As Ilhas
Afortunadas fazem parte da tradição clássica. Já em
autores gregos aparecem referidas como paraísos, local do repouso dos deuses e
dos heróis míticos. Ptolomeu, soberano do antigo Egito, fala destas ilhas, tal
como Homero que refere as "ilhas que ficavam além dos Pilares de
Hércules". O historiador romano Plínio-o-Velho e Plutarco, no século I,
identificaram as Ilhas
Afortunadas com as Canárias, tal como faz Camões no canto V,
estância 8. Gregos, romanos e fenícios, nas suas aventuras
pelo Mar Mediterrâneo em direção à costa atlântica africana referem o
encantamento que lhes provocavam estas ilhas vulcânicas, de clima temperado e
de vegetação luxuriosa e balsâmica.
Em Mensagem, Fernando Pessoa fala das Ilhas
Afortunadas como mito e símbolo, surgindo como local
fora do tempo e do espaço onde os mitos do Quinto Império, do Encoberto, do Sebastianismo esperam para se concretizar. As Ilhas, cuja presença só
se capta no sono através de sinais auditivos e pelo som das ondas, surgem como
lugar do não-tempo e do não-espaço, são "terras sem ter lugar", onde
se encontra o Desejado que virá fundar o Quinto Império, "onde o Rei mora
esperando".
“Ilhas Afortunadas”, in: http://www.infopedia.pt/$ilhas-afortunadas?uri=lingua-portuguesa/ilha
Quarto
AS
ILHAS AFORTUNADAS
Que voz vem no som das ondas
Que não é a voz do mar?
É a voz de alguém que nos fala,
Mas que, se escutamos, cala,
Por ter havido escutar.
E só se, meio dormindo,
Sem saber de ouvir ouvimos,
Que ela nos diz a esperança
A que, como uma criança
Dormente, a dormir sorrimos.
São ilhas afortunadas,
São terras sem ter lugar,
Onde o Rei mora esperando.
Mas, se vamos despertando,
Cala a voz, e há só o mar.
26-3-1934
Mensagem. Fernando Pessoa. Lisboa:
Parceria António Maria Pereira, 1934 (Lisboa: Ática, 10ª ed. 1972).
- 85
Terceiro
CALMA
Que costa é que as ondas contam
E se não pode encontrar
Por mais naus que haja no mar?
O que é que as ondas encontram
E nunca se vê surgindo?
Este som de o mar praiar
Onde é que está existindo?
Ilha próxima e remota,
Que nos ouvidos persiste,
Para a vista não existe.
Que nau, que armada, que frota
Pode encontrar o caminho
À praia onde o mar insiste,
Se à vista o mar é sozinho?
Haverá rasgões no espaço
Que dêem para outro lado,
E que, um deles encontrado,
Aqui, onde há só sargaço,
Surja uma ilha velada,
O país afortunado
Que guarda o Rei desterrado
Em sua vida encantada?
15-2-1934
Mensagem. Fernando Pessoa. Lisboa: Parceria
António Maria Pereira, 1934 (Lisboa: Ática, 10ª ed. 1972).
- 101.
DO(S) OUTRO(S) MUNDO(S) DA VISÃO AO
NOVO MUNDO DA RAZÃO:
VIAGEM INICIÁTICA, DES(EN)COBRIMENTO(S) E U-TOPIA
VIAGEM INICIÁTICA, DES(EN)COBRIMENTO(S) E U-TOPIA
É o sentido iniciático de
que a Ilha, ou o que nela se simboliza, é o mais fundo e autêntico Sujeito dos
sujeitos que a buscam que, coerentemente, se traduz na tradição continuadora da
navegação de São Brandão. Com efeito, da Ilha Perdida, por vezes identificada
com a de São Brandão, da Ilha ou Ilhas Encantadas, da camoniana Ilha dos Amores
e, apropriada já à mitologia do messianismo sebástico, da Ilha Encoberta, se diz
que, tal essa falsa ilha flutuante que na Navigatio é a baleia Iascónio,
têm o poder de aparecer e desaparecer, encobrindo-se ou desencobrindo-se
consoante a relação do seu movimento próprio à atitude espiritual dos que as
demandam. Assim se diz da Ilha Perdida, no manuscrito do Escorial Semeiança
del mundo: "e a esta tierra dizen Pardita porque quando la buscan non
la fallan, e non la pueden fallar sy es por aventura; e a aquesta tierra
vino San Brandán"26. Ilhas a que só acedem
"espíritos" mais "viatores ou peregrini que (...)
descobridores"27, é delas e do que nelas se encobre e
desencobre que Fernando Pessoa indica a fenomenologia negativa em dois poemas
decisivos de Mensagem: As Ilhas Afortunadas e Calma.
No primeiro há uma
"voz" que "vem no som das ondas" e que não é a do
"mar", antes a de "alguém que nos fala, / Mas que, se escutamos,
cala, / Por ter havido escutar". É apenas "meio dormindo", como
"uma criança", suspensa essa intencionalidade desiderativa, apropriadora
e objectivante da consciência em estado comum de vigília, pressupondo poder
reduzir um Logos meta-ôntico a um objecto da subjectividade consciente de o
ser, que "sem saber de ouvir ouvimos" o que nos abre menos para a
"esperança" do eu humano do que para a espera transcendente
que já não é nossa mas a do próprio "Rei"-Identidade outra por
nós, na a-tópica residência das suas "terras sem ter lugar"28.
No segundo poema é uma
"costa" que "as ondas contam / E se não pode encontrar", ou
que "as ondas encontram" mas nunca se torna visível, trans-ôntica
praia de "Ilha próxima e remota" que agora se escuta sem que a visão
a capte. Fica a sugestão de "rasgões no espaço", instâncias de
ruptura e descontinuidade "que dêem para outro lado", para a
trans-dimensão de alteridade em que se pode desencobrir a "ilha
velada", o "país afortunado" do "Rei desterrado / Em sua
vida encantada'29. O fundo do messianismo sebástico, ao contrário do que
vulgarmente se pensa, não está na esperança de que o Encoberto regresse aonde
não pertence, ao exílio que, nesta perspectiva, é a história dos homens, mas no
seu esperar, do não--onde em que reside oculto para a e pela nossa
indisponibilidade, que sejamos esse pessoano e metanóico "nevoeiro"
que, no crepúsculo das formas da auto-consciência e do tempo
histórico-objectivo, se faça "a hora"30 do desencobrir-se-nos. Como
escreve José Marinho, após distinguir entre a passividade do que se diz como
"coberto" e a actividade sugerida no que se indica como
"encoberto"31: "(...) o mesmo que procuramos verdadeiramente
descobrir, esse mesmo é o pelo que há descobrir e encobrir, e ele é o que
descobre a si mesmo descobrindo (...). Procuramo-lo como se o fôssemos e não o
somos ou ele não é ou nada o é. Pretendemos descobrir o ao que a nós descobre e
tudo em nós e para nós. Forcejamos por alcançá-lo na continuidade do que somos,
ele surge-nos, porém, na descontinuidade e na ruptura incompreensível". E
"longos anos" "dos muitos erros e do longo errar necessário"
se anunciam até à compreensão disso...32.
Paulo A. E. Borges, Philosophica 15,
Lisboa, 2000.
Mapa-mundi de 1493 de Hartmann Schedel. A Ilha Afortunada é assinalada a oeste da costa africana. |
QUESTIONÁRIO SOBRE O POEMA “AS ILHAS AFORTUNADAS”
(FERNANDO PESSOA)
1. Refira a condição necessária à
manifestação da voz e transcreva elementos do texto que justifiquem a sua
resposta.
Cenário
de resposta
Para que a voz se manifeste, é necessário que quem
ouve se encontre semiacordado, ou num estado de semiconsciência, sem procurar
escutar essa voz – «Mas que, se escutamos, cala, / Por ter havido escutar» (vv.
4-5); «E só se, meio dormindo, / Sem saber de ouvir ouvimos,» (vv. 6-7); «Mas,
se vamos despertando, / Cala a voz, e há só o mar.» (vv. 14-15).
Nota – No que diz respeito à transcrição de elementos do
texto, a resposta pode incluir apenas uma ou várias das citações apresentadas
no cenário de resposta.
2. Explique o sentido dos dois últimos
versos do poema.
Cenário
de resposta
De
acordo com o sentido dos dois últimos versos do poema, quando se desperta do
estado de semiconsciência:
– a voz
do mar, associada a uma ideia de esperança, desaparece;
– o mar passa a ser apenas uma realidade objetiva
3. Explique de que modo o conteúdo da
última estrofe convoca o mito sebastianista.
Cenário
de resposta
Na
última estrofe, a esperança no regresso do Rei D. Sebastião e,
consequentemente, na possibilidade de resgatar a glória de Portugal está
associada a aspetos como:
– a
existência de um espaço mítico onde o Rei se encontra – «São ilhas afortunadas,
/ São terras sem ter lugar,» (vv. 11-12);
– o
facto de o Rei aguardar o momento de agir – «Onde o Rei mora esperando.» (v.
13).
Nota – Não é obrigatório o recurso a citações, ainda que
estas figurem, a título ilustrativo, no cenário de resposta.
Exame Nacional de
Português, 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho).
IAVE, 2015, 2ª fase. Prova 639 e critérios de
classificação.
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- “O Mare tenebrum medieval”, Ensaio sobre o Imaginário Marítimo dos Portugueses. Júlia Tomás. Braga, Universidade do Minho - Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, 2013.
- O imaginário das ilhas atlânticas no universo medieval islâmico-cristão, Amanda Fabiana Santos Coelho. Lisboa, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2016 (tese de mestrado)
- Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição) e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html
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