segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

CLEPSIDRA, POEMA FINAL (Camilo Pessanha)


    CLEPSIDRA

         
           
POEMA FINAL

Ó cores virtuais que jazeis subterrâneas,
‑ Fulgurações azuis, vermelhos de hemoptise,
Represados clarões, cromáticas vesânias ‑,
No limbo onde esperais a luz que vos batize,

As pálpebras cerrai, ansiosas não veleis.

Abortos que pendeis as frontes cor de cidra,
Tão graves de cismar, nos bocais dos museus,
E escutando o correr da água na clepsidra,
Vagamente sorris, resignados e ateus,

Cessai de cogitar, o abismo não sondeis.

Gemebundo arrulhar dos sonhos não sonhados,
Que toda a noite errais, doces almas penando,
E as asas lacerais na aresta dos telhados,
E no vento expirais em um queixume brando,

Adormecei. Não suspireis. Não respireis.

Camilo Pessanha
       
        

LINHAS DE LEITURA
        
1. O poema contém três objetos de interpelação:
- as cores virtuais = apelo à passividade (permanência na virtualidade);
-os abortos = apelo à incapacidade de existir/decomposição;
-o gemebundo arrulhar de sonhos = apelo à inutilidade/morte;

2. O sujeito poético não detém nenhum meio de se apoderar da realidade exterior: nem a visão, nem o pensamento, nem o sonho. Como consequência, a morte é a única realidade desejada; é o "Ponto Final".

3. Só aparece neste poema a palavra clepsidra, que está de acordo com o sentido já descodificado.

4. É evidente a ligação da temática deste poema com a do poema inicial: inadequação do sujeito poético com este mundo, fuga para um mundo ideal e desejo da morte, como libertação.
(Aula Viva. Português A. 12º Ano, J. Guerra e J. Vieira. Porto Editora, 1999, p. 297)
   
   
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“Poema final” ‑ as formas imperativas dos versos soltos apontam todas para o negativismo que foi concretizando nas quadras: ‑ na 1.ª, ‑ as cores que não chegaram a existir; na 2.ª, ‑ as crianças que não chegaram a nascer; na 3.ª, ‑ os sonhos que não foram sonhados. Neste poema, através destas formas chocantes de fracasso, em especial, a segunda, sugere o poeta mais fortemente o sofrimento resultante do seu sonho irrealizado, de uma vida fracassada, dos fantasmas que lhe povoaram o espírito.
Lilás Carriço, Literatura Prática 11º Ano. Porto, Porto Editora1986 (4ª ed.) (1ª ed.: 1977), p. 354.
   
   
   
TEXTOS DE APOIO
    
Análise literária do poema “Ó cores virtuais que jazeis subterrâneas”. Paulo Franchetti (2002)
Florescem as rosas bravas simbolistas. Antônio Donizeti Pires (2009)
Intimismo e modernidade na poesia de Camilo Pessanha. José Eduardo Ferreira (2011)
A representação do sujeito moderno entre o Simbolismo e a geração de Orpheu.Rodrigo Xavier (2012)
A Intertextualidade entre “Poema Final” de Camilo Pessanha e “O Morto Alegre”de Charles Baudelaire. Tiago Clariano (2013)
Fantasmas do Livro. Gustavo Rubim (1998)
     
    
Camilo Pessanha. Desenho a tinta da china de João Abel Manta, 1975
   
   
ANÁLISE LITERÁRIA DO POEMA “Ó CORES VIRTUAIS QUE JAZEIS SUBTERRÂNEAS”
Clepsidra é o nome que tem sido dado às coleções possíveis de versos de Camilo Pessanha. Uma ordenação significativa autorizada pelo poeta parece ser algo irremediavelmente perdido, se é que alguma vez existiu. E se existiu, dificilmente terá sido integrada por todos os poemas que até hoje os vários editores foram reunindo sob o título emblemático do lugar de escoamento da água, imagem e medida do transcurso ininterrupto do tempo.
Entretanto, do que talvez tivesse sido um desenho de conjunto, um projeto do livro dos versos de Pessanha, restam duas balizas: uma quadra em que um “eu” afirma o desejo de “no chão sumir-se, como faz um verme” e esta invocação dos estranhos interlocutores que só a voz do poeta constitui em existência. Quanto ao lugar inaugural da quadra denominada, por alguns, “Inscrição”, não há prova documental, apenas a tradição das várias edições e a coerência de lugar e de sentido. Já o presente poema foi identificado pelo próprio poeta, numa versão preliminar, como a “última página de um livro em tempos delineado”.
Ganham, pois, os poemas com a leitura conjunta, que ressalta o desejo de trânsito entre superfície e profundeza, entre o interior e o exterior da terra. Na quadra, a languidez da alma produz o desejo de “deslizar sem ruído”, de desaparecer por meio de um mergulho regressivo, que supõe a perda das defesas e das características humanas. Neste, o movimento começa com o anseio das cores subterrâneas pelo batismo da luz que lhes dê existência – portanto, com o desejo de emergir da terra que as recobre – e prossegue com a apresentação/invocação de outros seres que ainda não chegaram a existir e que aparecem situados em graus crescentes de afastamento do solo: primeiro, os abortos nas prateleiras ou nas mesas dos museus; depois, os sonhos, à beira dos telhados.
Ressalta também, da leitura conjunta, o lugar em que se situa a voz lírica, que é o lugar da consciência do desejo. Lugar analítico por excelência. No primeiro caso, o da quadra, o desejo é do próprio sujeito que o expressa: desejo de inconsciência, de alívio de uma situação que é sentida como destino, como efeito de uma circunstância de ordem mais ampla: “eu vi a luz em um país perdido”. No caso do poema final, o desejo é atribuído ao interlocutor. A voz lírica é o lugar da experiência que aconselha justamente a cessação do desejo. Este, por sua vez, tem um lugar aporético: é o desejo de existir, postulado como origem da frustração e da dor de seres ainda inexistentes, ou já não existentes.
Na primeira estrofe, as cores virtuais, ao jazerem enterradas, forçam a perceção de que a base metafórica são os fenômenos da decomposição orgânica: a loucura produtora de alucinações coloridas, a expetoração dos tuberculosos e o fogo-fátuo. O procedimento lembra a morbidez irônica de outros versos. Aqueles nos quais as várias substâncias geradas pela putrefação dos cadáveres são objeto de contemplação, como produtoras de formas e de cores: “putrescina! – flor de lilás! / cadaverina! – branca flor do espinheiro!”. A possibilidade da leitura é reforçada pelo verso 4, que traz as imagens complementares do limbo e do batismo, em relação inversa. A deceção da esperança de fuga do lugar de inércia, por meio do ritual que se destina justamente a evitá-lo, contribui para o adensamento agônico da materialidade corporal das imagens, além de preparar a menção aos natimortos que comparecerão logo adiante no poema. O verso 5, destacado espacialmente dos anteriores, dos quais é entretanto a seqüência sintática, nos põe de súbito em face dos olhos dos enterrados, aos quais se aconselha que se fechem finalmente, sem esperança de término da vigília dolorosamente empreendida.
Na estrofe seguinte, a apóstrofe se dirige aos que não nasceram, mas cujos corpos se preservam incompletos, intactos, modificados apenas na coloração. Habitantes de outro limbo, o asséptico dos museus, são explicitamente afastados, pela negação, de Deus. Seu mundo não é o da expansão das cores, mas o da concentração sonora. Não é o da terra, a que deve retornar o pó; mas o da água. E a força da estrofe provém em grande parte do contraste entre as duas imagens da água, uma explícita e outra implícita. Explícita é a água que corre na clepsidra: o tempo que flui. Implícita é a água parada, o líquido em que flutuam os corpos metidos nos frascos, na paralisação do fluxo vital interrompido. Embora sejam também figurações da impossibilidade de uma consciência sem vida, contrastam os abortos com as cores virtuais: sem ansiedade, sem esperança de redenção, ouvem resignados e talvez irônicos a passagem do tempo, a que já estão imunes. Ecoam, com o seu vago sorriso confinado nos invólucros de vidro, um outro poema de Pessanha, que também é estruturado sobre a imagem paradoxal do cadáver consciente e reflexivo: o morto que se ri do fato de que nada do que passa sobre a sua sepultura lhe dói minimamente. A esses a voz lírica aconselha a cessação da atenção e da busca de respostas.
Neste momento do poema, as duas pontas do ser orgânico foram interpeladas: aquela em que a vida ainda não se realizou plenamente, imagem de um momento congelado, de promessa sem realização; e aquela em que o ser, já passado o momento da morte (no qual um outro seu texto via o surgimento de um aspeto de “imortal serenidade”), se desfaz na escuridão da tumba, esporadicamente cortada de clarões e cores sem esperança de redenção. Entre elas se deve situar logicamente o espaço da vida. Se assim for, ela aqui é identificada ao sonho, e seu grau de irrealidade e indefinição acaba por parecer maior do que o dos momentos terminais.
No terceiro bloco, interpelam-se os “sonhos não sonhados”. Do ponto de vista da construção metafórica, completa-se o quadro lúgubre do poema, juntando a imagem das almas penadas à das aves noturnas que se ferem de morte contra os limites da casa, e encarnam mais explicitamente o anseio, já marcado de dor, pela existência. Noturna, não há nessa estrofe nenhuma menção de cor. Em compensação, é o mais sonoro dos três blocos em que se divide o poema. Não apenas porque refere o arrulhar, a expiração e os queixumes dos sonhos, ou bater das suas asas nas arestas dos telhados. Mas principalmente porque a estrofe toda se eriça de aliterações e assonâncias e, principalmente, porque uma mesma rima de grande sonoridade retoma e sistematiza o procedimento (inaugurado na primeira estrofe) de explorar a cesura do alexandrino: virtuais, esperais, (cerrai), errais, lacerais, expirais. Essas três últimas palavras, ecoando os seus “ais” na sexta sílaba de três versos seguidos, martelam a gradação das ações atribuídas aos sonhos, mostrando que mesmo aquilo que não chegou a existir (os sonhos que não foram sequer sonhados), aquilo que poderia ser descrito, portanto, como pura potência sem ato, tem um périplo de sofrimento e morte. Nesse sentido, o poema vai num crescendo: a relação desejo/dor vai sendo vazada em imagens de materialidade crescente. À medida que prossegue a leitura, mais intensa se torna a presença do desejo de vida e mais intensa parece a dor que surge associada a ele.
Para essa perceção de intensidade contribui a leitura do verso final, que, diferentemente do padrão estabelecido nos blocos estróficos anteriores, não é sintaticamente bipartido, mas tripartido. Como os anteriores, abre-se com um imperativo afirmativo, a que se segue um negativo. A diferença é que há agora duas frases de ordem negativa, e que a sua forma de construção coloca em destaque – pela repetição do mesmo padrão métrico (o péon quarto), da estrutura sintática e da pontuação – a palavra de negação.
A tripartição do verso final também encerra uma gradação de intensidade: o sono, a ausência de reação à dor, a parada da respiração. É a morte absoluta, afinal, o conselho que aqui se cristaliza, após ter sido preparado pelos versos isolados após cada quarteto. E o que a morte absoluta significa, neste quadro particular, em que os interlocutores não estão vivos, é a cessação do paradoxal desejo de existir.
Os seres interpelados nos três blocos do poema ocupam espaços simbólicos diferentes e bem delimitados. Os primeiros se situam num espaço de exterioridade inominada, apenas referida metaforicamente como “limbo”, cujo elemento é a terra. Confinados, seu desejo de redenção se manifesta também como desejo de exteriorização, de subida em direção ao ar e à luz. Os terceiros, ao que parece, localizam-se no espaço privado da casa, do lar. Associados aos pombos que habitam os beirais, o limiar da exterioridade, seu desejo de serem sonhados é também o desejo de passarem à interioridade do espaço íntimo, e sua permanência na virtualidade é também a sua condenação à morte no espaço da exterioridade da noite e do vento.
 Já os segundos se situam no espaço social, público e controlado do museu. O elemento predominante na estrofe que os apresenta é a água. Mas neles mesmos não há movimento, nem anseio por movimento. Imagens da quietude desesperançada, os abortos comparecem como o momento do equilíbrio possível. Oferecendo-se quietamente como espetáculo visual, dotados da materialidade que falta aos outros interlocutores da voz lírica, os não-nascidos parecem imunes à esperança e à dor do anseio pela existência. Nesse sentido, são o equilíbrio possível no quadro do poema.
Por uma carta juvenil, sabe-se que, em algum momento, Pessanha pensou em organizar o conjunto dos seus poemas segundo um desenho temático centrado no tema do desejo e do prazer (realização possível e destruição do desejo). A leitura seqüencial conduziria à constatação de que lutar pelo prazer é o mesmo que lutar pela extinção do desejo e pela morte. A vida, portanto, era identificada ao momento tenso, cheio de energia e de dor, no qual a carência move em direção a um objeto, cuja posse dissipa a tensão e é sempre decetiva em si mesma. Talvez por isso a vontade de fixar, preservar ou celebrar o momento anterior à realização do desejo seja um dos motores da lírica de Pessanha, responsável por alguns dos seus poemas mais célebres. Uma das suas melhores concretizações é o soneto que começa “Depois da luta e depois da conquista”. Mas já neste poema final, escrito para encerrar o conjunto dos seus versos, o desejo em busca de realização é objeto apenas de piedade. Não se fixa heroicamente, como idealidade solar fadada ao obscurecimento e à decomposição; nem se celebra como furor, como febre que produz imagens irreais de integração, como no díptico iniciado pelo soneto “Desce em folhedos tenros a colina”. Pelo contrário, num poema em que o elemento ‘fogo’ é o grande ausente, o momento da luz possível entre as duas cenas noturnas de sofrimento desejante é o momento em que repousam, indiferentes ao correr do tempo, os abortos desprovidos de transcendência.
Pessanha escreveu certa vez que, apesar do progresso da ciência, permanecerá intocado um espaço incognoscível, “da beira de cujo abismo as almas meditativas continuarão, por todo o sempre, a debruçar-se terrificadas e ansiosas”. Era uma frase que situava o espaço da poesia, indicando a condição da sua continuidade num mundo dominado pelo conhecimento positivo.
Nesse quadro, se este poema foi escrito para encerrar o livro que reuniria os poemas de Camilo Pessanha, ressalta agora que a imagem da estrofe central pode ser lida como uma figuração irônica da própria condição do pensamento filosófico ou poético. Irônica não apenas porque todo o poema ecoa e enfeixa os fios principais da lírica de Pessanha e porque nessa estrofe particular comparece, pela única vez, a palavra que denominaria o conjunto dos seus versos, mas também porque reúne, no espaço da curiosidade científica e do didatismo, os temas constantes ao longo de alguns dos seus melhores versos: a construção da imagem do desejo congelado antes da realização, a cisma sobre o abismo do incognoscível e a descrença na transcendência, que permitiria fugir à fragmentação e redimir o desejo, apontando-lhe um fim que não fosse a própria e estéril extinção.
Paulo Franchetti
Século de Ouro. Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XXOrganização de Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra
Braga/Coimbra/Lisboa, Angelus Novus & Cotovia, 2002, pp. 140-145.
Disponível em 
http://sibila.com.br/mapa-da-lingua/camilo-pessanha/2758
   
   

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Clepsydra by karkharokles
“Clepsydra”, por karkharokles


   
   
FLORESCEM AS ROSAS BRAVAS SIMBOLISTAS
Vejamos agora o “Poema final”: final não somente por ser o último da Clepsidra, na edição original; mas final porque aponta para o ideal de dissolução que permeia a obra do poeta; e final porque revela, enfim, o significado profundo do símbolo “clepsidra”, para o poeta.
Formalmente, a regularidade do poema (em versos alexandrinos de cesura rigorosa em 6-12) é quebrada no último verso (com acento 4-8-12), como a indicar o ápice da gradação da entrega à inanição: “Adormecei. Não suspireis. Não respireis.” Pois, conectada pela rima (“-eis”) e pelas ações negativas, a gradação (que ecoa, ainda, o refrão ou estribilho tão caro à poesia, mas agora desconstruído), vem destacada nas três estrofes de verso único (monóstico) e vem se fazendo pouco a pouco, num longo caminho até atingir o estado de abandono do nirvana (ou da morte). Nos três quartetos, as rimas são cruzadas (ABAB), e seu esquema completo, no total de 15 versos, evidencia a rica sonoridade do poema: ABAB/C/DEDE/C/FGFG/C. A sonoridade, obviamente, ultrapassa este esquema consoante, pois reluz, entre o primeiro e o segundo quartetos (“hemoptise/batize”, “cidra/clepsidra”), ou entre o primeiro e o terceiro (“subterrâneas/vesânias”, “penando/brando”), as sutis rimas toantes, bem como as rimas internas ocasionais (“cerrai/cessai”, “sorris/abismo” etc.), as aliterações e as assonâncias.
O poema todo é um apelo a uma série de elementos inanimados (ou virtuais, ou mortos, ou ainda não nascidos, ou prováveis, ou possíveis), enumerados em “cores virtuais”, “cromáticas vesânias” (vesânia é o nome genérico das diferentes espécies de alienação mental; é também mania, loucura, disparate), “abortos” e “sonhos não sonhados”, para que, em consonância com o eu-lírico, cessem toda preocupação de vir à tona (ou à luz, ou à vida), já que nada vale a pena. Porém, há certa tentativa do eu-lírico em se fazer ouvido, pois não é de todo impróprio dizer que, no poema, a voz lírica anima e personifica (é sutil, aqui, o uso da prosopopeia) os próprios elementos aos quais se dirige, numa pungente busca de apoio, comunicação e cumplicidade. Inclusive, o uso da prosopopeia acentua-se se considerarmos que os fetos abortados, por exemplo, cismam gravemente, sorriem vagamente e escutam “o correr da água na clepsidra”.
Os elementos estão encerrados (escondidos, hermeticamente fechados) em algum tipo de invólucro (“jazeis subterrâneas”, “Represados clarões”, “No limbo”, “nos bocais dos museus”, “o correr da água na clepsidra”), o que os impede de desabrochar e fluir plenamente. Isto é da máxima importância porque revela de modo efetivo, pelo acúmulo de imagens simbólicas, a própria cosmovisão do artista exilado na Terra e alijado da Beleza: por um lado, este “Poema final” absorve e condensa vários temas e motivos caros ao poeta (a pulsão de morte, a melancolia, a solidão, a busca do repouso; em termos formais, há a musicalidade, a rigorosa construção do texto, o cromatismo imagético ora explorado em “azuis”, “vermelhos” e “cor de cidra”, além do uso das palavras “cores”, “clarões” e “cromáticas”); por outro lado, o poema dá-nos a entender o valor do símbolo da clepsidra para o poeta: esta contém e represa a água, como revela a imagem simbólica “o correr da água na clepsidra”. Ou seja, a situação da água (presa, exilada, detida) é a situação do artista: sua fluidez é contida a (em) um espaço determinado; há um ir e voltar ao mesmo ponto de partida, um vão marcar das horas e da passagem do tempo. Num sentido, o estar preso ou exilado é a própria condição do homem, e esta é a situação existencial de Camilo Pessanha, que nos dá a vê-la no símbolo e que a ultrapassa, obviamente, ao configurar esteticamente seu universo vivencial e imaginário. Noutro sentido, também é evidente que a clepsidra é o espaço-tempo (eterno) do poema, objeto construído de linguagem fluida e plástica. E para este flui, conflui e reflui (e deste flui, deflui e reflui), de modo magistralmente condensado, não apenas as muitas águas do poeta, mas a universal experiência humana, atemporalmente considerada. E tal fluência múltipla e complexa, como se sabe, é atualizada e presentificada sempre, a cada nova leitura do poema (deste, em particular, ou de todo e qualquer poema que mereça de fato o epíteto).
O fechamento aludido acima parece ser exceção no último quarteto, pois os “sonhos não sonhados” (os poemas não escritos?) erram, em voo, durante toda a noite como se fossem almas penadas, têm as asas laceradas (machucadas, feridas) “na aresta dos telhados” e confundem com o vento seu arrulho e seu “queixume brando”, a expirar (a palavra tem vários sentidos: expelir o ar dos pulmões; exalar, respirar, bafejar; mas também morrer, falecer; ou dissipar-se, extinguir-se aos poucos). Mas o tratamento especial dado aos sonhos (porque, metapoeticamente, podem se referir aos poemas não escritos) não os desconecta da condição dos outros símbolos, pois todos, como já se disse, são provisoriamente animados pelo eu-lírico e convidados, gradativamente, a cerrar pálpebras, a não velar, a cessar de cogitar, a não sondar o abismo, a adormecer e, finalmente, a não suspirar e a não mais respirar. A voz lírica, no lento processo, não quer apenas lembrar aos elementos a inutilidade da vida ou a inevitabilidade do sofrimento, mas requer companhia, cumplicidade (decerto não partilhadas pelos entes humanos), e almeja não apenas certa quietude ou paz final (morte ou nirvana), mas a (re)integração e anulação no Todo, de modo definitivo.

 Antônio Donizeti PIRES (UNESP/Araraquara). Texto Poético. Revista do GT Teoria do Texto,
volume 6, 1.º semestre de 2009.
   
   
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INTIMISMO E MODERNIDADE NA POESIA DE CAMILO PESSANHA
Podemos ler […] o poema “Eu vi a luz em um país perdido” como uma espécie de “sintoma” de uma escrita do “eu” criado na linguagem poética e nela sacrificado.
Nos dois primeiros versos, o sujeito está fortemente marcado com o uso dos pronomes “eu” e “minha”: nos dois últimos, há uma espécie de anulação ou indeterminação do eu, pois o pronome “quem” não especifica uma individualidade e o “se”, no último verso, tende ao apagamento do sujeito. Nos dois primeiros versos, portanto, haveria uma tentativa de se marcar o “eu”; nos dois últimos, o sujeito ficaria incólume a qualquer ato de se inscrever, tratando de se anular e/ou indeterminar. Para o crítico Paulo Franchetti:
(...) a perda do pais em que se deu o nascimento real ou espiritual conduz à languidez. Vemos apenas os dois momentos extremos: a perceção da perda e a sensação anímica de falta de energias, e de vulnerabilidade, por falta de defesas. Os dois adjetivos que definem a alma exilada são os pornos focais do poema. É para o primeiro — lânguida — que converge toda a primeira parte da quadra. E é do segundo — inerme — que decorre toda a segunda parte, com o desejo de subtração à superfície, de absorção pelo seio da terra, onde os seres desarmados e destituídos de energia podem encontrar abrigo e proteção (FRANCHETTI: 2001, p. 36)
Além da análise do crítico Franchetti, há de se notar, também, algumas outras subtilezas estruturais: o primeiro verso é constituído por uni período simples que, por conta de sua independência cm relação ao restante do poema, torna fragmentado o discurso do eu lírico. Solta, a primeira declaração feita no texto toma um caráter absoluto (não interessa o momento da visão desta “luz”, interessa o dano permanente causado por perdê-la). Podemos dizer, ainda, que esse discurso estilhaçado é análogo a certos processos de rememorização: a oração parece desvinculada do restante do poema, pois funciona como um flash longínquo de um outro tempo (ou de um outro lugar). A memória não pode trazer de volta, porém, aquilo que se perdeu: o verso solto sintaticamente do restante do poema pretende absolutizar a imagem evocada, mas o próprio conteúdo do verso desautoriza qualquer cristalização. Além do mais, nas palavras de Bergson:
Em se tratando da lembrança, o corpo conserva hábitos motores capazes de desempenhar de novo o passado; pode retomar atitudes em que o passado irá se inserir; ou ainda, pela repetição de certos fenômenos cerebrais que prolongaram antigas perceções, irá fornecer à lembrança um ponto de ligação com o atual, um meio de reconquistar na realidade presente uma influência perdida: mas em nenhum caso o cérebro armazenará lembranças ou imagens. Assim, nem na perceção, nem na memória, nem, com mais razão ainda, nas operações superiores do espírito, o corpo contribui diretamente para a representação (BERGSON, 1999, pp. 263-4).
O segundo verso também tem uma oração desprendida das demais (não há nenhum conectivo — expresso ou elíptico — ligando essa oração às demais). No segundo verso, porém, o período em questão pode ser desmembrado em dois (“A minha alma é lânguida” e “A minha alma é inerme”). Em ambos os casos os núcleos dos predicados são nominais (“lânguida” e “inerme”). O destaque dado não mais a ação, mas ao estado do sujeito, evidencia aquilo de que trata Paulo Franchetti na citação acima: a primeira parte do poema caminha para se chegar à languidez do sujeito poético e a segunda resulta do facto dessa alma ser “inerme”. Pode-se concluir que: no primeiro verso, a ação de ver a luz é impossibilitada pela incapacidade do sujeito de reter as imagens do mundo (mesmo resgatando-as via memória); no segundo, o desfile das coisas do mundo fica em segundo plano, pois, neste momento, o que passa a importar é o estado de alma desse sujeito.
No terceiro e quarto versos percebemos o processo de indefinição e anulação do sujeito pelos termos que o identificam: no primeiro verso tem-se o pronome “eu”, no segundo “a minha alma” (grifo meu), no terceiro, o sujeito da oração é um pronome indefinido (“quem”) e, finalmente, o sujeito da oração “No chão sumir-se” é o pronome reflexivo “se”. Vale lembrar que o pronome reflexivo “se”, desde que o verbo esteja no infinitivo, pode, eventualmente, funcionar como sujeito de uma oração. Dessa forma, o verbo intransitivo ‘sumir” teria a construção “a si mesmo” como sujeito. Podemos afirmar, portanto, que esta aparição do sujeito no poema é, paradoxalmente, o momento de sua anulação (ou, pelo menos, o momento do desejo de anulação). O ideal desse eu lírico, portanto, é sua entronização completa em si mesmo.
Ainda vale notar que, no terceiro verso, a sonoridade sugere um deslizamento através das aliterações em /s/ e /z/ (“pudesse”, “deslizar” e “sem”) que se encerra abruptamente pela força do som do /r/ em “ruído” (essa palavra ainda tem o mérito de produzir um ruído ao ser pronunciada) e pelo uso de vogais fechadas no fim do verso (/u/,/i/ e /o/). É como se o sujeito produzisse um pequeno som ao deslizar até o seu enclausuramento total.
A analogia entre verme e sujeito, feita no poema, permite também que se pense a relação do “eu” com a luz. O verme (por exemplo, a minhoca) pode perceber a luz com seus mecanismos de perceção do ambiente, o que ele não pode é formar uma imagem desse habitat. Seus fotorreceptores fazem com que a minhoca perceba a luz em forma de calor, isso faz com que ela se esconda, pois o calor, para ela, significa perda de água. A leitura que se faz no presente trabalho é a de que para o eu poético, quanto maior for o seu contato com as imagens do mundo empírico, quanto maior for a carga de luz, mais substância ficará perdida. Isto quer dizer que, no poema, a presença da personalidade do escritor, da sua vida, ou da sua “alma” significa, na verdade, perder a essência do fazer poético.
É por isso que o sujeito poético, para se efetivar, precisa se arrastar (ou “deslizar”) para o espaço do não reconhecível e do obscuro. Há dois movimentos, portanto, que podemos perceber. Enquanto o sujeito passa por uma gradativa anulação sintática do “eu”, que já comentamos, o conteúdo do poema aponta para o desejo do eu lírico (sem forças) de descer às camadas subterrâneas da terra (ou do texto), para ali se fortalecer. A nostalgia da luz, no poema, transubstancia-se. Consecutivamente, em uma nostalgia do “eu”, haja vista o “eu” só existir como fabulação discursiva: “Em Camilo Pessanha, a luta objetividade / subjetividade é bem sugestiva no poema ‘Inscrição’: a nostalgia da luz, a nostalgia de uma totalidade irremediavelmente perdida, acaba por levar o poeta ao ensimesmamento e, paulatinamente, à destruição” (GOMES, 1977, pp. 103-104).
Por essa razão, a última marca do “eu” que aparece no poema é de plena identificação do sujeito com o verme. O poema começa com o pronome pessoal na primeira pessoa acompanhado do verbo “ver” (“Eu vi”) e termina com a palavra “verme”. Não seria exagero ver nesta palavra a construção “Ver-me”. Dessa forma, o apelo à visão, direcionado à captação do eu, encerraria um ciclo: num primeiro momento, o sujeito é incapaz de reter as imagens do mundo; num segundo lance, metamorfoseia-se com o verme. Nessa simbiose entre o “eu” e o verme, é interessante notar como o sujeito aparenta permanecer apenas no âmbito da textualidade: enquanto o verme some no seio da terra, o “me”, de “verme”, fica fora da metrificação do poema. Pode-se concluir que o verme, nas profundezas da terra, e o sujeito, na teia textual, estão, enfim, salvaguardados.

São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2011. 
Dissertação de Mestrado em Literatura Portuguesa, pp. 26-29.
   
   
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A REPRESENTAÇÃO DO SUJEITO MODERNO ENTRE O SIMBOLISMO E A GERAÇÃO DE ORPHEU
Publicado em Clepsidra, coletânea dos poemas de Camilo Pessanha publicada em 1922, o poema final, intitulado apenas “Final”, constitui uma espécie de epitáfio dos demais textos que o antecedem e, ao mesmo tempo, pode ser lido como um poema prenúncio da nova estética que ora se anunciava naquele Portugal finissecular. Trata-se, ao primeiro olhar, de um aparente representante da escola simbolista, carregado das construções estilísticas que apontam para imagens sugestivas, hiperbólicas sinestesias e notória preocupação formal verificável no rigor métrico empregado em seus quartetos de versos dodecassílabos, entrecortados por versos unitários alexandrinos e encerrados novamente por um último verso dodecassílabo. Iniciemos uma leitura do poema a começar pela primeira estrofe.
Ó cores virtuais que jazeis subterrâneas, 
— Fulgurações azuis, vermelhos de hemoptise, 
Represados clarões, cromáticas vesânias, 
No limbo onde esperais a luz que vos batize, 

As pálpebras cerrai, ansiosas não veleis.
O eu lírico inicia o poema com um chamamento, por meio do vocativo “Ó cores virtuais”, apresenta o tom de aparente apelo entre um Eu que no contato com seu interlocutor solicita determinada tomada de postura frente aos acontecimentos. Este interlocutor parece estar submerso em uma espécie de entremundo, um mundo lúgubre, circunscrito a essa natureza pela ocorrência do verbo ‘jazer’ e pelo jogo daphysis materializada em “vermelhos de hemoptise”, versus o vir-a-ser, o subjetivo e o incorpóreo, representados em “cromáticas vesânias”. O sangue, os espectros de luz, a loucura psicodelicamente multicolorida residem em um limbo, um lugar de expurgo, de purificação, de abandono dos pesos passados, onde espera ser batizada pela luz que não está presente naquele lugar de resignação. Ao mesmo tempo em que há espera, “no limbo onde esperais” há também desesperança na transformação: “as pálpebras cerrai, ansiosas não veleis”, verso que sugere a manutenção da escuridão, mesmo com a chegada da luz e o abandono das expectativas, mesmo com a promessa da redenção. As “cores virtuais” não seriam representantes daquele mundo em que segundo o poeta Carlos Drummond de Andrade (2001: 54) o poeta deve penetrar “surdamente”? Não se constitui esse lugar como aquele no qual reinam as palavras, mudas, em estado de dicionário, esperando pelo seu resgate para que o poema possa ser escrito? Parece-nos que sim. Contudo, é também o mesmo lugar em que as próprias palavras cerram as suas pálpebras, e não velam por nenhuma mudança vindoura. Começa Camilo Pessanha por construir uma espécie de antilírica do poema, já que o anunciado é prenúncio do silêncio:
Abortos que pendeis as frontes cor de cidra, 
Tão graves de cismar, nos bocais dos museus, 
E escutando o correr da água na clepsidra, 
Vagamente sorris, resignados e ateus, 

Cessai de cogitar, o abismo não sondeis.
Na segunda estrofe, percebe-se uma intensificação dessa nulidade de possibilidades por meio da personificação atribuída aos “abortos”. O que foi abortado, que ainda não ganhara o direito à vida, pende suas cabeças, cismando, sondando, não em lugar qualquer, mas nos “bocais dos museus”. Há aí neste ponto a evidência de estabelecimento de um jogo que não esteve presente na primeira estrofe. A presença do antigo em contraposição ao moderno, a sua rutura com o conservadorismo representado pela figura do museu, contrasta com a presença da imagem da clepsidra, que em princípio figuraria como a metáfora da passagem do tempo. No plano denotativo, a palavra clepsidra tem sua origem no grego (kleps-udra) cujo verbo kleptô(roubar, enganar, dissimular) e o nome udor (água, em várias aceções e, muito concretamente, água da clepsidra), e significa relógio de água para marcar o tempo atribuído aos oradores. É a partir desse primeiro plano que se estabelece o segundo, o plano conotativo ou simbólico. Designando no plano denotativo a ideia de marcação do tempo correspondente à passagem da água no relógio, a palavra adquire no plano conotativo a aceção de todo o escoamento do tempo em nossas vidas.
Contudo, na conceção significativa sugerida na obra de Pessanha, adquire o vocábulo outras dimensões no plano conotativo, que vão além da imagem de escoamento do tempo captada numa primeira instância. Para isso cumpre observar que o som final da palavra clepsidra (-IDRA) se associa à palavra hidra (que é uma variação do termo grego -udra) sendo na língua oral quase impossível não associá-lo à Hidra num plano mitológico. Sabe-se que a Hidra é uma serpente marinha gigantesca com sete ou nove cabeças que nascem à medida que são decepadas e isso era para os antigos símbolos da inutilidade da vontade e do esforço humanos. A Hidra simboliza em suas múltiplas cabeças, os vários vícios do homem e sua fragilidade perante eles. A partir dessa perceção simbólica da clepsidra de que todo esforço é vão, associamos a ideia de resignação e abandono da fé, presente no verso que fecha a segunda estrofe. Além de fechar os olhos e não esperar mais nada, sugere o eu lírico que também não se pense e não se elocubre sobre o que nos é desconhecido “cessai de cogitar, o abismo não sondeis”:
Gemebundo arrulhar dos sonhos não sonhados, 
Que toda a noite errais, doces almas penando, 
E as asas lacerais na aresta dos telhados, 
E no vento expirais em um queixume brando, 

Adormecei. Não suspireis. Não respireis.
A última estrofe amplia os aspetos oníricos e subjetivos já presentes nas estrofes anteriores e, embora seja a estrofe mais significativamente representativa de uma estética simbolista, encerra em seus versos a ideia total de abandono dos modelos estéticos anteriores, apontando para a necessidade de que algo novo se erija. Os sonhos são “não sonhados”, errantes, laceram suas asas na materialidade do mundo físico, as almas que se resignaram anteriormente continuando penando, e tudo que parece restar é a desistência. Não basta que se adormeça. Também não basta deixar de dizer. É preciso fenecer, não respirar. É necessária uma nova estética que esteja pautada na ideia da representação-efeito, pois que há no poema de Camilo a presença de um sentimento de que não é mais possível representar a realidade por meio do modelo ora consagrado, porque o sujeito que constrói essa representação também já não é o sujeito de feições cartesianas, já não é aquele capaz de transformar a realidade a partir de uma visão centrada e íntegra, pois que ele próprio como sujeito anda cindido, fraturado e impossibilitado de representar o mundo da mesma maneira.
in Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários, volume 23 (set. 2012) – 1-97 –ISSN 1678-2054
   
   
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A INTERTEXTUALIDADE ENTRE “POEMA FINAL” DE CAMILO PESSANHA E “O MORTO ALEGRE” DE CHARLES BAUDELAIRE
Desde logo, uma das primeiras provas da influência de Baudelaire em Pessanha é o próprio título do mais reconhecido livro de Camilo Pessanha, Clepsidra, termo usado por Baudelaire no seu poema “O Relógio”, tanto que ambos funcionam como medidores do tempo; pela recorrência das temáticas da água e do tempo na poesia de Camilo Pessanha, faz todo o sentido que o termo Clepsidra tenha sido eleito: por contar o tempo utilizando a água. A própria palavra “Clepsidra” é usada no “Poema Final”.
Numa primeira abordagem, recorrendo apenas aos títulos, podemos desde logo encontrar o elo de ligação que é a temática da morte, o adjetivo “final” para poema indicia-nos uma ideia de derradeiro, que prevê desde logo a morte do próprio poeta, ou pelo menos a “morte” da criação poética para o mesmo. Já “O Morto Alegre”, também revolve na temática da morte, mas já mostrando a outra face: a paradoxal vivência da morte.
Olhando para a mancha gráfica dos poemas podemos reparar numa relativamente similar dimensão, porém a divisão estrófica já se apresenta diferente (o “Poema Final” tem seis estrofes, três quadras variadas com três monósticos, num total de 15 versos; enquanto “O Morto Alegre” é um soneto, tendo, portanto, 14 versos).
Numa análise menos formal e mais aprofundada, podemos apontar semelhanças ao nível das metáforas utilizadas, sendo que ambos os poemas criam imagens de cinco temáticas diferentes: a visão, o terreno, a água, o espiritual e o aério, que explorarei mais adiante.
Outra semelhança óbvia é o confronto de braços abertos com a morte, o desejo “final” e ao mesmo tempo artístico de provar o improvável que é viver a morte. Izabela Leal compara esta ideia ao conceito fantasmagórico de zumbi:
Não posso deixar de pensar na imagem do zumbi, o morto que não morre, aquele que revela de uma forma explícita a presença do infinito no finito. No poema de Baudelaire, o atributo “alegre” indica que a morte é sempre uma espera, e o que há no desejo de morte é ainda a vida, já que sua interrupção deveria caracterizar-se como uma pura ausência de atributos: há apenas mortos, nunca mortos alegres. (LEAL, Izabela. “Camilo Pessanha: O Morto Alegre e a Poesia Moderna”.Revista Convergência Lusíada. Nº 26, 2011)
Existe mesmo um aconselhamento em ambos os poemas para que se aceite a morte, nos versos do “Poema Final”, “As pálpebras cerrai, ansiosas não veleis.”, “Cessai de cogitar, o abismo não sondeis.” e “Adormecei. Não suspireis. Não respireis.” e nos d’”O Morto Alegre”, “Vinde pois sem remorso ungir-me os membros todos / E dizei-me depois se resta algum suplício / A este corpo sem alma e morto dentre os mortos!”. Enquanto Pessanha nos convida a viver o adormecimento derradeiro, Baudelaire pede aos vermes que lhe roam dos ossos o que lhe resta de vida, e em ambas estas instâncias podemos compreender a ideia da comparação com o zumbi: artisticamente, o real é unido ao fantasioso, os sujeitos poéticos estão a viver mortos, só que vivos, enquanto fingem já ter morrido.
Existem nos dois poemas cinco temas que se repetem ainda que em diferente ordem: a visão, o som, a terra, água, o espírito e o céu.
a.  A Visão
O olhar carrega todas as paixões da alma e é dotado de um poder mágico que lhe confere uma terrível eficácia. O olhar é o instrumento das ordens interiores: mata, fascina, fulmina, seduz, do mesmo modo que exprime. (...) O olhar aparece como sendo o símbolo e o instrumento duma revelação. Mas, ainda mais, ele é um reator e um revelador recíproco de quem olha e de quem é olhado. O olhar do outro é um espelho que reflete duas almas. (...) (Jean Chevalier & Alain Gheerbrant, Dicionário dos Símbolos, 1982)
Sendo poemas simbolistas, é óbvio que a imagética causada pelas metáforas tem o intuito de criar imagens na nossa mente, sendo, portanto, inevitável falar da visão como um elo de ligação entre os dois poemas. A visão surge, no poema de Baudelaire, da perspetiva dos vermes que não chegam a ver a luz (“Ó vermes! Vós a que não chegam luz ou ruído”), uma perspetiva exterior ao corpo do sujeito poético morrente. Por outro lado, no “Poema Final”, a visão é apresentada do ponto de vista da pessoa que está a morrer e logo no início do poema: “Ó cores virtuais que jazeis subterrâneas, / Fulgurações azuis, vermelhos de hemoptise, / Represados clarões, cromáticas vesânias, / No limbo onde esperais a luz que vos batize, / As pálpebras cerrai, ansiosas não veleis.” Pessanha demonstra-nos desde logo a ideia da morte enquanto um sono eterno: há que fechar os olhos para dormir, dar descanso às cores que ficam fora de nós enquanto nunca mais veremos nada. Havendo, ao mesmo tempo, uma oscilação entre os espaços interior e exterior do sujeito. Contudo, a temática e exploração da própria visão sem objetivo meramente metafórico, é mais recorrente no poema de Pessanha que no de Baudelaire, ainda que surja em ambos, ligado até ao elemento terra, no “Poema Final”, como veremos mais à frente.
b. O Som
O som surge, ainda que em menos instâncias em ambos poemas. Pessanha trata-o como um elemento que o perturba, um “Gemebundo arrulhar dos sonhos não sonhados,” e Baudelaire, novamente trata-o do ponto de vista dos vermes a quem este, tal como a luz, também não chega, emparelhando-o com a luz que, sensíveis ao ser humano, não o são para os vermes cegos.
c.  A Terra
A terra opõe-se, simbolicamente, ao céu como o princípio passivo que se opõe ao ativo; o aspeto feminino ao aspeto masculino da manifestação; a escuridão à luz; o yin ao yang; tamas (a tendência descendente) à sattva (a tendência ascendente); a densidade, a fixação e a condensação à natureza subtil, volátil, à dissolução. (...)
Existem enterros simbólicos, análogos à submersão batismal, quer para curar e fortificar, quer para fazer ritos iniciáticos. A ideia é sempre a mesma: regenerar através do contacto com as forças da terra, morrer para uma forma de vida para renascer para outra forma. (Jean Chevalier & Alain Gheerbrant, Dicionário dos Símbolos, 1982)
O terceiro elemento que se repete nos dois poemas é a inevitável terra, onde todos os mortos acabam, ou se tornam e se entrelaça com o tema do ar, também usado em ambos poemas. “O Morto Alegre” começa por expor o terreno em que um “lento caracol vagueia”, uma planície, na qual o eu-lírico pretende “cavar um buraco bem fundo, / Onde possam meus ossos repousar na areia”, aqui mostra-se a autossuficiência do morto-vivo e o conhecimento dos rituais fúnebres que há milhares de anos pretendem reunir os corpos mortos com a terra. Já Pessanha, por outro lado, joga com a ideia de luz e a sua impossibilidade, as “c ores virtuais” jazem “subterrâneas”, brincando com a impossibilidade que os vermes tinham das ver no poema de Baudelaire, aqui, as cores estão debaixo da terra. Pessanha dá aos vermes a luz que de Baudelaire não receberam.
Pessanha introduz a ideia de abismo, ainda em diálogo com as cores, precavendo-as para que “o abismo não sondeis”, sabendo que o desconhecido do abismo, tanto como a ideia da sepultura e a própria morte são “buracos” (na terra) que transtornam qualquer um só de se imaginar nessa posição.
d.  A Água
A água surge recorrentemente na literatura como símbolo do tempo:
O tempo, um outro dos leiv-motiv da obra de Pessanha, dá vida ao símbolo recorrente da água que escorre inexorável e sem paragens: nos rios, nos mares, e, naturalmente, na clepsidra. Quereríamos parar o tempo, ficar como que suspensos para recuperar o passado, a memória de si: mas o presente não existe, é já passado ou já futuro, amargo concentrado de nostalgias e temores, de saudades e ilusões. As imagens sobrepõem-se, os sons confundem-se, os planos da precepção interseccionam-se num tecido analógico cuja trama pode ser desvendada em qualquer momento por um lampejo de ironia lúcida. (O simbolismo na obra de Camilo Pessanha, Barbara Spaggiari. Lisboa, ICALP, 1982. Coleção Biblioteca Breve - Volume 66)
Recorrendo às duas traduções que consultei d’”O Morto Alegre” ou “O Morto Prazenteiro”, podemos encontrar uma associação do oceano à memória; no original, “Et dormir dans l’oubli comme un requin dans l’onde.”; na tradução de Francisco Pinto do Amaral, “E como um tubarão dormir no esquecimento.”; e ainda, na tradução de Ivan Junqueira “Como o esqualo a dormir no pélago profundo.” É inegável que o correr da água, dos rios para o mar é inexorável como o tempo, e que na clepsidra (objeto de contagem de tempo que usa da água como seu elemento) também a água é a passagem do tempo. N’”O Morto Alegre” de Charles Baudelaire, o que em francês são ondas, é traduzido por “esquecimento” ou “pélago profundo”. Já Pessanha refere-se à água no seu “Poema Final” invocando-a por nome, tendo em mente a mesma simbologia da água-tempo: “E escutando o correr da água na clepsidra, / Vagamente sorris, resignados e ateus.”
Mas esta não é a única referência ao elemento da água n’”O Morto Alegre”, surge sob um novo significante, um mais penoso: as lágrimas que ele rejeita em favor dos corvos, a quem o sujeito poético convida a que comam a carne que traz presa aos ossos, numa entrega total à ideia de esqueleto enquanto símbolo da fase final da morte: a decomposição.
e.  O Espírito
O espírito surge, no tratamento artístico da morte, como o elemento semiótico do significado das nossas vidas; o corpo é só a carcaça, o significante em que viajamos, e dentro dele reside o nosso espírito. Contudo, nestes poemas, o espírito surge como um elemento terciário, que não faz parte do acontecimento relatado, mas que está presente por referência implícita. Existe, em ambos poemas, uma referência à religião que invoca o espírito, quer os “resignados e ateus [abortos]” de Camilo Pessanha, quer os “[vermes] demiurgos do artifício de Charles Baudelaire, colocam no plano duma terceira pessoa o olhar sobre o sujeito que abraça e aceita a morte em ambos poemas. São estas referências religiosas, tanto à demiurgia como ao ateísmo, que dão uma tonalidade espírita aos poemas. Na tradução d’”O Morto Alegre” de Fernando Pinto do Amaral, os “[vermes] demiurgos do artifício” são os “filósofos da estúrdia”, uma tradução mais fidedigna ao original “philosophes viveurs”. Mas mesmo esta “filosofia da estúrdia” nos encaminha para um plano metafísico, um plano para além do escavar da própria sepultura, nem que seja pelos breves instantes da metáfora adjectivadora. O espírito é, portanto, retratado pelos dois poemas como algo afastado: quer da religião pelo ateísmo, quer do mundo pela demiurgia, quer do físico pelo metafísico da filosofia.
f.  O Céu
Num último elo de ligação óbvio, podemos encontrar referências a outro tipo de coisas inalcançáveis em ambos poemas; numa oposição com as referências ao subterrâneo/abismo mortífero, parece haver uma aceitação do destino inevitável do corpo, que é a terra e os vermes e um conflito com o desejo de tocar o intocável quando já debaixo da terra, o ar nas suas instâncias.
Pessanha refere-se à noite, às almas que penam (que pode ter o sentido ambíguo do termo pena: as penas dos pássaros e a pena de dor), às “asas lacerais na aresta dos telhados” e ao vento na última quadra, e penúltima estrofe, do seu “Poema final”. Todas estas imagens são inalcançáveis por um motivo ou outro, quer seja a altitude d’”as asas lacerais na aresta dos telhados” quer a infinidade da noite, ou mesmo os espíritos que são as “doces almas penando” são apenas isso, espíritos e, como tal intocáveis.
Baudelaire já emprega o símbolo do corvo aliado à ideia de céu (por ser o seu meio) enquanto veículo da anunciação da morte:
É considerado, com efeito, nos sonhos, como uma figura de mau agouro, ligado ao medo da infelicidade. É a ave negra dos românticos, planando por cima dos campos de batalha para se refastelar com a carne dos cadáveres. (Jean Chevalier & Alain Gheerbrant, Dicionário dos Símbolos, 1982)
Esta aceção do corvo como trazedor de má sorte é muito moderna e contemporânea de Baudelaire. Ainda que os elementos ligados ao céu surjam, nestes poemas como complementadores da dualidade profundidade/altitude, do binómio alcançável/inalcançável como o lado da altitude e do inalcançável. O elemento do corvo é o único a quem o sujeito poético apela para que lhe  toque e altere a sua condição cadavérica para uma mais degradada: “Prefiro em vida dar aos corvos como ceia / Os trapos que me pendem do esqueleto imundo”, opostos ao mundo em que vive, ao qual o eu-lírico não pede justificações nem lágrimas pela sua partida, provavelmente pelo facto dele próprio a aceitar de braços abertos.
Trabalho de Tiago Clariano para a cadeira de Estudos Literários I 
do curso de Línguas, Literaturas e Culturas da Universidade de Évora, janeiro de 2013.
   
   

De la Tierra
Barbara Bezina Art"De la Tierra", Fotografía, 2012
   
   
FANTASMAS DO LIVRO
[…]
No poema «Final», tal como está na Clepsydra de 1920, ou no «Poema Final» das edições de Castro Osório, ou ainda no poema «ó cores virtuaes que Jazeis subterraneas» da Clepsydra de Paulo Franchetti, esta questão recebe uma resposta cujo sentido se inscreve desde logo na gramática do poema. Não a gramática do fim que se constata, mas a de um fim que só no imperativo se pode enunciar, um fim que é a ordem, o pedido ou a imploração do fim dirigido ao que está ainda para começar: às «cores virtuais», aos «abortos» e aos «sonhos não sonhados». A estes últimos, tornados sinónimos, no verso 12 do poema, de «doces almas penando», dirige o poema o seu último verso como uma derradeira solicitação do fim:
«Adormecei. Não suspireis. Não respireis.»
É, se quisermos, um fim pela negativa, mesmo pela dupla negativa das duas frases finais do verso. Ela significa que não há fim que não seja a retenção de um começo, ou do espectro do recomeço. E um começo retido será, propriamente, um fim?
Gustavo Rubim, Fantasmas do Livro”.  Ensaio adaptado de um capítulo de A inscrição espectral: poética do vestígio em Camilo Pessanha.  Universidade Nova de Lisboa, F.C.S.H., 1998.
    

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 Vida e obra de Camilo Pessanha: apresentação crítica, seleção, notas e linhas de leitura / análise literária de Clepsidra e outros poemas, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição).

 [Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/01/06/poema.final.aspx]

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