transcreva o exemplo de sinestesia utilizado no poema.
III
Analise o poema, observando os aspetos seguintes:
• o som da flauta,
- recursos estilísticos que sublinham a sua persistência;
- elementos e processos que o caracterizam;
• os fragmentos da imagem, tornada perto, dos barcos de flores*, ao longe;
• elementos simbólicos
- da mácula;
- da dor;
- do sem-sentido da dor e da própria existência.
(in Plural 12 A, E. Costa, V. Baptista, A. Gomes. Lisboa Editora, 1999, p. 166)
* «barco das flores» designa bordel flutuante.
PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE:
► Vida
e obra de Camilo Pessanha: apresentação crítica, seleção, notas e linhas de
leitura / análise literária de Clepsidra e outros poemas,
por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio
ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª
edição).
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/11/21/barco.de.flores.aspx]
Sem comentários:
Enviar um comentário