Ricardo Araújo Pereira, “Literaturas
Comparadas: A Lírica de David, Mickael e Tony”, in Mixórdia de Temáticas, programa emitido pela Rádio Comercial em 2012-04-10
[…] creio ser possível identificar
certas constantes, motivos e argumentos recorrentes que reemergem
sistematicamente, e acabam por definir o modo como falamos de poesia. O
problema que me suscita os exemplos iniciais decorre da percepção de uma
identidade comum àquele discurso e a uma certa tradição do discurso
crítico-literário. Uma tradição fortemente marcada pelo tom descritivista, ao
qual não será porventura alheia a “heresia da paráfrase”, mas cuja negação do
poder de actualização do poético vai muito para além disso: o gesto crítico
volve-se num exercício taxonómico, numa pulsão classificativa que se enreda
sobre si mesma e se ocupa do jogo infinito de fazer e desfazer a sua própria
trama, à imagem de Penélope.
Creio que, em tempos recentes,
ninguém conseguiu captar tão bem o fundo irónico desta tendência quanto Ricardo
Araújo Pereira, na rábula “Literaturas Comparadas”, integrada no espaço
radiofónico Mixórdia de Temáticas.
Ricardo Araújo Pereira propõe-se fazer uma análise comparativa de três autores
de música popular portuguesa, e fá-lo nos termos mais familiares ao discurso
crítico (onde pode incluir-se o académico) dos nossos dias. Com o devido
indulto que exigem os coloquialismos e impropérios, vale a pena citar o
diálogo, já que nele ficam evidenciados de modo lapidar alguns destes “tiques”
mais persistentes na produção crítico-interpretativa, hoje:
- Bom, em primeiro lugar, é
importante distinguir estes três trovadores: Tony é um cantor romântico, Micael
propõe romance também, mas em ritmos latinos, com especial atenção às
sonoridades do caribe, e David opera uma mistura única entre o pop, a dance
music, o hip-hop e as grandes baladas R&B - estou a citar o site oficial do
poeta.
- Mas olha, Ricardo, eles podem ser
enquadrados nessas categorias ou extravasam os seus limites? É que a minha
sensação é que eles extravasam esses limites...
- Ó Vasco, vejo que tens formação em
literatura. De facto, extravasam e de que maneira. Talvez as pessoas se
surpreendam se souberem que Tony Carreira, por exemplo, além de incurável
romântico, sabe ser também um atrevido maroto. É um dos aspectos mais interessantes
da lírica toniniana, aliás, e está presente, por exemplo, no poema “Eu quero
Nanana”:
(...)
Repara, Vasco, como o poeta,
marotamente, substitui aquilo que se adivinha ser obsceno pela expressão
“nanana”. Agora: fá-lo por pudor, ou porque tem dificuldade em usar a língua
portuguesa para se exprimir? É a dúvida que acrescenta mistério ao poema.
- Mistério ao poema. Mas, por outro
lado, David Carreira é mais moderno... Como é que se faz sentir na poesia essa
modernidade do David?
- Olha, Vasco, através da introdução
subtil de vocábulos em inglês: David Carreira usa termos em estrangeiro, logo,
é moderno.
(...)
Não sei se reparaste que, um poeta
menos moderno, limitar-se-ia a festejar. David vai mais longe, e festeja in the club, yeah. Designadamente, no dance floor.
- Notável, notável. E quanto ao
Micael? Ao que julgo saber, a poesia do Micael distingue-se por uma certa, como
hei-de dizer, idealização da mulher?
- É, sim, sim, sobretudo na medida em
que a mulher, enquanto ideal de pureza, consegue, ainda assim, abanar o
pandeiro, portanto, o nalguedo, a pandeireta, vá. Mas é uma pandeireta
idealizada, ela também. Repara no poema “Mexe bem demais”:
(...)
Vê, Vasco, como a mulher ideal de
Micael Carreira tem calor latino, que é dos melhores calores que se pode ter,
e, não satisfeita com o facto de ter tudo aquilo com que o poeta sonha, ela
ainda mexe bem demais. Podia limitar-se a estar sossegada, ou a mexer
relativamente bem. Mas não: ela mexe bem demais. Ora bom, nisto de mexer,
pergunto eu, haverá demasiado bem? A partir de que momento é que mexer bem se
torna mexer bem demais? São questões extremamente interessantes, Vasco.
- Que vão ter de ficar para outra
vez, Ricardo, porque já excedemos o nosso tempo.
- Já, olha, é sempre a mesma coisa,
nunca há tempo para a poesia. Mas enfim...
O registo irónico não retira à
caricatura o poder de penetração num certo modo bastante disseminado de falar
sobre poesia: um misto de formalismo com um sentimentalismo deliquescente,
concentrado quase exclusivamente em explicar
o como, mas pouco ou nada preocupado
com o porquê, e menos ainda o para quê da poesia, numa justificação
fática do poético, quase sempre aliada a uma reivindicação sem profundidade nem
fundamento da sua necessidade: “nunca há
tempo para a poesia. Mas enfim...”.
Tudo isto configura um quadro de
sintomas que se integram naquilo que Slavoj Žižek, em For they know not what they do. Enjoyment as a political factor,
caracteriza como os efeitos da crise desencadeada pela perda do elo entre a
referência e a coisa, entre o discurso e as suas consequências. Esse “elo
perdido”, afirma, que o estruturalismo vincou com determinação ao afirmar o
princípio da “prioridade da sincronia sobre a diacronia”, reemerge no discurso
contemporâneo como um “sujeito” espectral, a apontar o vazio que precede e
sucede à linguagem, numa ordem circular e auto-referencial, que apenas declara
a impossibilidade de comunicação entre o discurso e um lugar que lhe seja exterior.
O poético, lido como lugar sem
fora, no entendimento que lhe é dado nos problemas que convoquei
inicialmente, corresponde a esta tipificação:
All
of a sudden, by means of a miraculous leap, we find ourselves within a closed
synchronous order which does not allow of any external support since it turns
in its own vicious circle. This lack of support because of which language
ultimately refers only to itself – in other words: this void that language
encircles in its self-referring – is the subject as “missing link”. The
“autonomy of the signifier” is strictly correlative to the “subjectivization”
of the signifying chain: “subjects” are not the “effective” presence of
“flesh-and-blood” agents that make use of language as part of their social
life-practice, filling out the abstract language schemes with actual content;
“subject” is, on the contrary, the very abyss that forever separates language
from the substantial life-process. (Žižek 2008: 201)
Talvez seja este o (pesado) legado
dos projectos formalistas e estruturalistas para a forma como lemos poesia:
acreditando que estamos a celebrar a autonomia
do significante, não deixamos de contribuir para o ciclo vicioso da
reificação de um “sujeito” idealisticamente concebido, que se manifesta na
cisão, no próprio abismo entre a
ordem do simbólico e a estrutura real dos processos da vida quotidiana. A
violência da tensão resultante deste duplo impulso revela-se, na caricatura de
Ricardo Araújo Pereira, pela acomodação do princípio auto-referencial da
leitura comparatista com as interferências de uma linguagem exterior ao código
convencionado, colocando em destaque a extrema dificuldade que enfrenta a
crítica de poesia no que toca a estabelecer canais de comunicação com o
contexto, enquanto realidade actuante.
Pedro Lopes Almeida, "Em flagrante delírio: sobre a poesia como produto de excelência"
(ISSN 1647-6689)
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