quarta-feira, 11 de outubro de 2017

CAMÕES - numa mão sempre a espada e noutra a pena

Retrato de Luis Vaz de Camões (iluminura), H. Lopes (atrib.), 1581 (?)


LUÍS DE CAMÕES E «OUTRA COISA»
Crónica de Frederico Lourenço

Diz-se que, nos remotos anos salazaristas, não se podia dizer em Coimbra que Camões era um poeta maneirista, porque isso daria a entender que ele era amaneirado, o que por sua vez corria o risco de resvalar também para «outra coisa». Quando Vítor Manuel Aguiar e Silva apresentou aqui a sua tese sobre Maneirismo literário na literatura portuguesa (isto antes do 25 de Abril), o catedrático de Literatura Portuguesa avisou-o de que, em relação a Camões, não poderia contar com o seu apoio. Para o antigo catedrático do tempo do salazarismo, Camões definitivamente não era maneirista. Era o cantor da gesta portuguesa, da glória dos Descobrimentos. Ponto final.
No entanto, Camões está longe de ser aquilo que os Ministros da Educação de Salazar quiseram ver nele. A poesia de Camões está cheia de situações que, se virmos o que elas são por baixo da superfície, nos deixam de boca aberta perante o facto de a Inquisição ter autorizado a publicação d' Os Lusíadas.
Hoje fala-se em tons acesos sobre se um homem se pode sentir uma mulher ou se uma mulher se pode sentir um homem. Camões estava muito à frente de tudo isso.
Todos conhecemos o famoso verso do Canto VII d' Os Lusíadas: «numa mão sempre a espada e noutra a pena», com que Camões se descreve a si próprio.
A maior parte da pessoas pensa: ah, pois! O grande herói da Índia, dos Descobrimentos, do Império! A espada e a pena, as armas e as letras!
Só que não é nada disso. A espada de que fala Camões é outra espada. É a espada dada por um pai à filha para ela se suicidar. Porquê? Porque ela engravidou do próprio irmão.
Leiamos a citação toda: «Qual Cânace que à morte de condena, / Numa mão sempre a espada e noutra a pena».
Tudo está em percebermos quem é esta Cânace, a quem Camões se compara. Ora Cânace é uma figura das «Heróides» do poeta romano Ovídio, muito lido e imitado por Camões em toda a sua obra. Os versos de Camões são uma recriação dos seguintes versos de Ovídio: «na mão direita segura o cálamo; na outra segura a espada impiedosa» (Heróides 11,3).
Com estas palavras, pois, Camões está a colocar-se na pele de:
1) uma mulher;
2) apanhada numa situação tão extrema da sua vida;
3) grávida do próprio irmão;
4) que acaba de receber do pai a espada para se suicidar.
Mas a questão complica-se ainda mais. Temos de ver agora que os versos do Canto VII d' Os Lusíadas retomam, por sua vez, os seguintes versos do Canto V: «numa mão a pena e noutra a lança».
Quem é aqui o alter-ego de Camões? Júlio César. Basta ir ver a estância 96 do Canto V. E não é difícil percebermos que Camões tem gosto em se identificar com a figura de Júlio César, pois também César era um autor de quem se dizia que salvara os seus escritos a nado.
No entanto, este mesmo Júlio César também era referido nas biografias antigas romanas, conhecidas na época de Camões, como homem de todas as mulheres e mulher de todos os homens.
Juntemos a isto o Canto III d' Os Lusíadas, em que Camões se compara a Orfeu, por sua vez explicitamente referido no Canto X das «Metamorfoses» de Ovídio como autor (em latim «auctor») de amores homossexuais.
Dizem que, nas sociedades repressivas como era o Portugal de Camões dominado pela Inquisição, quanto mais inteligentes os textos menos os censores os vão entender. Felizmente, o poema de Camões é tão inteligente que, em 2017, ainda estamos a tentar entendê-lo.

Frederico Lourenço, Coimbra, 2017-10-11
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O ideal de homem virtuoso é, para Camões, o daquele que, como ele, for possuidor de «honesto estudo / Com longa experiência misturado». Camões é o herói humanista d' Os Lusíadas.




      

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