SOBRE A EDUCAÇÃO LITERÁRIA E LEITURA DE TEXTOS COMPLEXOS.
Ou a importância da interpretação de textos culturalmente relevantes e não a mera compreensão de informação explícita.
[…] Como lembra Bauerlein (2011, 29), os textos complexos podem ir desde “uma decisão do Supremo Tribunal a um poema épico ou a um tratado de ética”, sublinhando-se o facto de todos serem caracterizados por “um sentido denso, uma estrutura elaborada, um vocabulário sofisticado e intenções autorais subtis”. Por outro lado, segundo o autor, a razão da incapacidade de compreender estes e outros textos prende-se com “a falta de experiência” em lidar com textos que exijam um “trabalho mais lento”.
Os textos complexos exigem específicas disposições dos leitores que podem ser treinadas através das estratégias de leitura postas em prática. Bauerlein destaca, entre elas:
1) a vontade de experimentar e compreender, assente na consciência da planificação e da composição cuidadas. Um texto complexo não é apenas o que transmite informação, mas o que exprime também valores e perspetivas e o que permite, pois, exercitar as capacidades de observação e de análise crítica dos seus leitores ou ouvintes. É nesses valores e perspetivas que se deve reconhecer a capacidade de lidar com a informação recebida, e, por isso, de a compreender e utilizar em novos contextos, na escola e fora da escola;
2) a existência de poucas interrupções – os textos complexos implicam o treino de um trabalho de pensamento assente na continuidade do raciocínio e, por isso, pouco compatível com formas de comunicação como emails, twitters ou sms. Requerem uma certa forma de lentidão e de concentração que repousa sobre a inexistência de constantes interrupções;
3) a recetividade para aprofundar o pensamento – ao treinar a compreensão de que nem tudo é imediata e facilmente exposto, treina-se aquilo que é uma etapa necessária à descoberta e ao treino da vontade de prosseguir em direção a uma etapa posterior.
É hoje possível argumentar que a complexidade textual se apresenta como uma das variáveis decisivas na compreensão da leitura e, concomitantemente, na produção textual, em particular escrita. É ela que permite o desenvolvimento de capacidades de compreensão mais elaboradas e robustas, que naturalmente tenderão a refletir-se nas opções realizadas ao longo da vida, quer dentro da escola, quer fora dela, como lembra, entre outros, Shanahan:
(...) pode ser duro para os alunos confrontarem-se com um texto que os obriga a deterem-se nele, selecionando palavras, destrinçando frases, esforçando-se por estabelecer conexões. Os professores podem sentir-se tentados a facilitar a vida aos estudantes evitando textos difíceis. O problema é que o trabalho mais fácil não torna os leitores mais capazes. O professor tem de estimular a persistência dos alunos, especialmente quando o trabalho se torna mais exigente. A recompensa resulta da capacidade de perseverar. (Shanahan 2012, 62; tradução nossa.)
Uma das principais questões comuns a todos os domínios do Programa prende-se com a tomada de consciência das diferenças de complexidade de pensamento existentes entre formas de compreensão literal e de compreensão inferencial. Se já nas Metas Curriculares do Ensino Básico se insistia num trabalho progressivo e fortalecido em torno da capacidade de ler inferencialmente, tal trabalho adquire, no caso do Ensino Secundário, uma relevância fundamental.
O presente Programa valoriza o texto literário no ensino do Português, dada a forma diversificada como nele se oferece a complexidade textual. A literatura é um domínio decisivo na aquisição da compreensão do texto complexo e da linguagem conceptual, sendo, além disso, um repositório essencial da memória diversificada de uma comunidade, além de um inestimável património que deve ser conhecido e estudado.
Embora literatura e cânone não sejam realidades totalmente coincidentes, importa sublinhar a dimensão prospetiva e o potencial de criação que significa a leitura dos clássicos, enquanto corpus seleto de textos que nunca estão lidos, na sua dialética entre memória e reinvenção.
Dentro do leque dos textos complexos, o texto literário ocupa um lugar relevante porque nele convergem todas as hipóteses discursivas de realização da língua. Ao contemplar um conjunto de fatores que implicam a sedimentação da compreensão histórica, cultural e estética, o texto literário permite o estudo da rede de relações (semânticas, poéticas e simbólicas), da riqueza conceptual e formal, da estrutura, do estilo, do vocabulário e dos objetivos que definem um texto complexo (cf. ACT, 2006). Para tal, pressupõe o Programa também uma adequada contextualização das obras a estudar, no respeito pela sua historicidade, de modo a que elas não surjam aos olhos dos alunos “como ilhas sonâmbulas num lago preguiçoso; ou como acidentes num percurso de lógica dificilmente apreensível”, como afirma Manuel Gusmão (2011, 188).
[…]
“Introdução” ao Programa e Metas Curriculares de Português. Ensino Secundário. Versão para discussão pública. Novembro de 2013. Helena C. Buescu, Luís C. Maia, Maria Graciete Silva, Maria Regina Rocha. Governo de Portugal - Ministério da Educação e Ciência. Páginas 6-7.
OBJETIVOS GERAIS DO PROGRAMA E METAS CURRICULARES DE PORTUGUÊS. ENSINO SECUNDÁRIO.
1. Compreender textos orais de complexidade crescente, apreciando a sua intenção e a sua eficácia comunicativas.
2. Utilizar uma expressão oral correta, fluente e adequada a diversas situações de comunicação.
3. Ler e interpretar textos escritos de complexidade crescente e de diversos géneros, apreciando criticamente o seu conteúdo e desenvolvendo a consciência reflexiva das suas funcionalidades.
4. Produzir textos de complexidade crescente e de diferentes géneros, com diversas finalidades e em diferentes situações de comunicação, demonstrando um domínio adequado da língua e das técnicas de escrita.
5. Ler, interpretar e apreciar textos literários, portugueses e estrangeiros, de diferentes épocas e géneros literários.
6. Aprofundar a capacidade de compreensão inferencial.
7. Desenvolver a consciência linguística e metalinguística, mobilizando-a para melhores desempenhos no uso da língua.
8. Desenvolver o espírito crítico, no contacto com textos orais e escritos e outras manifestações culturais.
Programa e Metas Curriculares de Português. Ensino Secundário. Versão para discussão pública. Novembro de 2013. Helena C. Buescu, Luís C. Maia, Maria Graciete Silva, Maria Regina Rocha. Governo de Portugal - Ministério da Educação e Ciência. Página 10
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/11/26/educacao.literaria.aspx]
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