RELÂMPAGO N.º 12 4|2003
Director deste Número: Fernando Pinto do Amaral.
Conselho Editorial: Carlos Mendes de
Sousa, Gastão Cruz, Paulo Teixeira.
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Agora
que entrámos no Século XXI e que têm surgido cada vez mais balanços do Século
XX, as páginas deste nº12 da Relâmpago abrem-se à geração mais recente da poesia portuguesa. Os poetas aqui
incluídos não correspondem a uma selecção rígida, a um panorama exaustivo, ou
sequer ao gosto pessoal de cada um dos membros do Conselho Editorial da revista
- mas reflectem, em todo o caso, um patamar possível ou um determinador comum
entre a poesia escrita e publicada por autores mais novos, todos nascidos após
1963 e por isso com menos de 40 anos. A cada um pedimos alguns poemas inéditos
e um texto que de certo modo os situasse
ou pudesse funcionar como uma espécie de arte poética*. Esperamos que a
leitura dos seus poemas - acrescida dos ensaios de abertura - possa dar aos
leitores uma imagem da poesia mais jovem que hoje se escreve em Portugal.
___________
* Foi também pedida colaboração a Ana Paula Inácio, que nos
informou não dispor neste momento de produção inédita.
NOVA POESIA PORTUGUESA | [ARTES POÉTICAS]
CARLOS BESSA (n. 1967) | Poesia (a minha) numa página
Vivo
numa ilha, o que já é dizer muito, sem dizer nada.
Tenho
trinta e seis anos e alguns livros publicados.
Às vezes durmo
sossegado. Às vezes sofro.
Gostaria
de não ser um fardo para aqueles que comigo partilham dias e noites e não sei
se sou capaz.
Gostaria
que os poemas fossem migalhas dum certo bem-estar, de algum conforto, mesmo que
falem do que é mais comum: do medo, da angústia, da dor. Às vezes de outras
coisas.
Porque
os poemas são, não um programa, mas uma necessidade: emoções que regressam
vindas de longe e que constrangem a razão aos duros trabalhos da musculatura; ideias
onde se misturam experiências, livros, quadros, filmes, músicas. Aparas da
vida, onde as surpresas são um detalhe, os sonhos ficam à porta e as palavras
se dispõem de determinada maneira – a que se sabe, a que se pode e com que (vã
ambição) se procura encantar, comover, seduzir.
Às vezes, gostaria
de ser capaz de escrever tão-só poemas de amor. Mas – perdoem – falta-me a habilidade
para o mais difícil. Às vezes gostaria de não precisar de escrever.
Os
poemas são públicos. Quem quiser que os julgue.
Por
ser verdade e me ter sido pedido
*
JOÃO LUÍS BARRETO GUIMARÃES (n. 1967)
A
poesia da minha geração (90?), apresenta propostas importantes com razão de ser
(de existir, como diz Alberto Pimenta), que se por um lado assimilaram e
entenderam o que se poderia esboçar como uma certa tradição poética portuguesa recente
(anos 70 em diante), por outro a actualizaram, penso eu, conscientemente.
Há
talvez uma linha comum, que não de grupo (para já), que prefere escrever sobre
o Presente, a contemporaneidade, (os nossos tempos), do que abdicar desse real (mais
ou menos concreto), em favor de uma poesia menos diária, menos quotidiana.
O
olhar é o gatilho.
Como
autor, sinto-me próximo de poemas que encontro, por exemplo, nas obras poéticas
de Luís Quintais, de Pedro Mexia, de José Tolentino Mendonça, de Paulo José
Miranda ou de Maria do Rosário Pedreira, para citar alguns.
Como
leitor, agrada-me bastante o trabalho de Carlos Luís Bessa, de Jorge Gomes
Miranda, de José Mário Silva e mais recentemente, de Manuel de Freitas e de José
Ricardo Nunes.
Mas
a maior surpresa, e prazer, foi a descoberta (tardia) da obra de Daniel Faria.
*
JORGE GOMES MIRANDA (n. 1965) | Poética
Cada
artista possui uma experiência central obsessiva, em torno da qual o seu
trabalho alcança sentido e forma. Em Rembrandt é o rosto. Tão importante para
ele como o sol para Van Gogh, as ondas para Turner ou o céu para Constable.
Para outros a singularidade é conquistada no seu contacto com os livros. Não
discuto.
Mas
tenho para mim não ser apenas com os livros que a aprendizagem do homem que
também escreve se faz, mas inescapavelmente sob o domínio dos lugares, em
deslumbramentos ou desavenças; e, sobretudo, com pessoas e tudo aquilo que
estas transportam: conversas, sorrisos, (des)amparos, perfídias, acenos,
protecção. Sucede que, por vezes, essas pessoas também gostam de livros e
falam-nos sobre eles. Parece ser o júbilo, uma ressurreição. Outras vezes, apenas
sabem o nome das árvores, o percurso das aves, o horário dos comboios. E a
alegria pode ser ainda maior, longe que ficamos da gente de olhos apagados e
voz inexpressiva que é tantas vezes a da cultura.
Uma
das coisas que mais admiro nos Pensamentos para mim próprio de Marco
Aurélio, é a abertura, no sentido musical do termo, na qual o filósofo enumera
com fortuna as dívidas de amor filial, de amizade e inteireza intelectual que,
ao longo da vida, contraiu com este e aquele. Na minha vida existem algumas
figuras maiores. Semeados os seus nomes e férteis saberes pelos meus livros, se
a colheita é ruim, não devo culpar nem as sementes, nem o solo, nem a
inclemência temporal. Mas sim a inabilidade do semeador. Seja como for, esses
saberes como, por exemplo, o de olhar nos olhos quem vem, segurar-lhe as mãos
se sofre, são essenciais, pois construí a existência a partir deles. E a poesia
brota daí, daquelas (pois foram quase sempre mulheres) que sem manifestações de
ostentação, e sem quererem ser peremptórias viviam a meu lado.
Não
se infira, contudo, que esqueço a importância de quem é ao mesmo tempo médico e
nómada, eterno e engendrado, mortal e imortal; fala no lugar dos mortos e é o intérprete
dos vivos; um amigo que nos diz não apenas o que queremos ouvir, mas instaura a
dúvida, a inquietação; acumula saberes, experiências, sítios e um dia numa hora
difícil, abre as portas para uma resposta clarificadora, uma pergunta
responsável, o livro. Os livros. Aqueles (sujeitos, vidas incarnadas e não
meros objectos) que evidenciam esse carácter e desenham um rosto sulcado pela
memória duma deambulação por lugares, paisagens culturais do passado, outras
paixões; e são denúncia, solidariedade e exaltação, esses sempre me acompanharam.
Os livros. Aqueles que permitiram ascender a uma atenção ao quotidiano mais
estrito, refém dum sentimento de compaixão pelos solitários e desprotegidos, sem
a tentação da autopiedade, numa certa distância na expressão das coisas que mais
angustiam e atormentam.
Não
o esqueço. Mas parece-me um mal (ou pelo menos uma ingratidão), este dos artistas
citarem quase sempre apenas outros criadores por quem se sentem, parece, profundamente
endividados, quando o único contacto que deles têm são as suas obras. No caso dum
escritor, as palavras. E as palavras... Se não forem acompanhadas ao longo do
tempo de gestos, o que são? Lenha húmida ou nem isso.
Ainda
agora falava da diferença entre palavras e gestos. Da distância ética que vai da
generosidade à literatura, da infância ao silêncio, da memória à morte. Das pequenas
ilhas sem alma aos arquipélagos da memória que conjuram momentos, figuras, traços,
trajectos, ideais, desilusões, meditações, fulgurâncias, confissões.
Primeiro
viver, depois escrever, podia ser o lema da minha escrita. É preciso começar pela
experiência do mundo, antes de a recriar através da escrita. Como um homem que de
nós se acerca para pedir umas moedas, sabe Deus para o quê ou uma gaivota que
imita o nosso grito, a literatura e a vida têm em comum a fragilidade e a soberania.
Vivem de emoções: da emoção de estar vivo, da emoção do amor, da emoção da morte.
Para
muitos, e para mim também, a memória é o verdadeiro móbil. Memória que não se percorre
como um álbum de fotografias, mas, não obstante a placidez (agreste?) que
sussurra os versos, ou por causa dela, parece cada vez mais - agora que os meus
passos parecem já só reconhecer o caminho enlameado para o cemitério onde estão
(?) as pessoas que mais queria - uma mina antipessoal, na iminência de explodir.
Com efeito, aqui, recorda-se um rosto, um mistério, depois parte-se para a escrita,
procurando transmitir sempre ao passado uma outra humanidade, primaveril sabedoria,
mais inteligência do coração. Ao meu, principalmente, pois não tenho a pretensão
de fazer das minhas agruras, dos meus intentos uma experiência de vida comum aos
outros. Embora às vezes, um recado dum leitor benévolo me leve a acreditar que é
também de si que falo.
Os
versos - tributos a quem se mostrou benfazejo - deixam-se, frequentemente, submergir
pelo passado, frutos de uma infância que conheceu muitas horas claras. Nessa época
áurea para os sentidos, aprendi lentamente a ver e a reflectir sobre o sentido do
que via. As coisas têm "alma" apenas quando o amor as toca. Mas,
desertadas desse sentimento, não são mais para o olhar do que corpos mortos e
opacos. Depois, na adolescência, a sensualidade declara-se, confere ao mundo
uma outra ordem e um novo sentido, abre a palavra à vida mais instintiva. Mas
momentos há, em que entregues à turvação do desejo, um ar sem protecção firma-se
na memória. É a
hora de raptos, caprichos, padecimentos, perdição por colegas de carteiras ou raparigas
que cruzam as ruas com os seus vestidos esvoaçantes. Quando não as vemos são as
trevas em pleno dia, a cidade um universo quando estamos apaixonados. E que
somos nós, hoje, senão o reflexo do seu escândalo de riso e juventude.
Mais
tarde, no meio do horror, do crime, o sentido da beleza, da diferença, o amor, parece
ser uma salvação tão necessária como imprescindível. Só ele parece ser capaz de
nos dar outro rosto, o fogo verbal, o prazer linguístico capaz de tornar o real
um incêndio de afectos e não um cálculo, uma astúcia.
E
ainda hoje, que já vivemos o dédalo dos sentidos e a devastação da paixão, refulge
na memória como uma flor: as noites de Verão, as suas horas de deserto, encontros
em praias, hotéis, cafés, momentos ao volante dum carro. A uns, esta recordação
leva-os por ruas, bibliotecas, cidades, presos num vendaval de consequências insuspeitas.
Para outros, já só os lençóis têm a cor do mar.
Sei,
não obstante, que a vida tem que dar à arte completa independência, uma liberdade
que é necessária, porque o poema para nos falar não pode apenas lembrar-nos os instantes
vividos, mas tem ele mesmo de adquirir vida própria, precisamente para ser
capaz de reflectir essa vida, que constitui a matéria prima da qual irrompe.
Mas
por que é que alguns ficam sempre tão sós? Quem sabe onde se abriga a dor? O
que fazer quando a mágoa não é enternecedora? E assistimos às surdas detonações
de um eu que quase não reconhecemos como nosso?
O
que é que impedirá a vaga da solidão de crescer mesmo (ou sobretudo) no amor? São
perguntas que permanecem e às quais procuro responder, também como escritor.
Leitor
omnívoro - e acostumado a publicamente dar conta da admiração que muitos autores
me merecem - , nos livros diariamente dessedento a saudade de um corpo que partiu,
doutro que ainda há minutos me fez sorrir ao telemóvel, doutro ainda que ainda não
sei. Mas fico sempre muito surpreendido quando vejo nessa espécie de certidões de
nascimento ou testamentos, que são as poéticas, os autores apenas citarem
outros autores. Sortilégio, pudor ou um humano sentimento de que ao lado desses
nomes vetustos ou consagrados a nossa pequenez não será tão notada? Não sei.
Quanto
a mim, cada vez me sinto mais em dívida para com todos aqueles que, como anjos solitários,
inactuais, intempestivos, ao longo destes anos me estenderam a mão. Uma poesia
prestável, pois.
*
JOSÉ MÁRIO SILVA (n. 1972) | A minha escrita, dois pontos:
1.
Se há um facto mais ou menos consensual, em relação aos autores que começaram a
publicar poesia no final da década passada (ou no princípio desta, como foi o
meu caso), é a consciência de que não formamos uma "geração" ou um
"movimento". Não somos modernistas, nem presencistas, nem neo-realistas,
nem surrealistas. E também não regressámos, em grupo, ao "real" ou a
outra coisa qualquer. Do lugar onde estou, vejo apenas uma galáxia dispersa,
ainda a ganhar forma. Talvez quem observe de outros ângulos, com mais distância
e perspectiva (isto é, de fora para dentro), já consiga intuir uma
configuração, um esquema, uma ordem, uma lógica interna, um caminho que nos une
ou separa. Eu não consigo.
É óbvio que há pontos de
contacto, temas recorrentes, filiações comuns, afinidades electivas. Há poetas
"novíssimos" de que me sinto mais próximo, talvez porque buscam secretamente
as mesmas elipses e suspensões, a mesma inclinação da luz. Às vezes tenho a
suspeita de que falamos uns com os outros através de enigmas, recados, mensagens
subliminares. Mas algum dia, espero bem, haveremos de nos entender.
2.
Não há nada mais perigoso do que uma arte poética. Ou mais inútil. As
bibliotecas estão cheias de páginas vazias, tentando explicar o inexplicável. E
algumas viram-se mesmo contra os seus autores. No limite, uma arte poética só
faz sentido se for um poema (isto é, um poema perfeito). Ou então se resumir
tudo numa frase iluminada. Como esta, de René Char, que faço minha: «Um poeta deve
deixar indícios da sua passagem, nunca provas».
*
JOSÉ MIGUEL SILVA (n. 1969) | Parte poética
Não
é fácil ser poeta a tempo inteiro.
Eu,
por exemplo, nem cinco minutos por dia,
pois
levanto-me tarde e primeiro há que lavar
os
dentes, suportar os incisivos
à
face do espelho, pentear a cabeça e depois,
a
poeira que caminha, o massacre dos culpados,
assistir
de olhos frios à refrega dos centauros.
Chegar
por fim a casa para a prosa
de
uma carne à jardineira, o estrondo
das
notícias, a louça por quebrar. Concluindo,
só
por volta das duas da manhã começo a despir
o
fato de macaco, a deixar as imagens correr,
simulacro
do desastre.
Mas
entretanto já é hora de dormir.
Mais
um dia de estrume para roseira nenhuma.
*
JOSÉ RICARDO NUNES (n. 1964)
Para
mim, a poesia sempre foi uma realidade física, um modo de ser corpo. Gera-se
onde os nós não se conseguem desatar, na incandescência provocada pelo vento,
por um olhar, por sons. A poesia é, em simultâneo, um infindável processo de experimentação
e o seu próprio resultado. Através da poesia construo a minha identidade, embora
a cada verso o que sou se vá também destruindo. Trata-se de uma incessante
metamorfose: a imagem, sempre a mesma imagem, multiplica-se, transforma-se, e por
dentro desse turbilhão, em permanência, está o meu corpo, estou eu, o que quer
que seja ou signifique.
O
processo poético é um verdadeiro trabalho. Invariavelmente, consiste na
depuração do magma que irrompe sem aviso ou explicação. É o mesmo que esticar a
corda de um arco. Há que concentrar as cargas expressivas, conter as energias,
modelar na linguagem a vertigem do corpo, a fim de chegar à máxima intensidade.
Atinge-se o ponto de equilíbrio com a iminência da ruptura. O que é excessivo, acessório,
dispensável, vai dando lugar ao essencial, ao que tem força para perdurar, ao
que vai mudando a minha vida. O tempo coze os poemas e o seu rosto final é
composto por tudo aquilo que não pôde ser preterido. O próprio poema impõe-me a
sua forma definitiva. Como se compreende, para continuar a escrever tenho que
acreditar que é assim.
Como
decerto os demais crentes, tenho a minha 'trindade' poética. Sem contar com
Pessoa e Sá-Carneiro, e atendo-me à tradição portuguesa, o meu cânone integrou desde
muito cedo as obras de Carlos de Oliveira, Herberto Helder e Luiza Neto Jorge, às
quais o tempo juntou as de Cesariny e Vitorino Nemésio. Os alucinatórios textos
de Luís Miguel Nava foram, durante anos, uma presença perigosa no meu mundo
interior. De uma forma geral, é mais na poesia dos anos 60 e menos na dos Autores
revelados a partir da década de 70 que encontro as principais raízes e
referências para a minha própria escrita.
Os
poemas que junto não formam um conjunto, são unidades dispersas. Começaram a
ser escritos ao longo de 2002 e, provavelmente, integrarão um próximo livro. A
sua sequência nestas páginas é meramente cronológica.
*
JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA (n. 1965)
Gosto
de me fixar na definição que dá S. Tomás: «proceder por similitudes várias e
representações é próprio da poesia, que ocupa o ínfimo lugar entre todas as
doutrinas». A poesia é um procedimento humano, uma maneira que mimetiza outras
ainda mais puras, um gesto que repete o arco de outro gesto: coisas tão simples
como varrer um pátio ou lançar o balde ao poço ou traçar caminhos num bosque. A
poesia não é feita de invenção, mas de repetição. Porque nos banhamos sempre na
água do mesmo rio.
Mas
digo também que à nostalgia prefiro o desejo. Creio que é esta opção que mais
aproxima a minha poesia da experiência religiosa. Para lá do jogo das nossas
defesas, qualquer coisa interior reivindica as intensas solidões, os campos alagados,
os sítios sem resposta, as formas involuntárias.
O
lugar ínfimo da poesia é o lugar que no mundo ocupa o espírito. Seguir o trilho
de um poeta é caminhar atrás de um silêncio, de uma combustão paciente e
humilde, de uma doença mortal, de um apagamento ou de uma alegria. Julgo que
será assim para os poetas com mais e com menos de quarenta anos. Não sei dizer
mais nada.
*
LUÍS QUINTAIS (n. 1968)
Durante
a década de noventa do século passado, um grupo de pessoas na casa dos 30 anos
começou a publicar livros de poemas. Eu fui incluído nesse grupo (o meu
primeiro livro foi publicado em 1995).
Por
razões que valia a pena ponderar, uma pequena multidão de gente mostrava-se
interessada em ler poetas novos. Trezentos leitores, mais coisa menos coisa,
fazem já uma pequena multidão quando se trata de poesia.
Alguns
mais velhos, marcados pelo reconhecimento que não tiveram ou que,
traumaticamente, sempre lhes pareceu insuficiente, dirão que se trata de muito
barulho por coisa nenhuma.
Talvez.
Mas quando leio os poetas da minha "geração", todos tão diferentes
uns dos outros (ainda que se queira fazer tantas vezes subsumir a circunstância
a traços estruturais, como sejam a melancolia ou a afirmação desencantada do
quotidiano), não me parece que os livros que escreveram e publicaram tenham
exigido tanta atenção (apesar da vontade de comunicar, da vontade de partilhar,
da vontade, talvez menos nobre, mas, porém, humanamente válida, de se querer
fazer ouvir).
A
verdade poética que lhes encontro, e que se lhes fará eventualmente inscrever,
a haver uma, é somente esta: procura, incansável procura.
Nem
sempre os resultados (aquilo que o tempo com os seus poderosos agentes se
encarrega de definir como canónico) explicitam a natureza dessa procura. Essa
procura é do domínio do invisível, e só uma sensibilidade extrema à sua
história quase secreta a poderá definir através dos textos.
Sei
que há gente acomodada (cedo monumentalizada) na minha "geração". Sei
que as obsessões pessoais são, por vezes, injustamente, tomadas como o índice
mais evidente desse comodismo, dessa vontade de poder adequada à monumentalização
das coisas e das pessoas. Também sei que há alguns que sabem o que é a poesia,
e que, obviamente, sabem o que ela não é, afirmando-o entre a bravata e a
soberba, num auto-comprazimento e numa enfática entronização do que lhes é
próprio que me deixam desmunido de resposta ou sequer de intenção em ter
resposta.
Mas
se a nossa generosidade não for restritiva e o nosso pensamento não se deixar coreografar
por preceitos que poderão ser anatomizados à luz de uma qualquer sociologia
histórica da cultura (e hoje há tanta coisa no "campo" literário que
pode ser compreendida por meio de um exercício desta natureza), ter-se-á de
reconhecer os trajectos que essa procura faz através dos textos. Trajectos tão
difíceis, porém, de articular numa analítica da procura.
É fácil perceber que a conversa
acerca das "gerações" é uma conversa destinada a contornar os lugares
de procura. Os lugares de procura definem-se pela liberdade de quem procura.
Procura-se a insujeição ao tempo, procura-se, com determinação, o que não tem
motivo de lembrança ou celebração. Procura-se o lugar onde se pode procurar melhor.
Vejo
isso em tantos poetas da minha "geração". O que encontro em todos é o
fulgor da procura, numa espécie de movimento que corta transversalmente
"gerações", e que une os de hoje aos de ontem. Essa procura é inegociável.
Eu não aprendo com ela, eu constato-a, e aprendo com essa constatação. E sou
capaz de o constatar naqueles que, fazendo parte da minha "geração",
me poderiam ser alheios, e afinal não o são de todo. E isto porque entre mim e
eles há o laço do evento e o milagre da circunstância a unir-nos, e não porque
veios profundos dos quais se possam retirar as mais profundas das lições percorram
subterraneamente o nosso encontro. Quem? Exemplos. Penso em Pedro Mexia ou em
João Luís Barreto Guimarães. Penso em Rui Pires Cabral ou em Francisco Duarte
Mangas. Penso ainda em José Alberto Oliveira. (É ele um poeta dos noventa? Alguém
ainda se lembra desse belíssimo Por Alguns Dias? Seria bom lembrá-lo.)
O
resto são palavras, e elas existem como discurso memorável, como algo pelo qual
o sistema nervoso é tocado pela marca de água da linguagem, apenas (o que, num outro
plano, não é pouca coisa).
*
MANUEL DE FREITAS (n. 1972) | Glass enclosure
Nunca
me preocupou, a não ser em verso e com alguma ironia, a questão de saber qual
seria a minha poética. O mesmo já não poderia dizer de outras poéticas, às
quais, por dever ou por afecto, prestei maior atenção. Interessam-me, sobretudo,
os meus limites, até porque não acredito na liberdade (muito menos naquela que
se proclama "livre"). Eliot, em semelhante matéria, revela-se uma
óptima companhia.
Não
tenho, pois, cartilha maternal - ou paternal, caso desse ouvidos ao inefável doutor
Bloom. Saio à rua de caneta, mas sem qualquer intenção de a utilizar. Depois,
escrevo ou não escrevo sobre o que vejo, o que sinto, o que sofro. Tão simples
quanto isto - e tão difícil. A banalidade comove-me de uma forma, digamos,
glacial. Há apenas cadáveres; acenando, bebendo, dormindo ou não dormindo ao
nosso lado. E música, fatalmente. Os meus "poetas" chamam-se Billie
Holiday, Roberto Goyeneche, Tom Waits. Mas podem também chamar-se Marin Marais,
Wilhelm Friedemann Bach, Johannes Brahms.
Outra
coisa: a poesia não é, para mim, o autêntico real absoluto. Será, quando muito,
o ameaçado real possível. Quanto mais doloroso, mais verdadeiro.
*
Estes
poemas: até aqui, só muito raramente a infância compareceu na minha escrita. Por
terror, sem dúvida, embora não ache a minha infância mais infeliz do que
qualquer outra. Seja como for, não há regresso. As minhas madalenas sabem a
podre, a anis escarchado servido num copo sujo. A infância, quer-me parecer, é
o mal, uma ferida inútil que se dilatará pelos anos fora, com ou sem palavras. "In
my beginning is my end".
Os
versos percebem-se na pele.
*
PAULO JOSÉ MIRANDA (n. 1965) | Sob a Água dos Céus
Para
os meus
pais
A
noite e eu agarrado às árvores,
uma
mão nos galhos outra no gin
e
a lua tão lá no alto
a
lembrar a mãe no início da vida.
O
escuro arrefece,
é
uma serpente ao fim da tarde,
arrefece
e é um osso partido
que
ninguém calou a tempo,
arrefece
porque é noite escura
e
a água sobe pelas pernas da relva acima.
O
que vai desaparecer primeiro é o gin,
depois
o escuro ainda antes da lua
e
só por fim a água.
As
rãs coaxam essa certeza,
essa
alegria que rasga a noite
e
faz cair uma pinha.
Pinha
mais escura que o escuro.
O
líquido entra na boca,
dobra
as pernas e sai pelos olhos,
em
gotas, pequenas gotas
que
assombram o rosto
e
é uma língua pegajosa
ou
se a morte estivesse já ali.
*
PEDRO MEXIA (n. 1972) | Mono
Na
falta de livro
para
as crianças e o povo na sessão
a
editora deu
um
mono,
admirável
vocábulo que as tias diziam
de
deselegantes móveis
herdados.
E
com o mono, sobre
o
mono, se apresentou, dissertou,
os
poemas lidos
de
folhas A4.
Com
uma sobrecapa
o
mono
parecia
o definitivo,
ao
longe ninguém notava
a
diferença, e quase me permiti
por
uma vez
orgulho
naquelas
esplêndidas páginas
minhas.
*
RUI COIAS (1966)
As
histórias e os panoramas da mais recente poesia portuguesa, entendendo-se, esta,
para o efeito, a que tem vindo a ser veiculada desde a década de 90 até à data,
confundem-se com as de sempre. Os motivos, o sentido fundamental e a mensagem são
efectivamente os da poesia de todos os tempos e os de todos os autores. Na
verdade, e como já foi dito e repetido, as histórias encontram-se todas
escritas; o que fazemos é apenas reescrevê-las.
No
entanto, nada invalida que possamos procurar na nova poesia portuguesa, assim
entendida, uma identidade, um tecido sob o qual os autores se aproximarão ou manterão
distâncias mais ou menos mensuráveis ou perceptíveis. Ou seja, procurar, através
da forma e sentido com que os novos autores reescrevem as histórias, fazer uma
tentativa de aproximação aos tempos, isto é, e de outro modo, procurar auscultar
a geração.
Assim,
nesta perspectiva, e na linha do acima referido, será, eventualmente, o que se
escreve e publica agora, relativamente à dita nova poesia portuguesa,
marcado, essencialmente, sob o signo de uma época em que se encontra, acima de
tudo, presente uma ideia ou um (de)sentido imanente ao fim de um tempo, através
dos quais, então, assentarão os discursos, reflectidos, na maioria, numa linha
de intelectualidade e sobriedade, mais ou menos consensuais e diversificados.
Ora,
nada repugna, talvez, ir buscar na poesia portuguesa de 70 e 80 o pendor e a
textualidade da poesia portuguesa de agora. Ou seja, uma poética macerada
por uma deriva subjectiva, emocional, discursiva e imaginativa, seja ela
enraizada e potenciada numa dimensão sentimental ou ligada à experiência comum
e existencial. Mas dir-se-á que toda esta tendência discursiva que se verifica
presentemente se encontra, ainda, tecida numa espécie de tensão angustiada,
como se a sua linguagem, tome ela uma direcção ou outra, seja ela menos ou mais
intelectualizada, se desenvolvesse sob uma unidade afectiva e emotiva.
Na
verdade, o envolvimento e a textualização da linguagem dos autores mais recentes
configuram-se no prolongamento das dimensões imaginativas e emocionais, da
direcção descritiva e expressiva e da transmutação do real através,
designadamente, da procura do seu sentido afectivo e diluído.
Onde
descobriremos ou representaremos, então, se acaso for, e acaso se justificar, o
ponto da aproximação e da identidade?
Diremos
que o será, talvez, precisamente aqui. Na alteração que alguma poesia e alguns autores
efectivaram nas últimas décadas do muito recentemente passado século XX e no
desenvolvimento que essa poesia - essa poética - tem vindo a obter, nos
dias de hoje, através dos seus vários registos, levando-nos a contextualizar,
nos mesmos, elementos simbólicos, românticos e imaginativos.
Mas
os caminhos não estão perfeitamente delineados. Se calhar, também não o será
necessário. De todo o modo, será a poesia portuguesa de agora, a deste momento,
que consentirá ou não, cedo ou tarde, que se faça, com maior ou menor precisão,
o ponto do consenso do seu desenvolvimento.
Há
equilíbrios, há tensões imanentes a um tempo próprio e nota-se, como emergente do
acima descrito, um certo e vincado, embora contido, desenvolvimento da discursividade,
da afirmação descritiva, da valorização da melancolia e da capacidade do
indizível e da vivência emocional. E ousaremos dizer: uma espécie de
perseguição estremecida da memória, numa época em que o tempo se muda, se
retorna e se desvia para o sentido fundamental da vida e dos seus mistérios
ancestrais.
Contudo,
as histórias são sempre as mesmas, apenas as reescrevemos. E ainda que possamos
falar de diferentes comprometimentos, se formos bem fundo, e como sempre, nada
se nos transparecerá mais do que a procura incessante, com algum cansaço de
nada se encontrar, do "movimento sinuoso do mundo".
*
RUI PIRES CABRAL (n. 1967)
Sempre
esperei que a poesia pudesse falar por mim, e nunca soube falar sobre ela sem
sentir que estava a traí-la de algum modo. É uma incapacidade absolutamente assumida;
acredito que tudo o que pudesse dizer aqui sobre os meus versos seria, quando
muito, supérfluo. Quanto à poesia dos meus companheiros de geração, limitar-me-ei
a referir aqueles de que mais gosto: José Miguel Silva, Manuel de Freitas,
Carlos Luís Bessa, Jorge Gomes Miranda. É nos versos deles que encontro mais
vezes o que sempre procuro na poesia: uma espécie de beleza arrepiante, desarmada,
de efeito emocional e epidérmico semelhante ao da música. Não tenho outro
critério para avaliar a poesia: aquela que me convém tem de ficar perto do coração
e dos sentidos.
RELÂMPAGO n.º 12 4|2003
NOVA POESIA PORTUGUESA
ENSAIO
António Guerreiro – Alguns aspectos da poesia contemporânea
Fernando Pinto do Amaral – A porta escura da poesia
Gastão Cruz – “Nova poesia” e “poesia nova”
Rosa Maria Martelo – Reencontrar o leitor
Vítor Moura – O giroscópio
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