quarta-feira, 20 de novembro de 2013

CANÇÃO DA PARTIDA (Camilo Pessanha)


            
   
CANÇÃO DA PARTIDA

Ao meu coração um peso de ferro
Eu hei de prender na volta do mar.
Ao meu coração um peso de ferro...
    Lançá-lo ao mar

Quem vai embarcar, que vai degredado,
As penas do amor não queira levar...
Marujos, erguei o cofre pesado,
    Lançai-o ao mar.

E hei de mercar um fecho de prata.
O meu coração é o cofre selado.
A sete chaves: tem dentro uma carta...
— A última, de antes do teu noivado.

A sete chaves — a carta encantada!
E um lenço bordado... Esse hei de o levar,
Que é para molhar na água salgada
No dia em que enfim deixar de chorar.
Camilo Pessanha, Clepsidra, 7ª ed., Lisboa Ática, 1992
     
     
COMENTÁRIO DE TEXTO
     
Elabore um comentário sobre o poema de Camilo Pessanha que integre o tratamento dos seguintes tópicos:
- ligação entre o título e a evocação de uma história sentimental;
- paralelismo formal e semântico entre as estrofes;
- ecos da tradição popular na simbologia e nos ritmos;
- diversidade e significados dos modos de representação do mar;
- relação do texto com a poética do Simbolismo.
   
   
Nota:
A elaboração do comentário de um texto literário, orientada por tópicos de análise, visa avaliar as competências de leitura e de expressão escrita.
Ao classificar o comentário realizado pelo examinando, o professor deverá observar o domínio das seguintes capacidades:
- compreensão do sentido global do texto;
- seleção diversificada de elementos textuais pertinentes e adequados ao desenvolvimento dos tópicos enunciados;
- interpretação do texto através da identificação e relacionação dos elementos textuais produtores de sentido, na base de informação explícita e de inferências;
- identificação de processos retóricos/estilísticos, avaliando os efeitos de sentido produzidos;
- contextualização do objeto em análise na história da literatura;
- construção de um texto estruturado, a partir da articulação dos vários aspetos analisados;
- correção da produção escrita nos planos lexical, morfológico, sintático e ortográfico.
        
   
EXPLICITAÇÃO DE CENÁRIOS POSSÍVEIS DE RESPOSTA
As sugestões que a seguir se apresentam consideram-se orientações gerais, tendo em vista uma indispensável aferição de critérios. Não deve, por isso, ser desvalorizada qualquer interpretação que, não coincidindo exatamente com as linhas de leitura apresentadas, seja julgada válida pelo professor.
     
Ligação entre o título e a evocação de uma história sentimental
- O título anuncia o tom melancólico do poema, quer no plano rítmico (trata-se de uma canção) quer no temático (refere-se a um distanciamento físico e emocional);
- o título sugere o canto do sujeito que parte após uma deceção amorosa;
- a alusão a um idílio passado é feita com a evocação de uma figura feminina através dos seguintes elementos: "a carta" e "o lenço bordado".
     
Paralelismo formal e semântico entre as estrofes
O recurso ao paralelismo formal e semântico, evocando a tradição da lírica trovadoresca, tem no poema uma dupla função:
- confere ao texto uma forte dimensão melódica, sublinhada por aliterações, rimas interiores e esquema rimático;
- tem uma função reiterativa que reforça as intenções do sujeito relativamente ao seu "coração" e aos sentimentos.
Exemplificando:
- a repetição que ocorre nos vv.1 e 3 sublinha a atitude do sujeito, que pretende agir sobre o seu "coração", aprisionando-o com "um peso de ferro" e transformando-o num objeto exterior a si;
- as variantes do último verso das 1.ª e 2.ª estrofes ("lançá-lo"; "lançai-o") intensificam o desejo de afundamento do "coração" nas águas marinhas e constituem um índice revelador da separação que se opera entre o eu (que decide) e o "coração" (que sente);
- a observância das regras do paralelismo salienta uma sequência repetitiva em torno da forma verbal prospetiva "hei-de" (vv. 2, 9 e 14), que acentua o plano das intencionalidades diversas do eu em relação ao "coração", nomeadamente o seu aprisionamento, a sua ocultação e o propósito de salvaguardar ("Ievar"), através do "lenço", a memória do tu.
     
Ecos da tradição popular na simbologia e nos ritmos
- A presença de certos vocábulos e expressões ("coração", "peso", "ferro", "cofre", "sete chaves", "carta", "lenço") cria uma rede lexical que remete para uma simbologia popular:
• o "coração" - espaço simbólico de representação dos sentimentos - torna-se "cofre", fechado "a sete chaves" com um "fecho de prata", adensando a noção de secretismo dos afetos;
• a "carta", tradicionalmente processo de aproximação do par amoroso, aparece com uma capacidade mágica ("encantada"), ao remeter para a preservação de um passado idílico nela inscrito ("a última, de antes do teu noivado");
• o "lenço bordado" surge no imaginário popular ligado à figura feminina e à sugestão de um idílio;
• (...)
• (...)
- a organização estrófica em quadras, o discurso suspensivo, cadenciado, resultante da pontuação e da repetição de palavras e sons, produzem o ritmo encantatório próprio das formas tradicionais de poesia; é particularmente relevante que os versos decassilábicos imprimam ao poema, por força da sua cesura interna, o ritmo da redondilha menor, que constitui a medida dos versos finais das duas primeiras estrofes.
     
Diversidade e significados dos modos de representação do mar
- As referências diretas ao mar surgem ao longo de todo o poema, dando conta do papel importante que este elemento desempenha ("na volta do mar", "lançá-lo ao mar", "lançai-o ao mar" e "água salgada");
- no plano simbólico o mar pode representar:
• o espaço por onde o sujeito efetua uma viagem, na condição de "degredado" – representação do percurso para um exilio, quer físico quer subjetivo;
• a imagem da dor, representada pela água salgada que funde o mar com o choro do sujeito;
• a instância de esquecimento e de afogamento das memórias do eu;
• (...)
• (...)
     
Relação do texto com a poética do Simbolismo
- Poética da sugestão, e não da representação direta, o Simbolismo valoriza a musicalidade (cf. os paralelismos apontados), o trabalho formal com as palavras e a utilização de símbolos;
- no poema de Camilo Pessanha estão bem patentes, como foi analisado nos pontos anteriores, a musicalidade, o trabalho formal, os símbolos como construtores de um poema que não diz mas sugere uma "partida", que é também uma viagem interior do sujeito;
- o mar, cuja presença ecoa incessantemente no poema - até na predominância dos sons e rimas em a -, adquire o estatuto de grande símbolo nas múltiplas e contraditórias significações que sugere. Nele ecoa o grande motivo poético de Pessanha, incessantemente tratado nos poemas de Clepsidra: a água, símbolo ligado ao tempo.
       
Exame Nacional do Ensino Secundário nº 138. Prova Escrita de Português A, 12º Ano, Ministério da Educação, 1998Prova Modelo em conformidade com o plano curricular correspondente ao Dec.-Lei nº 286/89, de 29 de Agosto. Curso Geral – Agrupamento 4.
   
   
TEXTOS DE APOIO
  
Camilo Pessanha, o desistenteSânzio de Azevedo (1977)
O naufrágio em Camilo Pessanha. Ângela Carvalho (2006)
Pseudo-ápice. Gilda Santos e Izabela Leal (2007)
Amor, companheirismo e conhecimento intersubjetivoJoão Paulo Barros de Almeida (2009)
  
            
            
  
  
CAMILO PESSANHA, O DESISTENTE
Óscar Lopes qualificou o poeta de "desistente", num estudo intitulado "O Quebrar dos Espelhos" (in Ler e Depois. Porto, Editorial Inova, 1969, p. 198), tendo já bem antes, em parceria com António José Saraiva, escrito, a respeito da poesia de Pessanha: "O desejo e o amor suspendem-se, e desistem, e fruem a música agridoce da desistência, seguros de que a sua consumação seria o tédio". (in História da Literatura Portuguesa.4ª ed., corr. Porto, Porto Editora, Lisboa, Empresa Lit. Fluminense, s/d, p. 989).
Essa desistência povoa quase todos os poemas de seu livro, Clepsidra (1920), e inúmeras vezes ela nos parece extremamente dolorosa. Como no poema "Canção da Partida", escrita em Lisboa em 1893, um ano da partida para Macau.
A primeira coisa que nos impressiona na leitura desse poema é o ritmo. Na verdade, trata-se de composição vazada em versos de dez sílabas (com exceção dos versos finais das estrofes 1.ª e 2.ª, de quatro sílabas), mas não são decassílabos heroicos nem sáficos.
O verso predominante é o chamado decassílabo ibérico, ou de arte maior. É um verso que ostenta o andamento do hendecassílabo iâmbico-anapéstico, mas de um hendecassílabo ao qual se houvesse retirado a última sílaba átona do primeiro hemistíquio. Têm, assim, acento nas sílabas 5.ª, e 10.ª, podendo-se considerar que a 7.ª sílaba também receba o icto.
Fogem do esquema os versos 11.º e o 13.º, que seguem a acentuação do decassílabo provençal (ou de gaita galega) :
A sete chaves: tem dentro uma carta...
A sete chaves -a carta encantada!
Ambos têm acento nas sílabas 4.ª, 7.ª e 10.ª. Tentaremos entender por que oportunamente.
O verso 12.º traz acento na 5.ª sílaba mas também na 8.ª
‑ A última, de antes do teu noivado.
Não podemos, com relação a este verso, falar em hemistíquios pentassílabos.
Já o verso 18.º,
E um lenço bordado... Esse hei-de o levar, é divisível em dois segmentos de 5 sílabas, embora o primeiro termine com vocábulo paroxítono, porque o segundo se inicia com vogal, ocorrendo assim a sinalefa.
Esse andamento meio galopado, apesar das pequenas variações que apontamos, confere ao poema uma atmosfera de monotonia que vai completar-se com as rimas, predominantemente em a.
Nota-se que a única vez em que há rima de timbre diferente é na primeira estrofe, onde mal podemos falar em rima, já que o que vemos é a repetição integral do verso primeiro no terceiro.
Assim, o próprio som discordante se resolve em monotonia. Quanto à outra terminação dessa estrofe, também é composta da repetição de um vocábulo, mar.
Apenas a título de ilustração, observe-se a característica, bem simbolista, de um à-vontade ainda com relação à rima: na estrofe terceira, é toante a rima entre os versos 1.º e 3.º: prata/carta.
Esse poema de ritmo inusitado não deixa de ferir um pouco os ouvidos acostumados aos decassílabos cantantes. E, por curiosidade, podemos compará-lo com a primeira estrofe da "Oficina Irritada", de Carlos Drummond de Andrade, onde o estrato semântico vai traduzindo o que o estrato fônico sugere:
Eu quero compor um soneto duro 
como poeta algum ousara escrever. 
Eu quero pintar um soneto escuro,
seco, abafado, difícil de ler.
Mas, voltando à "Canção da Partida", podemos, unicamente com base no texto, depreender uma grande dor, expressa não somente nesse desejo de por ao coração um "peso de ferro", mas também através de vocábulos como "degredado", "penas do amor", ou "chorar".
Fala o título do poema em Partida, e a primeira estrofe já nos apresenta o mar. O verso curto, de 4 sílabas, surgindo assim inesperadamente, pode sugerir o ato brusco de lançar-se alguma coisa ao mar. Mas até então não disse ainda o poeta o motivo de desejar ele prender um peso de ferro ao coração.
Na segunda estrofe, já explica que "quem vai embarcar", ao que acrescenta, explicitando: "que vai degredado" (significando com isso uma viagem forçada por algum acontecimento infausto), quem vai embarcar não deve querer levar "as penas do amor". Por conseguinte, sofre ele, o poeta, essas penas do amor, essas "coitas d'amor". E eis que, numa apóstrofe, dirige-se ele aos marujos desse navio não nomeado mas introduzido pelo verbo "embarcar". Nessa apóstrofe, manda que os marujos ergam "o cofre pesado", e novamente vem o verso de 4 sílabas, figurando o ato de jogar-se algo ao mar, desta vez o cofre, que é pesado.
Somente através da estrofe terceira ficamos sabendo que o cofre é o coração do poeta. E, para fechá-lo pretende ele comprar "um fecho de prata", com o que valoriza ele esse tesouro, que é o coração, a nosso ver pesado das "penas do amor". Pode parecer irônica essa valorização, pelo fecho de prata, de um cofre que encerra tristezas. Mas, além de sabermos o valor extraordinário que assume a Dor na poesia de Pessanha, a ponto de afirmar que "Sem ela o coração é quase nada", é ainda a terceira estrofe que nos vai revelar, no 3.º verso, qual o tesouro que o cofre-coração guarda, cujo valor exige que o fecho, para abrigá-lo condignamente, seja de prata. Trata-se de uma carta que, pelo último verso da estrofe, sabemos ser
‑ A última, de antes do teu noivado.
E aqui encontramos a explicação (proposta por Linhares Filho num estudo inédito) de dois decassílabos provençais, com ictos nas sílabas 4.ª, 7.ª e 10.ª, num poema de versos predominantemente acentuados na quinta sílaba. É que justamente esses dois versos falam da carta, facto de tal importância que desencadeia outro ritmo dentro da composição:
A sete chaves: tem dentro uma carta... 
A sete chaves ‑ a carta encantada!
Este segundo verso provençal já pertence à derradeira estrofe, a qual, logo no segundo verso, introduz um novo elemento de capital importância no poema: "um lenço bordado". Reitera o poeta que a carta deve permanecer fechada a sete chaves. E certamente afundará no mar, dentro do cofre, que é o coração do poeta. Entretanto, o lenço bordado ele o quer levar.
Os dois versos finais sugerem-nos naufrágio: o lenço bordado há de molhar-se no mesmo mar onde mergulhará o poeta, quando deixar de chorar, vale dizer: deixar de viver. E a água salgada, no penúltimo verso, tem muito que ver com o pranto do poeta: o lenço bordado (bordado evidentemente pela mestria autora da carta), depois de tantas vezes molhado na água salgada do pranto do poeta, vai findar molhando-se nessa outra água salgada, nesse pranto infinito, onde mergulha o coração, cofre das dores e das recordações do poeta.
Em edição recente da Clepsidra transcreve João de Castro Osório uma variante desse poema, abandonada depois pelo autor, em que os versos são de 5 sílabas (redondilha menor); são reproduzidas, na íntegra, as duas estrofes finais:
Um fecho de prata 
Quisera-o mercar... 
O meu coração, 
Depois de fechado, 
Quisera-o selar. 
Tem dentro uma carta, 
Não posso esquecê-la... 
Sepulto-a no mar. 
E um lenço bordado, 
Que eu hei de levar. 
Cartinha encantada, 
Repousa no mar. 
Porém o lencinho, 
A água salgada 
Que o há de molhar, 
É só do meu pranto, 
Não é o do mar.
Observa João de Castro Osório: "Os versos de dez sílabas foram desdobrados nos seus componentes de versos agudos com cinco silabas. " (“Esclarecimento Final Sobre Esta Edição e Algumas Variantes de Versos a Considerar.” In Camilo Pessanha.Clepsidra. 5.ª ed., Lisboa, Edições Ática, 1973, p. 400) O que não é exato, uma vez que vários versos terminam em vocábulo paroxítono, iniciando-se o seguinte com uma consonância. Na lição definitiva, que informa o compilador ser de 1916, teve o poeta o cuidado de nenhum verso ultrapassar as dez sílabas.
Não obstante certa racionalização da Dor que povoa muitos de seus versos, o poeta sofre por ser um hipersensível. E, como, poeticamente, é o coração a sede dos sentimentos, é esse coração que ele quer lançar ao mar. E é ainda a esse coração que ele, através da prosopopeia, se dirige, quando, nos dois sonetos das "Paisagens de Inverno", fala:
Ó meu coração, torna para trás. 
Onde vais a correr, desatinado?
Para indagar adiante:
Aonde vais, meu coração vazio?
   
Sânzio de Azevedo, Revista da Academia Cearense de Letras, 1977, pp. 92-96
   
   
Renata Shishkova
           
         
   
   
O NAUFRÁGIO EM CAMILO PESSANHA
No poema “Ao meu coração um peso de ferro” (1893: 50-1), a morte por afogamento surge como desejável nos três últimos versos – (“E um lenço bordado… Esse hei-de o levar,/ Que é para o molhar na água salgada/ No dia em que enfim deixar de chorar…”) –, podendo até ser entendida como um projeto suicida. Essa ideia está presente já na primeira estrofe e nos vv. 7-8 da mesma composição poética:
Ao meu coração um peso de ferro
Eu hei-de prender na volta do mar.
Ao meu coração um peso de ferro…
Lançá-lo ao mar.
(…)
Marujos, erguei o cofre pesado,
Lançai-o ao mar.
O desejo de morte equivale a um desejo de anulação, nomeadamente das “penas do amor” que acompanham o sujeito poético no seu exílio. Embora em nenhum momento do poema seja dito que o enunciador está a vivenciar uma experiência de exílio, podemos adivinhá-lo com base na circunstância de o sujeito poético realizar uma viagem marítima e levar consigo as “penas do amor”. De acordo com o enunciador, o que distingue o exilado dos outros seres humanos é o facto de para aqueles as “penas do amor” serem nefastas, notando-se em alguns versos de Pessanha um mau presságio quanto às consequências que essas penas podem trazer: “Quem vai embarcar, que vai degredado…/ As penas do amor não queira levar…” (vv. 5-6). Nisto apoio a convicção de que o enunciador se encontra discursivamente em contexto de exílio, pois no caso do sujeito de “Ao meu coração um peso de ferro” percebemos que são precisamente essas penas que o conduzem ao desejo de morte – uma morte como evasão, como fuga à dor e à existência.
Esta ideia é corroborada por duas passagens de cartas de Camilo Pessanha. A primeira é endereçada a Alberto Osório de Castro: “Sabe que eu também ando por esses mares fóra sempre a escolher o melhor logar da minha sepultura?// No fundo do mar?” (s/d: 48). A outra foi dirigida a Carlos Amaro e escrita a bordo do navio que levou o poeta de regresso a Macau em 1909:
Sabe o que eu agora desejaria? Não chegar ao meu sítio nunca… Ir assim, a bordo de um navio, sem destino. Veja como o destino varia. Nos últimos dias de Lisboa, o terror que verdadeiramente me oprimia era este mar morto da viagem, entre dois abismos tão distantes um do outro, e no fundo de cada um dos quais a minha alma perpetuamente agoniza (cit. in Lencastre, 1984: 114).
É o que Barbara Spaggiari já tinha observado, referindo que “Deste modo, nas suas poesias, ora deseja vaguear para sempre no mar sem uma meta, ora anseia, pelo contrário, por um naufrágio” (1982: 35). Nos anteriores períodos epistolares, vemos também reafirmada a ideia de que o sujeito de enunciação se encontra em exílio permanente.
Ângela Carvalho. Revista da Faculdade de Letras — Línguas e Literaturas, II Série, vol. XXIII, 
Porto, 2006 [2008], pp. 222-224
   
   
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PSEUDO-ÁPICE
  
O eu-lírico anseia por se liberar das penas de amor que traz no coração, lançando-o ao mar, com um peso de ferro, como cofre selado, com fecho de prata a sete chaves. Para partir, degredado, deveria fazer o mesmo que o navio: livrar-se das amarras que o prendem à terra ou do excesso de lastro que dificulta o navegar.
Adiante descobrimos que pesar há em seu coração: a amada trocou-o por um noivo. Da história rompida, partida, restou uma carta e um lenço bordado. A carta, registro nefasto do próprio romance e do seu fim, irá para o mar com o coração ferido; já o lenço, associável ao passado feliz, há de acompanhá-lo sempre, consolador, até que enfim deixe de chorar, numa atitude condizente com toda a simbologia tradicional, lendária, que perpassa pelo poema (e que faz lembrar Antonio Nobre).
Todos estes outros — sobretudo outras — que até aqui causaram ilusões e desilusões no nosso viandante, afiguram-se corno seres de carne e osso, com algum suporte de materialidade, apesar da tibieza (como em “Voz débil...”) ou das metaforizações (“Estátua”) com que foram introduzidos. Há, no entanto, outros poemas onde cremos lidar com aparições diáfanas, evanescentes, ingrávidas, ou, então, com seres de traços até bem definidos, mas perfeitos demais para serem vivos, como se habitassem apenas esferas oníricas ou míticas. Nelas, a complexidade humana parece sofrer um processo de sublimação.
Esse trânsito entre “pessoa” e “miragem”, entre aspirações possíveis e aspirações inalcançáveis, pode ser localizado nesta pequena joia da poesia simbolista:
Se andava no jardim,
Que cheiro de jasmim!
Tão branca do luar!
  
Gilda Santos e Izabela Leal, Rio de Janeiro, 7. Letras, 2007, p. 54)
   
   
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AMOR, COMPANHEIRISMO E CONHECIMENTO INTERSUBJETIVO
  
O exílio como escape a um amor infeliz é o fulcro temático de «Canção da Partida».
O tom e o ritmo de cantilena popular, escolhidos pelo poeta, para vestir uma deceção, uma amargura profundas resultam certamente da sua poética não confessional, da sua maneira disfarçada, enviesada de expressar o «sentimento».
Incrustado nesta toada, destacado pelo travessão, desenrolase o verso décimo segundo em que se refere concretamente um «tu», o «teu noivado». O poeta, num triângulo amoroso, foi suplantado por um rival e excluído pela amada. A solução é a fuga: no verso «Quem vai embarcar, que vai degredado», o sujeito incluise implicitamente (também ele embarca porque foi degredado); o fechar o «coração» significa tornálo insuscetível de cair noutro engano amoroso, sepultandoo nas águas salgadas e abissais do oceano. O «peso de ferro», que lembra as grilhetas dos condenados ao desterro, é o que mergulhará o coração irrevogavelmente nas águas purificadoras do mar.
No entanto, a quadra final, ao salvar o «lenço bordado» (prenda, penhor de esperanças, oferta tradicional da amada) do sepultamento faz duvidar da radicalidade dessa medida: o lenço supérstite é para embeber nas lágrimas da «água salgada» quando as do poeta secarem, como se o mar guardasse algo, por osmose, do coração nele lançado, prolongandose desta maneira a dor e a saudade, que se queriam juguladas pela partida para o desterro, deixadas para aquém do infinito e intransponível fosso que seria o oceano.
  
 João Paulo Barros de Almeida, Coimbra, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2009, p. 100. 
         

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 Vida e obra de Camilo Pessanha: apresentação crítica, seleção, notas e linhas de leitura / análise literária de Clepsidra e outros poemas, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição).




[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/11/20/cancao.da.partida.aspx]

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